Às vezes, saem notícias de violência policial. Violência exercida nas esquadras, sobre pessoas detidas. Convém recordar que há esteios da civilização de que nos gabamos ser penhores. Um dos esteios do Estado de direito é a presunção de inocência. Quem está preso e é interrogado pela polícia judiciária não é, nesse momento, culpado de nada. Quando os senhores agentes sacam da violência para extrair confissões de crimes, estão a abusar da autoridade. Substituem-se a quem tem a função de julgar. De caminho, atropelam normas elementares da existência de um Estado de direito. E sobra uma interrogação: que confiança podemos ter nesta polícia?
Cansam-se as exibições de utilitarismo grotesco, daqueles que candidamente aceitam que os meios justificam os fins. O que é problemático é que este utilitarismo grotesco tem-se estendido a muitos domínios da vida. Até na polícia, que deve garantir a segurança, mas não pode ignorar regras fundamentais de convivência em sociedade. Quando se sabe que polícias torturaram suspeitos de crimes enquanto os interrogavam, descobre-se a insídia do meio que é legitimado pelos fins. Uma polícia assim – ou polícias assim, que é possível que haja que separar o trigo do joio e acantonar as ovelhas ranhosas – não é de confiar. Pior ainda: uma polícia assim, ou inquinada por polícias que agem assim, é a negação do Estado de direito, quando se esperava que fosse um dos seus esteios.
Tudo isto me traz à recordação coisas esparsas, nos tempos em que fazia tirocínio para a advocacia que nunca viria a exercer. Nesses tempos, os advogados-estagiários tinham que fazer dois plantões no tribunal de instrução criminal. Cabia-lhes a representação das pessoas que tinham acabado de ser detidas e que eram ouvidas pelo juiz de instrução, para saberem se iam esperar pelo julgamento em prisão ou se o iam aguardar em liberdade. Num dos plantões que me calhou, acompanhei dois agentes da polícia judiciária numa busca domiciliária. A casa que íamos visitar pertencia a um suspeito de violação de uma criança. Ao chegar ao pardieiro, num sítio que não me faria supor que os confins estão às portas do Porto (algures perdido na serra de Santa Justa), não estava ninguém. Na viagem de regresso, os dois polícias abriram-se. Retive que se tivessem encontrado o suspeito ele teria sido detido. E quando o depositassem nos “calabouços” – que palavra hedionda! – lhe reservavam “tratamento adequado”. Não arrisquei perguntar em que consistia o “tratamento adequado”. Mas pude imaginar.
No outro plantão que tive que suportar, eram quase seis da tarde, a hora em que encerra o expediente do tribunal. Foram-me chamar: “senhor doutor, não se vá já embora. Ainda vai ter trabalho para algumas horas”. Enquanto aguardava pela chamada para a audiência com o juiz, tentei saber o que me retinha para além da hora. Um polícia informou-me: dois irmãos procurados por roubo tinham-se barricado e responderam com tiros ao cerco dos polícias. Não houve feridos. Os irmãos acabaram por ser presos.
Algum tempo depois, vi-os passar no corredor ao lado. Um ia com a cabeça ligada. O outro trazia a cara ensanguentada. Pediram-me para esperar mais algum tempo, que eles ainda iam fazer uma visita à enfermaria. Inocente, perguntei o que lhes tinha acontecido. Um polícia disse-me, com cinismo: “sabe como é, senhor doutor, caíram…”. Logo de seguida, outro polícia acrescentou: “quando alguém dispara sobre nós, ao chegar aqui tem o tratamento adequado”. Não sei se seria coincidência, mas no segundo plantão que fazia ouvi agentes da polícia judiciária confessarem, com a maior das naturalidades, que dedicam um “tratamento adequado” aos suspeitos que só meses mais tarde se sentam no banco dos réus no tribunal. O tratamento adequado é sinónimo de violência policial.
A violência policial sobre pessoas detidas para interrogatório deixa-me uma perplexidade: se tanto se desaprova o povo rasteiro quando estaciona às portas do tribunal com apetite de justiça por mãos próprias em criminosos da pior espécie, os maus tratos dos polícias não são apenas justiça feita por quem não o está habilitado a fazer? Só mais esta interrogação: que diferença entre a justiça popular e a justiça policial?
Cansam-se as exibições de utilitarismo grotesco, daqueles que candidamente aceitam que os meios justificam os fins. O que é problemático é que este utilitarismo grotesco tem-se estendido a muitos domínios da vida. Até na polícia, que deve garantir a segurança, mas não pode ignorar regras fundamentais de convivência em sociedade. Quando se sabe que polícias torturaram suspeitos de crimes enquanto os interrogavam, descobre-se a insídia do meio que é legitimado pelos fins. Uma polícia assim – ou polícias assim, que é possível que haja que separar o trigo do joio e acantonar as ovelhas ranhosas – não é de confiar. Pior ainda: uma polícia assim, ou inquinada por polícias que agem assim, é a negação do Estado de direito, quando se esperava que fosse um dos seus esteios.
Tudo isto me traz à recordação coisas esparsas, nos tempos em que fazia tirocínio para a advocacia que nunca viria a exercer. Nesses tempos, os advogados-estagiários tinham que fazer dois plantões no tribunal de instrução criminal. Cabia-lhes a representação das pessoas que tinham acabado de ser detidas e que eram ouvidas pelo juiz de instrução, para saberem se iam esperar pelo julgamento em prisão ou se o iam aguardar em liberdade. Num dos plantões que me calhou, acompanhei dois agentes da polícia judiciária numa busca domiciliária. A casa que íamos visitar pertencia a um suspeito de violação de uma criança. Ao chegar ao pardieiro, num sítio que não me faria supor que os confins estão às portas do Porto (algures perdido na serra de Santa Justa), não estava ninguém. Na viagem de regresso, os dois polícias abriram-se. Retive que se tivessem encontrado o suspeito ele teria sido detido. E quando o depositassem nos “calabouços” – que palavra hedionda! – lhe reservavam “tratamento adequado”. Não arrisquei perguntar em que consistia o “tratamento adequado”. Mas pude imaginar.
No outro plantão que tive que suportar, eram quase seis da tarde, a hora em que encerra o expediente do tribunal. Foram-me chamar: “senhor doutor, não se vá já embora. Ainda vai ter trabalho para algumas horas”. Enquanto aguardava pela chamada para a audiência com o juiz, tentei saber o que me retinha para além da hora. Um polícia informou-me: dois irmãos procurados por roubo tinham-se barricado e responderam com tiros ao cerco dos polícias. Não houve feridos. Os irmãos acabaram por ser presos.
Algum tempo depois, vi-os passar no corredor ao lado. Um ia com a cabeça ligada. O outro trazia a cara ensanguentada. Pediram-me para esperar mais algum tempo, que eles ainda iam fazer uma visita à enfermaria. Inocente, perguntei o que lhes tinha acontecido. Um polícia disse-me, com cinismo: “sabe como é, senhor doutor, caíram…”. Logo de seguida, outro polícia acrescentou: “quando alguém dispara sobre nós, ao chegar aqui tem o tratamento adequado”. Não sei se seria coincidência, mas no segundo plantão que fazia ouvi agentes da polícia judiciária confessarem, com a maior das naturalidades, que dedicam um “tratamento adequado” aos suspeitos que só meses mais tarde se sentam no banco dos réus no tribunal. O tratamento adequado é sinónimo de violência policial.
A violência policial sobre pessoas detidas para interrogatório deixa-me uma perplexidade: se tanto se desaprova o povo rasteiro quando estaciona às portas do tribunal com apetite de justiça por mãos próprias em criminosos da pior espécie, os maus tratos dos polícias não são apenas justiça feita por quem não o está habilitado a fazer? Só mais esta interrogação: que diferença entre a justiça popular e a justiça policial?
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