Com um dia de interregno, de regresso aos textos reaccionários. Pois as greves gerais fazem correr muita tinta. Há duas coisas que me deixam enternecido com greves gerais. Uma é descobrir que vivemos em dois países, que afinal não deixam de ser um só, mas que se desdobram em imagens que são o contrário uma da outra, como se então esta terra se desmultiplicasse em duas. São os números dos grevistas, que dividem o governo e os sindicatos. Dir-se-ia que alguém precisa de óculos bem graduados para tirar as medidas à paralisação, tamanha a diferença entre os números. Faz lembrar eleições: há sempre alguém que nunca perdeu, sem contudo algo ganhar.
A segunda coisa que me apaixona nas greves é a existência de piquetes que estacionam à porta das repartições, das fábricas. Tentam demover os que desalinham da greve. Seduzem-nos com a retórica sindical, usam a coacção psicológica quando bramem acusações de deslealdade, na ausente solidariedade sindical. Aposto que destacam os melhores em capacidade argumentativa. Os Guterres do movimento sindical emprestam-se à árdua tarefa de espalhar a palavra da verdade, para cativar mais e mais trabalhadores para a barricada dos grevistas.
Em homenagem à liberdade de expressão, os piquetes de greve têm direito à existência. Os militantes do protesto social podem usar da palavra para vingar o convencimento de que ir trabalhar nesse dia é um trunfo para quem é combatido através da greve. A magnitude das liberdades é tanta que as leis do trabalho caucionam plenários durante o tempo de laboração. De vez em quando, os autocarros do Porto recolhem-se à garagem a meio da manhã, porque foi marcado um plenário. Às urtigas os interesses dos utentes: que andem a pé que o exercício físico só faz bem, como o primeiro-ministro faz questão de sublinhar (só) de cada vez que vai de viagem ao estrangeiro.
Se os piquetes se limitassem a usar da palavra, o dano seria irrelevante. O problema é que os piquetes de greve gostam de ir mais além. Não se contentam com a persuasão da palavra. Há histórias de intimidação física, impedindo a entrada dos que querem trabalhar. E pergunta-se: não estão no seu direito, os que querem trabalhar? Talvez este seja um daqueles assuntos em que se convencionou que os direitos individuais devem ceder perante os interesses colectivos. O que fica por explicar é como são determinados os interesses colectivos, e por quem. E se é legítimo sentenciar determinada acção que se impõe a todos os interessados, sem hipótese de dissidência. É que quando tudo assim se passa, não ficam dúvidas quanto ao respeito pela liberdade individual e pela tolerância em relação aos que discordam da opinião manifestada pelo piquete de greve.
São ameaças. São acusações que intuem os “fura-greves” (esse crime hediondo…) como ovelhas ranhosas que hão-de ficar ostracizadas. E quando o caldo se entorna, faz-se valer a razão da força, a pior das razões: ou a razão fenecida. A pinta do pessoal dos piquetes tira-se ao recuperar páginas debruadas a ouro do regime onde dantes se acolhiam, antes de assinarem o livro da orfandade ideológica. Os sindicalistas gostam de emprestar a sua presença a piquetes de greve e usar da violência, se necessário for, para convencer os renitentes a engrossarem o pelotão dos grevistas. Neles, a palavra democracia faz tanto sentido como procurar crocodilos no mar báltico.
Lá no fundo, há algo de adorável nos piquetes de greve. Esta terra que vive imersa em letargia carece de arrebatamentos, de causas vividas com paixão, do desassombro, de militância que eleva a temperatura da cidadania. Os piquetes de greve são isto. E mais ainda: a confissão de que se pode manipular a mente alheia; que todos os meios têm vencimento, justifiquem eles o grande fim; que se não dobras os adversários pela força da palavra, dobra-os pela força do braço. Acho-os, piquetes de greve, tonitruantes. Vigilantes brigadas assegurando que a obediente e (desejavelmente) acéfala manada segue os pastores (os líderes que ditam a doutrina). Eles, os dos piquetes, são os assanhados cães de guarda que não deixam deserto o templo sagrado.
Apetece cantar loas aos piquetes de greve. Aos que são compostos por exaltados sindicalistas que entram em autocarros e esbofeteiam o condutor que, heresia das heresias, estava a trabalhar. Aos que descobriram imaginativo sucedâneo dos piquetes, boicotando a linha do metro do Porto pela calada da noite, ou como se pode ser ternurentamente covarde. Gosto deles: porque são a linhagem antidemocrática que às vezes passa despercebida aos mais distraídos. Ou isso, ou apenas a confirmação que somos, geneticamente, contemplativos de totalitarismos. Quem não faz por merecer a liberdade (a sua e a dos outros), não é de confiar.
A segunda coisa que me apaixona nas greves é a existência de piquetes que estacionam à porta das repartições, das fábricas. Tentam demover os que desalinham da greve. Seduzem-nos com a retórica sindical, usam a coacção psicológica quando bramem acusações de deslealdade, na ausente solidariedade sindical. Aposto que destacam os melhores em capacidade argumentativa. Os Guterres do movimento sindical emprestam-se à árdua tarefa de espalhar a palavra da verdade, para cativar mais e mais trabalhadores para a barricada dos grevistas.
Em homenagem à liberdade de expressão, os piquetes de greve têm direito à existência. Os militantes do protesto social podem usar da palavra para vingar o convencimento de que ir trabalhar nesse dia é um trunfo para quem é combatido através da greve. A magnitude das liberdades é tanta que as leis do trabalho caucionam plenários durante o tempo de laboração. De vez em quando, os autocarros do Porto recolhem-se à garagem a meio da manhã, porque foi marcado um plenário. Às urtigas os interesses dos utentes: que andem a pé que o exercício físico só faz bem, como o primeiro-ministro faz questão de sublinhar (só) de cada vez que vai de viagem ao estrangeiro.
Se os piquetes se limitassem a usar da palavra, o dano seria irrelevante. O problema é que os piquetes de greve gostam de ir mais além. Não se contentam com a persuasão da palavra. Há histórias de intimidação física, impedindo a entrada dos que querem trabalhar. E pergunta-se: não estão no seu direito, os que querem trabalhar? Talvez este seja um daqueles assuntos em que se convencionou que os direitos individuais devem ceder perante os interesses colectivos. O que fica por explicar é como são determinados os interesses colectivos, e por quem. E se é legítimo sentenciar determinada acção que se impõe a todos os interessados, sem hipótese de dissidência. É que quando tudo assim se passa, não ficam dúvidas quanto ao respeito pela liberdade individual e pela tolerância em relação aos que discordam da opinião manifestada pelo piquete de greve.
São ameaças. São acusações que intuem os “fura-greves” (esse crime hediondo…) como ovelhas ranhosas que hão-de ficar ostracizadas. E quando o caldo se entorna, faz-se valer a razão da força, a pior das razões: ou a razão fenecida. A pinta do pessoal dos piquetes tira-se ao recuperar páginas debruadas a ouro do regime onde dantes se acolhiam, antes de assinarem o livro da orfandade ideológica. Os sindicalistas gostam de emprestar a sua presença a piquetes de greve e usar da violência, se necessário for, para convencer os renitentes a engrossarem o pelotão dos grevistas. Neles, a palavra democracia faz tanto sentido como procurar crocodilos no mar báltico.
Lá no fundo, há algo de adorável nos piquetes de greve. Esta terra que vive imersa em letargia carece de arrebatamentos, de causas vividas com paixão, do desassombro, de militância que eleva a temperatura da cidadania. Os piquetes de greve são isto. E mais ainda: a confissão de que se pode manipular a mente alheia; que todos os meios têm vencimento, justifiquem eles o grande fim; que se não dobras os adversários pela força da palavra, dobra-os pela força do braço. Acho-os, piquetes de greve, tonitruantes. Vigilantes brigadas assegurando que a obediente e (desejavelmente) acéfala manada segue os pastores (os líderes que ditam a doutrina). Eles, os dos piquetes, são os assanhados cães de guarda que não deixam deserto o templo sagrado.
Apetece cantar loas aos piquetes de greve. Aos que são compostos por exaltados sindicalistas que entram em autocarros e esbofeteiam o condutor que, heresia das heresias, estava a trabalhar. Aos que descobriram imaginativo sucedâneo dos piquetes, boicotando a linha do metro do Porto pela calada da noite, ou como se pode ser ternurentamente covarde. Gosto deles: porque são a linhagem antidemocrática que às vezes passa despercebida aos mais distraídos. Ou isso, ou apenas a confirmação que somos, geneticamente, contemplativos de totalitarismos. Quem não faz por merecer a liberdade (a sua e a dos outros), não é de confiar.
Sem comentários:
Enviar um comentário