Há afectos que têm tradução em gestos, numa troca que traz contacto físico entre duas pessoas. Há afectos que se exteriorizam através de um beijo. Outras vezes, num forte abraço. Um afago na face. Ou recolher crianças no regaço, reconfortá-las junto ao nosso arfar tranquilo, como se esse arfar fosse o baloiço que adormece as crianças. Como podemos trazer as crianças de mão dada, pela rua fora, e se o fazemos não é apenas por imperativos de segurança. Os poetas avisam: há palavras que não conseguem captar a essência dos sentimentos. Há gestos singelos, afagos, beijos ternurentos que substituem as palavras já de si tão poderosas.
Certos países auto-convencidos que são as vanguardas da civilização ocidental são percorridos por uma fobia que renega o contacto físico entre adultos e crianças. Conceda-se que a pedofilia se soma às preocupações contemporâneas, tantos os casos hediondos conhecidos, tantas as crianças sumidas nos meandros das redes pedófilas. Saber que a pedofilia é uma praga que deve sem combatida sem quartel não pode motivar a confusão de diagnóstico que perpassa as mentes perturbadas. É lá onde os pais evitam os afagos em público, não vá o vizinho do transporte público ou o transeunte com que se cruzam julgar através de lentes desfocadas e problematizar onde só existe uma manifestação de genuíno afecto.
Da última vez que um louco varreu uma escola à rajada de metralhadora nos Estados Unidos, semeando a morte entre alunos e professores, só nos funerais é que alguns pais de alunos sobreviventes deram conta que nunca tinham abraçado os seus filhos. E que o privilégio de os poderem abraçar era o dom maior que lhes foi agraciado. Sobretudo quando olhavam para o lado e reparavam nos outros pais que choravam a morte dos seus filhos. Estes já não iam a tempo para dedicar os afagos merecidos aos filhos. O que me perturba é ter sabido que havia pais que só ao fim de quase vinte anos de vida dos filhos lhes tinham dado um abraço pela primeira vez.
Os usos sociais diferem de lugar para lugar. E mesmo que haja a tentação para considerar a sociedade ocidental um espaço homogéneo, essa é uma imagem adulterada que desvaloriza idiossincrasias locais. Em Inglaterra, as pessoas cumprimentam-se no dia-a-dia usando as palavras. Mesmo as pessoas que têm mais proximidade raramente se cumprimentam com um aperto de mão, muito menos com beijos. Lembro-me do incómodo de algumas pessoas com que privava todos os dias quando lhes estendia a mão num cumprimento matinal. Até que percebi, só pela observação dos comportamentos, que estão habituados a substituir a saudação que exige contacto físico por uma distante saudação verbal.
Não sei se esta repulsa pelo contacto físico esconde algum trauma colectivo. Ou se as pessoas se resguardam para os entes queridos, a quem fica reservado o privilégio dos afagos físicos, na recôndita intimidade. Há-de haver uma explicação que vá às raízes do problema. Se nem sequer com os filhos – e não estamos habituados a dizer que os filhos são a expressão maior do amor? – cultivam afectos traduzidos em contacto físico, haverá um ensimesmamento de cada um no seu corpo, sagrado altar imune ao contacto com outros corpos? Porventura a risível cientologia sulcou uma tradição ainda antes de se tornar tão popular.
Não me consigo convencer que não há nesse hábito de distanciamento físico algo de patológico. Ou porque as pessoas confundem o significado do contacto físico, achando que um beijo numa senhora é invasivo da sua intimidade, prenunciando outros intuitos que resvalam para níveis mais avançados de contacto físico. Ou porque as pessoas se acastelam em torres de marfim, num isolamento corporal que entretece o rio tão largo que impede a passagem para a outra margem, onde a naturalidade dos afagos seria cultivada. Ao saber que naquela cidade dos Estados Unidos, que tinha sido atormentada pelo ataque ensandecido do suicida, os pais descobriam como era reconfortante abraçarem os filhos que tinham escapado com vida, como era tão gratificante poderem beijá-los ao nascer de um novo dia, é que dei conta que os afagos que são para mim tão naturais são olhados com desconfiança noutros sítios com que nos identificamos culturalmente.
Mal de nós se o uso atravessar o Atlântico, como acontece com tantas coisas neste arremedo de colonização cultural. Mal de nós se nem com os filhos pudermos ser afectuosos. E com os filhos dos outros, dos nossos familiares, dos nossos amigos. Porque aí estaremos na senda da desfiguração dos sentimentos. Dupla origem tem o mal: confundir gestos, na incapacidade de perceber que afagos inocentes não têm segundo sentido; e a fobia de olhar para o lado e sentenciar os comportamentos dos outros.
Certos países auto-convencidos que são as vanguardas da civilização ocidental são percorridos por uma fobia que renega o contacto físico entre adultos e crianças. Conceda-se que a pedofilia se soma às preocupações contemporâneas, tantos os casos hediondos conhecidos, tantas as crianças sumidas nos meandros das redes pedófilas. Saber que a pedofilia é uma praga que deve sem combatida sem quartel não pode motivar a confusão de diagnóstico que perpassa as mentes perturbadas. É lá onde os pais evitam os afagos em público, não vá o vizinho do transporte público ou o transeunte com que se cruzam julgar através de lentes desfocadas e problematizar onde só existe uma manifestação de genuíno afecto.
Da última vez que um louco varreu uma escola à rajada de metralhadora nos Estados Unidos, semeando a morte entre alunos e professores, só nos funerais é que alguns pais de alunos sobreviventes deram conta que nunca tinham abraçado os seus filhos. E que o privilégio de os poderem abraçar era o dom maior que lhes foi agraciado. Sobretudo quando olhavam para o lado e reparavam nos outros pais que choravam a morte dos seus filhos. Estes já não iam a tempo para dedicar os afagos merecidos aos filhos. O que me perturba é ter sabido que havia pais que só ao fim de quase vinte anos de vida dos filhos lhes tinham dado um abraço pela primeira vez.
Os usos sociais diferem de lugar para lugar. E mesmo que haja a tentação para considerar a sociedade ocidental um espaço homogéneo, essa é uma imagem adulterada que desvaloriza idiossincrasias locais. Em Inglaterra, as pessoas cumprimentam-se no dia-a-dia usando as palavras. Mesmo as pessoas que têm mais proximidade raramente se cumprimentam com um aperto de mão, muito menos com beijos. Lembro-me do incómodo de algumas pessoas com que privava todos os dias quando lhes estendia a mão num cumprimento matinal. Até que percebi, só pela observação dos comportamentos, que estão habituados a substituir a saudação que exige contacto físico por uma distante saudação verbal.
Não sei se esta repulsa pelo contacto físico esconde algum trauma colectivo. Ou se as pessoas se resguardam para os entes queridos, a quem fica reservado o privilégio dos afagos físicos, na recôndita intimidade. Há-de haver uma explicação que vá às raízes do problema. Se nem sequer com os filhos – e não estamos habituados a dizer que os filhos são a expressão maior do amor? – cultivam afectos traduzidos em contacto físico, haverá um ensimesmamento de cada um no seu corpo, sagrado altar imune ao contacto com outros corpos? Porventura a risível cientologia sulcou uma tradição ainda antes de se tornar tão popular.
Não me consigo convencer que não há nesse hábito de distanciamento físico algo de patológico. Ou porque as pessoas confundem o significado do contacto físico, achando que um beijo numa senhora é invasivo da sua intimidade, prenunciando outros intuitos que resvalam para níveis mais avançados de contacto físico. Ou porque as pessoas se acastelam em torres de marfim, num isolamento corporal que entretece o rio tão largo que impede a passagem para a outra margem, onde a naturalidade dos afagos seria cultivada. Ao saber que naquela cidade dos Estados Unidos, que tinha sido atormentada pelo ataque ensandecido do suicida, os pais descobriam como era reconfortante abraçarem os filhos que tinham escapado com vida, como era tão gratificante poderem beijá-los ao nascer de um novo dia, é que dei conta que os afagos que são para mim tão naturais são olhados com desconfiança noutros sítios com que nos identificamos culturalmente.
Mal de nós se o uso atravessar o Atlântico, como acontece com tantas coisas neste arremedo de colonização cultural. Mal de nós se nem com os filhos pudermos ser afectuosos. E com os filhos dos outros, dos nossos familiares, dos nossos amigos. Porque aí estaremos na senda da desfiguração dos sentimentos. Dupla origem tem o mal: confundir gestos, na incapacidade de perceber que afagos inocentes não têm segundo sentido; e a fobia de olhar para o lado e sentenciar os comportamentos dos outros.
1 comentário:
Não posso estar mais de acordo, e é importante que alguém o diga assim, desassombradamente. Caramba, qualquer dia não podemos mesmo dar um beijo a um filho, sem que a sombra de uma pulseira electrónica nos venha lembrar o perigo desse gesto de carinho! Perturbado mundo este, que tudo subverteu.
Ana
www.portadovento. blogspot.com
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