Contribuí para as garbosas estatísticas que esfregam o sucesso do “open day” de Serralves. Ponho-me a pensar: que raio de incoerência me guia, eu que abomino multidões, a ir a Serralves logo no dia em que o museu e os jardins são invadidos pela turba. Será a efusiva celebração das artes, num evento que aproxima a cultura do povo que anda dela divorciado? É verdade: é gente a mais. E é verdade, também, não me parece que o povo se deixe sensibilizar pelas manifestações de arte que apenas são apelativas para as elites. Já é o terceiro ano que a Fundação de Serralves organiza as 40 horas non stop. Pela terceira vez que lá vou, regresso com a sensação que se os frequentadores fossem a amostra representativa do povo, o Bloco de Esquerda ganhava as eleições. O povo, esse continua a preferir as romarias e a “cultura pimba”.
Depois do almoço fui espreitar as exposições no museu. À entrada estava um grupo, umas vinte pessoas que ostentavam à lapela um autocolante azul garrido com letras brancas bem visíveis dizendo “13 horas”. Era o grupo que estava agendado para a visita guiada das treze horas. O cicerone dava as primeiras indicações sobre o museu quando entrei e comecei a ver uma curiosa exposição de Katharina Grosse, “The atom outside the egg”. Ovos gigantes e esferas, estas fazendo as vezes do átomo – presumo – numa policromia incendiária, as cores atiradas por esguichos de spray de tinta para cima dos ovos e das esferas, deitando-se sobre o chão de madeira e as paredes.
O que me prendeu a atenção foi a faceta invasiva da obra. Estamos habituados a ver quadros que se alojam hermeticamente no espaço dedicado nas paredes das galerias, ou esculturas que repousam no meio da sala, num espaço que lhes foi reservado. A obra de Grosse invadia o cenário, com a tinta arrojada para as ripas de madeira do solo, esbarrando-se contra as paredes que ficavam salpicadas dos jactos de tinta de tantas cores. Quando a exposição for retirada, o espaço vai exigir uma intervenção que o reponha na alvura original. A obra não respeita o espaço contíguo. Invade-o, funde-se com ele; os vómitos de tinta que bordejam os ovos e as esferas tomaram conta do chão e das paredes. Há nesta fusão espacial o traço de originalidade da exposição. Que convoca a atenção dos sentidos, daí que os seguranças estivessem com uma atenção de sete olhos impedindo os mais curiosos de “verem com as mãos”.
Não sou um habitué das galerias de arte. Quando vou, gosto de deter o olhar nos quadros. E tentar perceber a mensagem transmitida – quando ela é dada a perceber. Às vezes torna-se difícil discernir o elo comunicacional entre o quadro, o artista e a audiência. Outras vezes as imagens falam com a persuasão das palavras, conduzem até ao destinatário a leitura que as imagens poderosas sugerem. Com a obra de Grosse fiquei com a ideia do aleatório: na escolha dos locais onde assentavam os ovos e as esferas; e na escolha da paleta de cores que pintava os ovos e as esferas. A imagem de conjunto era apelativa. Sintomático, a admiração ecoava das faces dos visitantes. As crianças eram espectadoras embevecidas.
Quando, alguns minutos mais tarde, abandonava a sala o grupo tinha acabado de entrar. A guia introduzia o grupo à obra de Katharina Grosse. O prolegómeno deixou-me aturdido: o cicerone falou em “sinfonia pictórica” para rotular a obra de Grosse. Sinfonia pictórica! Os críticos de arte usam lentes que levam à seguinte interrogação: estarão eles a ver a mesma coisa que os meus olhos acabaram de ver? A especialidade da função permite observar bem além do que estou habituado. Todavia, o exagero na adjectivação leva à adulteração da obra. A arte é um templo subjectividade – duas pessoas podem fazer leituras tão diferentes do mesmo quadro, como se estivessem a olhar para quadros diferentes. Nos intérpretes profissionais da arte há elucubrações que tocam a fronteira da fantasia. Cavalgam na onda da subjectividade. Só me interrogo o que diriam os próprios artistas ao verem os delírios interpretativos dos experts: que estão a olhar para a obra errada?
À saída do museu, dobrando à direita e seguindo por um corredor lateral, vi sobre a esquerda uma árvore isolada que parecia oxigenar as ideias de quem abandonava o museu. A magnólia, esplendorosa no alto da sua idade já adulta, vociferava os devaneios com o verde refrescante das folhas vistosas. Não sei se seria da época, se a sazonalidade é pranto das magnólias, pois o verde das folhas dominava a árvore. Só no alto, uma nascente magnólia. Uns palmos abaixo, uma flor senescente exibida no branco que empalidecera.
Se esta magnólia fosse retratada em quadro, haveria quem a visse com uma profusão de lentes?
Depois do almoço fui espreitar as exposições no museu. À entrada estava um grupo, umas vinte pessoas que ostentavam à lapela um autocolante azul garrido com letras brancas bem visíveis dizendo “13 horas”. Era o grupo que estava agendado para a visita guiada das treze horas. O cicerone dava as primeiras indicações sobre o museu quando entrei e comecei a ver uma curiosa exposição de Katharina Grosse, “The atom outside the egg”. Ovos gigantes e esferas, estas fazendo as vezes do átomo – presumo – numa policromia incendiária, as cores atiradas por esguichos de spray de tinta para cima dos ovos e das esferas, deitando-se sobre o chão de madeira e as paredes.
O que me prendeu a atenção foi a faceta invasiva da obra. Estamos habituados a ver quadros que se alojam hermeticamente no espaço dedicado nas paredes das galerias, ou esculturas que repousam no meio da sala, num espaço que lhes foi reservado. A obra de Grosse invadia o cenário, com a tinta arrojada para as ripas de madeira do solo, esbarrando-se contra as paredes que ficavam salpicadas dos jactos de tinta de tantas cores. Quando a exposição for retirada, o espaço vai exigir uma intervenção que o reponha na alvura original. A obra não respeita o espaço contíguo. Invade-o, funde-se com ele; os vómitos de tinta que bordejam os ovos e as esferas tomaram conta do chão e das paredes. Há nesta fusão espacial o traço de originalidade da exposição. Que convoca a atenção dos sentidos, daí que os seguranças estivessem com uma atenção de sete olhos impedindo os mais curiosos de “verem com as mãos”.
Não sou um habitué das galerias de arte. Quando vou, gosto de deter o olhar nos quadros. E tentar perceber a mensagem transmitida – quando ela é dada a perceber. Às vezes torna-se difícil discernir o elo comunicacional entre o quadro, o artista e a audiência. Outras vezes as imagens falam com a persuasão das palavras, conduzem até ao destinatário a leitura que as imagens poderosas sugerem. Com a obra de Grosse fiquei com a ideia do aleatório: na escolha dos locais onde assentavam os ovos e as esferas; e na escolha da paleta de cores que pintava os ovos e as esferas. A imagem de conjunto era apelativa. Sintomático, a admiração ecoava das faces dos visitantes. As crianças eram espectadoras embevecidas.
Quando, alguns minutos mais tarde, abandonava a sala o grupo tinha acabado de entrar. A guia introduzia o grupo à obra de Katharina Grosse. O prolegómeno deixou-me aturdido: o cicerone falou em “sinfonia pictórica” para rotular a obra de Grosse. Sinfonia pictórica! Os críticos de arte usam lentes que levam à seguinte interrogação: estarão eles a ver a mesma coisa que os meus olhos acabaram de ver? A especialidade da função permite observar bem além do que estou habituado. Todavia, o exagero na adjectivação leva à adulteração da obra. A arte é um templo subjectividade – duas pessoas podem fazer leituras tão diferentes do mesmo quadro, como se estivessem a olhar para quadros diferentes. Nos intérpretes profissionais da arte há elucubrações que tocam a fronteira da fantasia. Cavalgam na onda da subjectividade. Só me interrogo o que diriam os próprios artistas ao verem os delírios interpretativos dos experts: que estão a olhar para a obra errada?
À saída do museu, dobrando à direita e seguindo por um corredor lateral, vi sobre a esquerda uma árvore isolada que parecia oxigenar as ideias de quem abandonava o museu. A magnólia, esplendorosa no alto da sua idade já adulta, vociferava os devaneios com o verde refrescante das folhas vistosas. Não sei se seria da época, se a sazonalidade é pranto das magnólias, pois o verde das folhas dominava a árvore. Só no alto, uma nascente magnólia. Uns palmos abaixo, uma flor senescente exibida no branco que empalidecera.
Se esta magnólia fosse retratada em quadro, haveria quem a visse com uma profusão de lentes?
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