Já nem o insólito acomete: o Vaticano perora sobre comportamentos rodoviários. Aliás, quem não está habituado à pletórica actividade eclesiástica, que perora sobre tudo e mais alguma coisa, sempre com o direito de doutrinar aspectos que pertencem à mais profunda intimidade da pessoa? As autoridades eclesiásticas parecem ignorar que há espelhos que podem ser colocados diante das suas caras; para verem a figura ridícula de que se vestem quando teimam em condicionar as consciências. E o que é mais problemático é que a teimosia é invasiva de crentes e não crentes. As pastorais e encíclicas e oratórias de bispos e padres deviam começar assim: “esta mensagem destina-se aos católicos”.
Desta vez a igreja lembrou-se de dissertar sobre a sinistralidade rodoviária. A reboque das autoridades seculares que perseguem automobilistas em velocidade excessiva, o Vaticano embarcou na moda e decidiu dar prova de vida através de uma pastoral dirigida a quem tem um volante na mão. O habitual terrorismo intelectual, agora numa expressão que roça o risível: as autoridades eclesiásticas esgotaram o manancial de preocupações com as dores de alma que apoquentam o rebanho que apascentam? Sinal dos tempos, a igreja entra em domínios que sempre foram pertença das autoridades seculares. Faltará a estas exibir ciúme, reclamando pela intrusão em matéria que sempre lhes foi reservada.
Os ideólogos residentes no Vaticano consideram que o excesso de velocidade é um pecado. E as manobras arriscadas que põem em perigo a vida de outros automobilistas também são pecaminosas. É enternecedora esta tentativa de desenhar uma simbiose entre a moralidade católica e o dever perante a lei. Desde que modernidade trouxe a laicização do Estado – e, por arrasto, do direito – que se estabeleceu uma fronteira nítida entre direito e moral. A igreja quer agora misturar a moralidade com o respeito à lei. É uma curiosa deriva que desbrava novas investigações para teólogos e politólogos: até que ponto isto será um retrocesso da igreja, convencida que a moral católica se deve aproximar do império da lei? Ou se é apenas um tacticismo eclesiástico, atando o respeito à lei a padrões morais que entram na metafísica.
Seja o que for, as autoridades políticas que concebem impiedosas medidas de combate à sinistralidade rodoviária terão recebido com agrado este inesperado aliado. E um aliado de peso. Se a coação da lei e das penas cada vez mais graves a que se sujeitam os condutores que prevaricam não fosse suficiente – porque continuam elevados os números de acidentes e de vidas ceifadas na estrada – pode ser que agora as pessoas reconsiderem a ousadia rodoviária. Sobre elas pesa o estigma do pecado, essa lancinante espada que levará a pensar duas vezes antes de deslizarem para além da fronteira da ilegalidade.
Se o mundo fosse o lugar idílico congeminado pela moralidade asséptica de bispos e cardeais, dentro de dias seria possível ver os resultados da pastoral rodoviária: todos os automóveis a circularem na auto-estrada dentro do limite dos 120 quilómetros/hora, ninguém ultrapassaria pisando riscos contínuos, ninguém estacionaria em lugares proibidos (e Lisboa: ou desaparecia do mapa, ou se convertia a outra religião), os condutores seriam todos urbanos pois a linguagem ofensiva deixava de ser o veículo de comunicação preferido. A pastoral desce a este nível de pormenores: como o calão é lesivo da moralidade católica, franqueando o umbral do pecado, até por aí a pastoral aconselha os membros do rebanho a mudarem comportamentos, domando a linguagem indecorosa.
Até agora, os católicos tinham variadas fontes de preocupação para fugirem da voragem pecaminosa. Só não sabiam que a partir do momento em que pegam no volante as zelosas e vigilantes divindades estão de bloco de notas aberto à espera de anotar os deslizes que contabilizam mais um pecado para o rol que pode afastar da redenção celestial. Redobram-se as dores de cabeça dos católicos. Pela parte que toca, talvez por ser ateu e por cultivar um arreigado espírito de contradição, sinto-me tomado por uma intensa pulsão pecaminosa: apetece-me pegar no carro, ir à auto-estrada mais próxima e acelerar, acelerar até aos duzentos quilómetros/hora. Para então me sentir purificado.
Desta vez a igreja lembrou-se de dissertar sobre a sinistralidade rodoviária. A reboque das autoridades seculares que perseguem automobilistas em velocidade excessiva, o Vaticano embarcou na moda e decidiu dar prova de vida através de uma pastoral dirigida a quem tem um volante na mão. O habitual terrorismo intelectual, agora numa expressão que roça o risível: as autoridades eclesiásticas esgotaram o manancial de preocupações com as dores de alma que apoquentam o rebanho que apascentam? Sinal dos tempos, a igreja entra em domínios que sempre foram pertença das autoridades seculares. Faltará a estas exibir ciúme, reclamando pela intrusão em matéria que sempre lhes foi reservada.
Os ideólogos residentes no Vaticano consideram que o excesso de velocidade é um pecado. E as manobras arriscadas que põem em perigo a vida de outros automobilistas também são pecaminosas. É enternecedora esta tentativa de desenhar uma simbiose entre a moralidade católica e o dever perante a lei. Desde que modernidade trouxe a laicização do Estado – e, por arrasto, do direito – que se estabeleceu uma fronteira nítida entre direito e moral. A igreja quer agora misturar a moralidade com o respeito à lei. É uma curiosa deriva que desbrava novas investigações para teólogos e politólogos: até que ponto isto será um retrocesso da igreja, convencida que a moral católica se deve aproximar do império da lei? Ou se é apenas um tacticismo eclesiástico, atando o respeito à lei a padrões morais que entram na metafísica.
Seja o que for, as autoridades políticas que concebem impiedosas medidas de combate à sinistralidade rodoviária terão recebido com agrado este inesperado aliado. E um aliado de peso. Se a coação da lei e das penas cada vez mais graves a que se sujeitam os condutores que prevaricam não fosse suficiente – porque continuam elevados os números de acidentes e de vidas ceifadas na estrada – pode ser que agora as pessoas reconsiderem a ousadia rodoviária. Sobre elas pesa o estigma do pecado, essa lancinante espada que levará a pensar duas vezes antes de deslizarem para além da fronteira da ilegalidade.
Se o mundo fosse o lugar idílico congeminado pela moralidade asséptica de bispos e cardeais, dentro de dias seria possível ver os resultados da pastoral rodoviária: todos os automóveis a circularem na auto-estrada dentro do limite dos 120 quilómetros/hora, ninguém ultrapassaria pisando riscos contínuos, ninguém estacionaria em lugares proibidos (e Lisboa: ou desaparecia do mapa, ou se convertia a outra religião), os condutores seriam todos urbanos pois a linguagem ofensiva deixava de ser o veículo de comunicação preferido. A pastoral desce a este nível de pormenores: como o calão é lesivo da moralidade católica, franqueando o umbral do pecado, até por aí a pastoral aconselha os membros do rebanho a mudarem comportamentos, domando a linguagem indecorosa.
Até agora, os católicos tinham variadas fontes de preocupação para fugirem da voragem pecaminosa. Só não sabiam que a partir do momento em que pegam no volante as zelosas e vigilantes divindades estão de bloco de notas aberto à espera de anotar os deslizes que contabilizam mais um pecado para o rol que pode afastar da redenção celestial. Redobram-se as dores de cabeça dos católicos. Pela parte que toca, talvez por ser ateu e por cultivar um arreigado espírito de contradição, sinto-me tomado por uma intensa pulsão pecaminosa: apetece-me pegar no carro, ir à auto-estrada mais próxima e acelerar, acelerar até aos duzentos quilómetros/hora. Para então me sentir purificado.
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