Trago sintonizada no carro a Rádio Universitária do Minho (RUM). É a única estação que me permite ouvir a música de que gosto e que escasseia no éter. Costumo dizer, em jeito de brincadeira, que a RUM só devia passar os acordes e não as palavras dos inteligentes animadores de serviço. Há-os no registo intelectual, sempre prontos a disparar aquelas tiradas só ao alcance da compreensão dos que quase furam a escala do QI. Outros destilam descrições ininteligíveis da música que vamos ouvir, desfiando um discurso hermético e insondável. Um registo ao jeito dos intelectuais que embrulham a mensagem no indecifrável, cientes que a turba que os reverencia se fia na sua inteligência superior e, ainda que não perceba duas frases seguidas do que acabou de escutar, aplaude excitadamente o brilho plumitivo.
Há uma rubrica matinal que abre as janelas da opinião a cronistas que se sucedem a cada dia da semana. O altar da opinião arrebatadora. Onde nascem as verdades axiomáticas, misturadas com um moralismo contra-sistémico que caracteriza os desalinhados do “insidioso” capitalismo. Sempre mais do mesmo, com as cambiantes próprias dos assuntos que vão sendo desfolhados. Às vezes, entra no domínio do risível. Anteontem fui apresentado a Manuela Barreto Nunes. Começou, placidamente, por falar de cidades. Das cidades vazias, as cidades despersonalizadas, contra o urbanismo selvático que devia ser criminalizado, denunciando a materialização das relações humanas, estigmatizando o capitalismo e os seus sinais típicos (o preconceito contra as marcas da moda e a surdez da matilha que se apinha nos cafés para ver os jogos de futebol reservados ao “canal dos ricos”; enfim, um ódio visceral aos ricos). Dessas cidades que vão gerando uma casta de excluídos, abandonados ao orfanato pelas políticas públicas que sempre foram tão pródigas com eles. E, num ápice, contra as cidades dos novos descamisados, para tudo se por a jeito para a bastonada em Sarkozy – oh, ignaro povo francês que o escolheste, maldita democracia que é sempre tenebrosa quando ganham os que não deviam ganhar.
A cronista lamenta a França adulterada. Chora-se pela vitória do que, pela sua lente, escorraçou os excluídos, lhes chamou “canalha” e incendiou a fogueira de mais violência. Acusa o comodismo dos instalados quando acusam a violência e a adjectivam como intolerável. Acha que a culpa da violência está no abandono a que os excluídos sociais foram votados. A tese é gratificante para uma certa contracultura que desespera por visibilidade. Estes sectores vivem mortificados com o “grotesco” capitalismo e a “perversa” globalização que alimentam desigualdades. Ah, e a direita devia ser riscada do mapa. A certa altura percebi a intenção da cronista: de mansinho, as cidades que deixam de representar alguma coisa a não ser um aglomerado de amansadas criaturas que querem que os dias passem céleres uns atrás dos outros; de mansinho, mas como atalho para o cerne: chorar uma França que perdeu o rasto à tradição revolucionária que nos legou o tríptico iconoclasta – liberdade, igualdade, fraternidade.
Manuela Barreto Nunes terá desvalorizado a liberdade. Só assim consegue legitimar a violência dos violentos. Aí reside o abastardamento da liberdade. A não ser que a sua concepção de liberdade seja dicotómica: só merece liberdade quem ela gosta, os outros submetem-se à sua douta opinião. Sabemos, da História, os graves desvios que o princípio acautelou. Para memória futura fica a azia e o que ela revelou: a incapacidade para aceitar as regras do jogo eleitoral. Já os eleitores austríacos foram, em 2000, declarados oficialmente ignorantes (pela Internacional Socialista, esse penhor indeclinável) por terem, com o voto, caucionado o segundo lugar dos neonazis e a sua ascensão à coligação governamental. É assim que gosto da democracia: o povo é presenteado com um roteiro quando é convocado a votar. O desvio do roteiro tem uma factura dolorosa: tratado como uma indiferenciada massa de asnos.
A crónica acaba em beleza, na sua esforçada tentativa para legitimar a violência dos excluídos e culpabilizar aquele que foi escolhido pela maioria dos eleitores franceses. Puxa lustro a Brecht (who else…), e ora: “primeiro são sempre os outros. E nós não vemos, não ouvimos, não falamos. Só quando chega a nossa vez, à nossa porta, é que compreendemos que os outros, afinal, somos nós”. Eu profetizo o mesmo, endereçando a profecia a Manuela Barreto Nunes: fosse vítima da violência gratuita, teria o mesmo impulso de legitimar o indesculpável? Talvez nessa altura, na condição de “outro” (vítima), revisse algumas das teses tão fáceis de escrever com a distância do conforto e o preconceito da ideologia.
A RUM há-de continuar a ecoar enquanto conduzo. Preciso de retemperar o espírito consumindo a assertividade das razões tão certas, tão politicamente convenientes. E bebo a música que me conforta.
Há uma rubrica matinal que abre as janelas da opinião a cronistas que se sucedem a cada dia da semana. O altar da opinião arrebatadora. Onde nascem as verdades axiomáticas, misturadas com um moralismo contra-sistémico que caracteriza os desalinhados do “insidioso” capitalismo. Sempre mais do mesmo, com as cambiantes próprias dos assuntos que vão sendo desfolhados. Às vezes, entra no domínio do risível. Anteontem fui apresentado a Manuela Barreto Nunes. Começou, placidamente, por falar de cidades. Das cidades vazias, as cidades despersonalizadas, contra o urbanismo selvático que devia ser criminalizado, denunciando a materialização das relações humanas, estigmatizando o capitalismo e os seus sinais típicos (o preconceito contra as marcas da moda e a surdez da matilha que se apinha nos cafés para ver os jogos de futebol reservados ao “canal dos ricos”; enfim, um ódio visceral aos ricos). Dessas cidades que vão gerando uma casta de excluídos, abandonados ao orfanato pelas políticas públicas que sempre foram tão pródigas com eles. E, num ápice, contra as cidades dos novos descamisados, para tudo se por a jeito para a bastonada em Sarkozy – oh, ignaro povo francês que o escolheste, maldita democracia que é sempre tenebrosa quando ganham os que não deviam ganhar.
A cronista lamenta a França adulterada. Chora-se pela vitória do que, pela sua lente, escorraçou os excluídos, lhes chamou “canalha” e incendiou a fogueira de mais violência. Acusa o comodismo dos instalados quando acusam a violência e a adjectivam como intolerável. Acha que a culpa da violência está no abandono a que os excluídos sociais foram votados. A tese é gratificante para uma certa contracultura que desespera por visibilidade. Estes sectores vivem mortificados com o “grotesco” capitalismo e a “perversa” globalização que alimentam desigualdades. Ah, e a direita devia ser riscada do mapa. A certa altura percebi a intenção da cronista: de mansinho, as cidades que deixam de representar alguma coisa a não ser um aglomerado de amansadas criaturas que querem que os dias passem céleres uns atrás dos outros; de mansinho, mas como atalho para o cerne: chorar uma França que perdeu o rasto à tradição revolucionária que nos legou o tríptico iconoclasta – liberdade, igualdade, fraternidade.
Manuela Barreto Nunes terá desvalorizado a liberdade. Só assim consegue legitimar a violência dos violentos. Aí reside o abastardamento da liberdade. A não ser que a sua concepção de liberdade seja dicotómica: só merece liberdade quem ela gosta, os outros submetem-se à sua douta opinião. Sabemos, da História, os graves desvios que o princípio acautelou. Para memória futura fica a azia e o que ela revelou: a incapacidade para aceitar as regras do jogo eleitoral. Já os eleitores austríacos foram, em 2000, declarados oficialmente ignorantes (pela Internacional Socialista, esse penhor indeclinável) por terem, com o voto, caucionado o segundo lugar dos neonazis e a sua ascensão à coligação governamental. É assim que gosto da democracia: o povo é presenteado com um roteiro quando é convocado a votar. O desvio do roteiro tem uma factura dolorosa: tratado como uma indiferenciada massa de asnos.
A crónica acaba em beleza, na sua esforçada tentativa para legitimar a violência dos excluídos e culpabilizar aquele que foi escolhido pela maioria dos eleitores franceses. Puxa lustro a Brecht (who else…), e ora: “primeiro são sempre os outros. E nós não vemos, não ouvimos, não falamos. Só quando chega a nossa vez, à nossa porta, é que compreendemos que os outros, afinal, somos nós”. Eu profetizo o mesmo, endereçando a profecia a Manuela Barreto Nunes: fosse vítima da violência gratuita, teria o mesmo impulso de legitimar o indesculpável? Talvez nessa altura, na condição de “outro” (vítima), revisse algumas das teses tão fáceis de escrever com a distância do conforto e o preconceito da ideologia.
A RUM há-de continuar a ecoar enquanto conduzo. Preciso de retemperar o espírito consumindo a assertividade das razões tão certas, tão politicamente convenientes. E bebo a música que me conforta.
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