31.10.08

E se fôssemos todos apóstatas?


Temos ideias. Gostamos de exibir convicções. Entretidos com os prazeres da discussão, no que isso faz bem ao intelecto, pretendemos sair de uma discussão de braço dado com o triunfo das ideias. No fértil mercado das ideias, uma revoada de argumentos, um desfile de provas que ora traduzem a superioridade das ideias que nos são queridas, ora são a devastadora denegação das ideias nos antípodas. Quem não gosta de as ter, ideias e convictas? Das assertivas ideias que logo se transformam em certezas insusceptíveis de contestação, logo imperativos categóricos que esmagam os adversários à implacável inclinação diante dos garbosos vencedores no mercado das ideias?


Nestes tempos cheios de complexidade, a única certeza que se perfila no horizonte é a da fluidez das certezas. Mesmo daquelas que se julgam inabaláveis, prenhes de uma autoridade intelectual que não passa de pretensa autoridade intelectual. Neste oceano de intermináveis incertezas emergem apóstatas, humildes ao ponto de admitirem que as ideias defendidas outrora estavam erradas. Ou que essas ideias provam o seu desajustamento aos factos.


Há dias, Alan Greenspan – antigo governador do banco central dos Estados Unidos e ideólogo da desregulação financeira agora tão vituperada – confessou que estava enganado. Disse-o em público, a solenizar o epitáfio do "selvático capitalismo" escrito pelos excitados apóstolos de um novo capitalismo, o capitalismo em que os governantes passam a meter a grossa unha. Greenspan admitiu que errou ao lavrar a carta de alforria dos mercados. Perante os sintomas do vendaval financeiro, Greenspan fez meia volta ideológica. Para gáudio dos que sempre fizeram carrancas à emancipação dos mercados e dos outros que têm uma desconfiança congénita no funcionamento da economia de mercado.


É louvável quando alguém tem a humildade de admitir que as suas ideias estavam erradas. Diria que é um sinal de grandeza de carácter, de grandeza intelectual. Os obstinados das ideias, aqueles que se recusam a admitir que navegam nas águas paradas das ideias, é que ficam para trás. Ao ver a apostasia de Greenspan e as reacções excitadas dos que habitam no hemisfério intelectual oposto, percebo a grandeza do primeiro e a mesquinhez dos segundos. Destes, a pose triunfante de quem se serve da confissão de arrependimento para vincar as suas ideias como acertadas. Sobra a pesporrência de uns em contraste com a humildade intelectual de Greenspan. É desta forma que muitas vezes se perde o rasto à "razão".


Admito que a apostasia de Greenspan actua como um soco pesado e seco nas minhas convicções. E que, por isso, acho abjectas as reacções de entusiasmo dos que se banqueteiam no público arrependimento de Greenspan. Alguns dos vitoriosos do momento já tiverem o seu tempo de apostasia. Já tiveram, lá atrás, as dores do arrependimento que os levaram a repudiar credos de outrora. Saciam a orfandade de referências na meia volta ideológica de um adversário de estimação. Eu apenas me convenço que a fluidez das ideias traz o lacre da incerteza do universo. E gosto de interrogar constantemente as ideais que abrigo no regaço, de as expor ao contraditório ideológico para testar as pessoais convicções.


Se há mérito neste vendaval que reequaciona os alicerces do capitalismo é o de fermentar interrogações às ideias, à minha particular mundividência. Os factos parecem apenas confirmar a demissão de liberais visões do mundo. Um coro entoa, em uníssono, o refrão que quase todos querem escutar: os mercados não podem ter a alforria que tinham, têm que se subjugar à regulação dos sábios – dos sábios que habitam no alcantilado e presciente castelo do Estado.


Da parte que me toca, ando a meio de uma introspecção das particulares ideias. De interrogação em interrogação, já menos convencido nos méritos de mercados emancipados, sentindo que os intérpretes dos mercados não souberam merecer a liberdade que lhes foi outorgada. Só que menos me convenço que a solução está na entrada em cena dos omniscientes engenheiros sociais ungidos de soluções mágicas. Se calhar, todos devíamos ser apóstatas neste momento. E ultrapassar a binária visão do mundo, como se tudo se resumisse a aceitar mercados sem controlo ou ao dogma dos mercados subjugados ao omnisciente controlo das autoridades. O que se requer é uma reinvenção das ideias, uma solução que se liberte do espartilho daquela binária visão do mundo.


30.10.08

Um texto socialmente iníquo


Advertência preliminar: a prosa que se segue é, para muitos, um hino à iniquidade social. Censurável, portanto, se for olhada pelo prisma da consensualidade forçada, dos dogmas que imperam por força da maré politicamente correcta. É um texto que rema para o lado contrário da caudalosa maré.


Neste regresso ao Mr. Keynes de antanho, promovido por políticos excitados com a oportunidade de voltarem a domar os, pensava-se, indomáveis mercados acusados da crise que cavalgamos, vejo argumentos como uma coreografia em falsete. É de bom-tom advogar preocupações sociais, aceitar a redistribuição de rendimentos para que os mais necessitados não sejam abandonados à sua desdita. Quem tiver a ousadia da dissidência, logo apontado a dedo e quase lapidado em praça pública. Como o direito à dissonância ainda não foi banido, exerço-o como voz que rompe a sinfonia patrocinada pelos sacerdotes bem pensantes e por uma classe política inebriada com os tempos sombrios que nos cercam.


Os consultores de quem manda sussurram, por estes dias, a cartilha de Mr. Keynes – o economista que, fosse vivo, não gostaria de ver esta economia tão desregulada, este capitalismo tão desenfreado. Talvez decepcionados pelo mau desempenho dos mercados, ou dos seus agentes a quem acusam dos piores crimes (sem, contudo, chegarem ao disparate do luso escritor laureado com Nobel, que há dias asseverou serem esses crimes comparáveis a genocídio), sopram os soundbytes ao ouvido dos actores proeminentes. Os consultores, também amadores – e assim se acha o fio à meada à tenaz mediocridade dos frouxos líderes esperançados na crise para o deixarem de ser, frouxos. Prova do amadorismo maior: acreditarem que a História se repete. Insistem nas comparações com a crise que começou com o colapso da Bolsa de Nova Iorque em 1929. Só para resgatarem as mesmas medidas, as de Mr. Keynes, que terão sido providenciais para limpar a demorada nódoa da crise que entrou bem fundo na década de trinta.


Do receituário de Mr. Keynes fazia parte a generosidade social. O Estado – supostamente, todos nós – é o bolso sem fundo onde a generosidade encontra manancial. Inerente à nossa condição de membros de uma comunidade onde se exige compaixão com os mais necessitados. Entra aqui a lógica da redistribuição. Nunca um slogan revolucionário assentou tão bem como retrato da redistribuição: "os ricos que paguem a crise", foi pregão pintado à exaustão nas paredes de cidades, vilas e aldeias nos tempos que se seguiram à revolução que depôs a ditadura. Hoje, interpelado por insistentes jornalistas sobre a subida do salário mínimo para 450 euros, o loquaz timoneiro da nação assegurou que é em tempos de crise devastadora que ninguém deve questionar o aumento da generosidade estatal.


Fazer generosidade social com o dinheiro dos outros é tão fácil como eu apostar os testículos dos meus gatos já castrados em como a decisão saiu da cartola porque se lembraram que há eleições para o ano. Vários empresários duvidam da capacidade para pagar este salário mínimo; ocasião para a entrada em cena da gente do costume que metodicamente desconfia das intenções dos azougados empresários, logo acusados de só terem olho para o malfadado lucro. O timoneiro insinuou a existência de uns estudos económicos provando que a competitividade da economia não é afectada pelo generoso aumento do salário mínimo. Será que os houve, esses estudos?


O que me causa espécie: a serem verdadeiros os temores de quem gere empresas (decerto com mais conhecimento de causa do que políticos encerrados nos seus castelos de marfim), esperam-nos falências. Atrás das falências, desemprego. Só então a generosidade custeada pelo orçamento de Estado começará a funcionar, por via da pesada factura dos subsídios de desemprego. Alguns estranharão a linha de raciocínio, interrogando-se: se o orçamento é financiado pelos impostos, se são os mais ricos que mais impostos pagam, onde está o problema? O problema está na lógica da generosidade forçada. Na subtracção de rendimentos que podiam ser destinados a investimentos produtivos, daqueles que criam os sacrossantos empregos que tantos votos garantem aos que adoram adoçar o discurso com promessas de não-sei-quantos empregos que haveriam de ser inventados durante a legislatura.


Odeio adágios populares, mas há um que retrata na perfeição a imperfeição desta lógica da generosidade forçada: tantas vezes vai o cântaro à fonte que num dia se há-de partir. Quando olho para estatísticas que comparam o peso das despesas públicas ao longo do tempo, é uma visão dantesca: um gráfico com uma linha sempre a subir, a do peso das despesas públicas na riqueza gerada. Já chega quase a 50%. Depois vêm os saudosos de Mr. Keynes, de braço dado com os figadais inimigos do capitalismo, fustigar o "neo-liberalismo" e o "capitalismo desregulado", mais outros chavões parecidos. As estatísticas desmentem-no. Para quê regressar a Mr. Keynes se ele nunca deixou de ser o patrono dominante?


29.10.08

O discurso do intelectual


É a muita erudição que se esbofeteia nos comuns. Consigam eles, ao menos, entender a douta inteligência que desfila dessa maneira. Embrulhada em discursos obtusos, convencidos os da casta intelectual que assim se distinguem dos demais exibindo os fantásticos dotes de intelecto. Ouvi-los, excitados com um raciocínio que só eles conseguem seguir, é outro prazer: serve para consumir uma vaidade muito própria de quem se eleva aos píncaros da elite das elites – a elite dos bafejados por superiores dons de intelecto.


E, contudo, quem os consegue perceber? Dos discursos obtusos, a exaltação de tanta erudição, um arrazoado que não passa de um aglomerado de palavras ininteligíveis ao comum dos mortais. É o palavreado obtuso que os coloca – assim acreditam – num púlpito que só os deuses podem tocar. Depois olham de cima para baixo, embriagados com a sua prosápia cintilante. Tão excitados com a retórica perfumada com a essência da sabedoria, nem cuidam que a audiência que os contempla boquiaberta está nessa pose não como sinal de admiração de tão elevada erudição. A audiência está tão boquiaberta como incapaz de reprimir um esgar de quem não consegue retirar o sentido do raciocínio que se encavalita naquele discurso impenetrável.


O que encanta é ser testemunha do orgulho que estes intelectuais têm de si mesmos. Desfilam a sua superioridade que goteja da massa cinzenta, uma gravitas que convoca à admiração dos outros. Daqueles que, das catacumbas da mediania, devem prestar vassalagem. Convencidos que a oratória, ou as peças escritas onde escorre a sua fantástica sabedoria, devem ser a montra da ostensiva prosápia, desmultiplicam a erudição que os distingue. No final, apenas eles perceberam o queriam dizer. Falam para o seu umbigo – e para uma audiência que se convenceu da sua consagração, ou que os consagrou por ter ficado convencionada a sua douta sabedoria.


E também encanta a sua excitação enquanto peroram, longamente, sobre isto ou sobre aquilo. A sua sabedoria vem pontuada pela abertura de horizontes, flexível, cobrindo saberes díspares. O raciocínio tão elaborado, socorrendo-se amiúde da sua vasta cultura, é o refúgio onde se distanciam dos comuns. É lá que os comuns não conseguem chegar. Do púlpito onde esfregam a sua erudição nos demais, intuem que a constelação de sabedoria não será questionada.


Ao discurso hermético que tanto os excita, adicionam a incomensurável bagagem cultural. A intenção esbarra na ininteligibilidade do que dizem ou escrevem. A babugem que escorre da vaidade do superior intelecto dilui-se na incapacidade dos demais decifrarem o que dizem ou escrevem. O que se cristaliza em pose tão ostensiva é um distanciamento entre os peregrinos da intelectualidade e a realidade. Parecem vegetar num mundo imaginado, lá onde as ameias são intransponíveis ao comum dos mortais.


Vê-los imersos no seu imenso garbo é um deleite. Navegam no convencimento da sua inigualável sabedoria, achando-se pastores de um povo que consideram ignaro. Um povo que deve ser apascentado na imensa sabedoria que se abriga no regaço generoso de quem milita na elite intelectual. Eles estão sempre de braços abertos, prontos para aspergir a turba com a sua imensa sapiência. Muitas vezes, o que sobra é um travo amargo: a turba incomoda-se pouco com os prazeres do intelecto. Os sacerdotes da desmedida erudição têm escassa audiência – para além de um séquito que os contempla no acrítico consumo das doutas palavras que escassamente compreendem. Alternativo diagnóstico, porém: o desalinhamento entre o ignaro povo e os generosos sacerdotes da intelectualidade, da imensa cultura abrigada na sua interminável bagagem, porventura apenas o sinal de que pouca gente consegue perceber o que querem dizer.


É para o que serve tanta bagagem cultural, tanta erudição orgástica. Para estes intelectuais se elevarem aos píncaros da sua intelectualidade, tão ufanos dos seus dotes. E tão distantes da gente comum, tão elites, propositadamente encharcados num manto que, acham, os unge com a divina qualidade que ostentam. Eles são os seus próprios deuses.


28.10.08

Vudu Sarkozy


Alguém com muita imaginação, e uma certa antipatia pela figura do presidente da república francesa, inventou um boneco reproduzindo os traços faciais de Sarkozy. O boneco tem uma interessante utilidade para os detractores da personagem: é um peluche muito especial, diria, propositadamente peluche. Só para poder receber os alfinetes que se espetam nele, das pessoas que, através do vudu, procuram exorcizar os seus particulares fantasmas.


Estranho seria que Sarkozy, do alto da gravidade das suas funções, não ficasse indignado. O obnóxio cérebro que teve a inventiva ideia há-de dar com os costados num tribunal. Acusado de ofensa à honra pessoal. Falta saber se a honra beliscada pertence a Sarkozy cidadão, um entre tantos na republicana França, ou a Sarkozy com as vestes do presidente da república em que não se pode tocar nem ao de leve. Fico maravilhado com a aura intocável destes governantes que chamam a si uma respeitabilidade acima de qualquer suspeita, elevando-se a um patamar inacessível ao comum dos mortais. É interessante que, nisto, repúblicas e monarquias pouco se distingam. Ainda há dias li num jornal espanhol que o rei lá do sítio, distraído, nada fez para impedir que um zeloso funcionário do ministério público pusesse no banco dos réus um autarca que teve um deslize e insinuou que sua alteza era corrupta.


Quando estas personagens se alcandoram a um patamar tão elevado, como se fossem muito diferentes da maralha que conduzem, há ali alguma auto-deificação. Uma paradoxal auto-deificação, porventura não surpreendente nas monarquias – pois os reis e as rainhas parecem feitos de uma massa diferente do comum dos mortais, tão especiais, tão providenciais, tão acima da média em tudo o que se envolvam. A mesma conduta em repúblicas é mais difícil de explicar. É, ao mesmo tempo, uma deriva suicida dos republicanos que se querem distinguir da putativa diferente têmpera dos monarcas. No fim de contas, os republicanos que se acham acima do cidadão comum comportam-se como reis sem coroa. E sem os privilégios da sucessão dinástica (se bem que vão abundando os exemplos que trazem a sucessão dinástica para dentro das repúblicas).


Os ofendidos políticos que não perdoam o sarcasmo que sobre eles se abate são pobres de espírito, desprovidos de ginástica mental para serem os alvos do humor alheio. Dessa forma mostram escassa inteligência, pois as suas reacções despropositadas acabam por ampliar a dimensão do sarcasmo de que são alvo. Põem-se a jeito para mais chacota. Pelo caminho, perdem a noção da decência, que se confunde com a exigência em serem respeitados, o que prejudica a possibilidade de serem criticados através do sempre saudável humor. Quem assim exige ser levado muito a sério perde o seu capital de credibilidade. A escassa inteligência mostra-se pelo dispêndio de tempo e energias a combaterem na justiça os que ousaram beliscar o seu intocável estatuto.


No caso de Sarkozy, o episódio do vudu que vai acabar em tribunal é sintomático da patetice que envolve, a cada dia que passa, a figura. É um homenzinho que não hesita em colocar-se em bicos dos pés – talvez pela estatura de minorca que, consta, atormenta os seus sonhos, de tal arte que calça sapatos com uns tacões que artificialmente esticam a personagem nuns centímetros além da sua estatura natural. No cortejo de vaidades pessoais, deve ter agradecido aos deuses a profunda crise que nos cerca: oportunidade para vir todos os dias para a ribalta, com a pose grave tecendo os dantescos diagnósticos que a sua providencial aura há-de permitir ultrapassar. Senhor das suas certezas, até já decretou a renovação do capitalismo.


O frenesim sarkozyano é o fértil terreno para intensas irritações pessoais. Admito, em alguns casos até, de empedernidos militantes de uma esquerda qualquer, motivo para o ódio de estimação. Daí ao sarcástico boneco vudu onde os detractores podem descarregar a ira, ou o cansaço pelas repetidas e aparatosas aparições do cromo, um singelo passo a separar. Como os percebo. De cada vez que vejo Sarkozy passear a sua vaidosa arrogância, os seus gestos espaventosos, a retórica assertiva e cheia de teatralidade, sinto uma súbita pulsão de, ó heresia, ser de uma esquerda qualquer.


Aos indígenas especialistas do marketing, uma interrogação: haverá mercado para o vudu Sócrates?


27.10.08

A lógica do jumento (obras públicas faraónicas durante uma crise)


Ainda a crise, mas a tão incerta crise que ainda só se anuncia. Ouvimos, e lemos, pessoas responsáveis, conhecedoras, descomprometidas politicamente, aconselhar: diante da tanta incerteza, poupemos, cortemos em despesas, sejamos inventivos para poupar ao consumir. Não é tempo para devaneios com o dinheiro que não temos. Poupança, é a palavra de ordem. Por causa da contracção da economia. Mas, sobretudo, por causa de uma crise tão incerta que se assemelha a um quarto escuro para onde somos empurrados e onde não há maneira de o alumiar.


Algures num espaço virtual, vive um governo convencido que a terapêutica para sair da doença é injectar mais matéria viral. É um aborrecimento do tamanho do mundo, esta crise ter aterrado logo quando era mais conveniente abrir os cordões ao orçamento em vésperas de ano eleitoral (em tripla dose). O que fazem os que tomaram o leme em mão? Ignoram os sinais. Ignoram os apelos à prudência feitos por quem sabe da poda. Teimosos, só lhes interessa manter o calendário das obras, das muitas obras quase todas faraónicas. É a gestão do calendário eleitoral a sobrepor-se à lógica. Os catrapázios que ensinam o orçamento cheio de prodigalidades na véspera de eleições levam de vencida análises mais finas, análises mais frias, que sugerem prudência e aperto nas contas.


O que fazem os amadores do governo? Emparedados diante de um dilema, nem hesitam: prossigam as obras públicas, abra-se a torneira do betão. Recuar, nunca: podia roubar votos tão preciosos ao ambicionado triunfo nas eleições. Escondem-se em pretextos. Às vezes, dizem que é diante da crise que abala os alicerces da confiança e que ameaça paralisar a economia que se torna imperativo um orçamento gastador. Outras vezes, tocam na ferida sensível para largas fatias da população: se não for assim, vem aí a maré cheia do desemprego.


Ao primeiro argumento: por que artes de magia são consentidos ao Estado gastos virtuosos, gastos que são especialmente profilácticos em tempo de crise? Por acaso o dinheiro que o Estado gasta é diferente do dinheiro que anda nos nossos bolsos? Existe essa convicção: financia-se com os impostos que pagamos, o tal dinheiro que é fácil de gerir porque é de todos nós e, por isso, é anónimo. Um porém: as agendadas obras deslumbrantes terão que ir buscar financiamento ao estrangeiro, à míngua de rendimentos dos contribuintes indígenas (a fonte está a secar). Eis o paradoxo: nem com os balões de oxigénio que os providenciais frouxos políticos atiram para os mercados há sinais consistentes de mudança na maré da confiança. O que nos espera nesta absurda teimosia? Uma factura muito elevada há-de chegar no futuro. É a lógica de empurrar com a barriga os problemas de hoje, a maneira mais cómoda de convencer as gentes que a crise está domada. Só que depois a bolha há-de estourar. Nessa altura, outros terão as rédeas do poder. O problema já será deles.


Ao outro argumento que ampara os milagres da mão visível: vem aí desemprego e as obras públicas são o dique que o evita. Assim estes amadores assinam com o seu punho a confissão de como só sabem governar à bolina, só com o amanhã como ponto de mira. O depois de amanhã já não interessa. Por mais tempo que as obras se demorem nos estaleiros (é usual: os prazos ficam para as calendas), não se eternizam na fase da construção. Num certo dia, terminam e inauguram-se com pompa. E depois, o que fazer com o exército que teve trabalho temporário nas obras que deixam a impressão digital de um regime? Se isto não fosse suficiente, quem acredita que uma enxurrada de obras públicas, o cartão-de-visita da ostentação de um regime, consegue estancar o desemprego que se adivinha?


A teimosia em prosseguir com as obras públicas deixa à mostra como se comportam os amadores que andam pelo Terreiro do Paço. Agem como comissários partidários. O interesse geral, esse, para as catacumbas do esquecimento. No flagrante contraste entre a necessária contenção que se abate sobre pessoas e empresas, sem folga para o circo do consumo sem dinheiro e para os investimentos, e a abastança do orçamento. Da ilusória abastança que um dia destes vai trazer pesada factura. Cada vez mais me convenço: somos uma terra que se mostra rica, mas feita de gente pobre.


É esse contraste que torna as obras públicas no prelo, altar de sumptuosidade contumaz, uma obscenidade. Contudo, sugerem sondagens, estes ditirâmbicos socialistas levam a água ao seu moinho. A lição: compensa governar através de uma cortina de embustes.

24.10.08

A doença do nacionalismo


"A língua é a minha pátria", Fernando Pessoa


Demora em chegar, a modernidade. A teimosa ancestralidade do nacionalismo que perdura. É comportamental. Arrumamo-nos todos direitinhos nas gavetas delimitadas pelas nacionalidades que calharam em sorte à nascença (ou em desdita, depende da perspectiva). Se há coisa que me irrita é quando perguntam, no estrangeiro, de onde venho, e logo de seguida as pessoas desfilam estereótipos que julgam ser identificação da idiossincrasia nacional. Falam-me ora das sardinhas, ora do fado, ora do encantador Algarve, ora de uma agremiação regional que tinha acabado de levar a palma num troféu europeu de futebol. Como se por ter este passaporte tivesse que gostar de sardinhas, de fado, do Algarve apinhado de inestéticos turistas, ou estivesse entusiasmado com o triunfo futebolístico da agremiação regional.


Este nacionalismo é uma camisa-de-forças que aprisiona a liberdade interior. Por termos nascido num certo lugar, somos nacionais de um determinado país. Imediatamente espera-se que em nós fermente uma solidariedade colectiva com os demais que coincidem na nacionalidade. Não importa que não haja a menor identificação pessoal com o grupo, pois somos ensinados desde tenra idade que os laços de nacionalidade se sobrepõem ao resto. Que interessa que tenha mais afinidades pessoais com alguém de outra nacionalidade, se a formatação instituída me impõe solidariedade por aqueles que coincidem na posse do mesmo passaporte? É um espartilho, isto das nacionalidades. Uma tremenda restrição à liberdade pessoal.


Todos os dias, manifestações de nacionalismo pacóvio. Agricultores que vivem enquistados em tempos de antanho onde se glorificavam as virtudes do "orgulhosamente sós". Encenam patéticas teatralizações, com o dramatismo inane a tomar conta das ruas onde se manifestam. Oferecem leite nacional a quem passa e vertem no asfalto o leite estrangeiro que teima em entrar nas superfícies comerciais. Exigem restrições sobre a venda de leite estrangeiro, como se não houvesse União Europeia e as fronteiras não estivessem abertas ao leite que vem de outros países da União Europeia. Ou pescadores que perseguem camiões que trazem peixe espanhol, violentamente destruindo esse peixe que, ó heresia, ia ser vendido nas nossas lotas.


Há ainda muita gente que prega o infeliz slogan publicitário "o que é nacional é bom". Bem entendida a mensagem subliminar: convoca-se a solidariedade em nome da bandeira vermelha e verde que se deita sobre todos os concidadãos, para que nos convençamos que as coisas aqui fabricadas são melhores que as produzidas no estrangeiro. Como se fosse uma dádiva divina (logo, inexplicável) que nos levaria a preferir o que é nacional, no irracional argumento que "é bom", ao jeito dos não argumentos que apenas explicam "porque sim". Que interessa a minguada carteira das pessoas que compram esses produtos? Em muitos casos, até podiam poupar dinheiro – logo, viver melhor – se não houvesse o apelo à afectividade nacionalista e comprassem mercadoria estrangeira mais barata e de melhor qualidade. É o nacionalismo no seu esplendor irracional.


O fervor nacionalista ultrapassa as fronteiras dos exemplos mesquinhos e toca até quadrantes intelectuais. Vê-se na língua, seja na literatura, seja na música, ou ainda no teatro e no cinema. Há cultores da literatura que se excitam ainda na famosa frase do poeta Pessoa, num incontido orgulho da língua que empregam na escrita, providencial diferença que faria do português uma língua predestinada. Há académicos que vivem ultrapassados pelos tempos e se condoem por verem o português ferido pela entrada do inglês nas salas de aula. Receiam que o português se perca, como se alguém acreditasse que é por aqui que o fantasma da língua morta se abate sobre o português, qual latim dos tempos vindouros cedendo ao inglês em pose de língua franca. Há músicos que se gabam de serem pastores do português cantado, como se a música não fosse universal e a língua que a canta apenas seu instrumento. Chega-se a defender a língua a peito: há por aí um rapper – ou artista do hip-hop, ou lá o que é – que se notabilizou por uma composição em que censura, com uma violência verbal inusitada, artistas nacionais que cometem a heresia de cantar em inglês.


Mas o que interessa tudo isto? O que faz tanta gente distrair-se com os deleites envenenados da nacionalidade, que depressa resvala para um nacionalismo que é tão saloio como insensato? É ao ver estas patéticas exibições de guardadores do rebanho nacional que sinto uma incontrolável pulsão de meter os papéis para a apátrida condição.


23.10.08

A pudica chanceler


Sinal dos tempos que atravessamos: a gente que devia ser responsável e apresentar soluções credíveis para a tão profunda crise financeira que há e para a crise económica que há-de vir, entretida com lamentáveis fait divers. Angela Merkel queixou-se na embaixada alemã em Paris que Sarkozy vomita uma enxurrada de charme sobre ela. À boa maneira do macho latino, Sarkozy acha-se um sedutor (assim como assim, não está para a perna de qualquer um conquistar a, por muitos endeusada, Carla Bruni). Daí o afecto com que agracia Merkel, com indiscretos afagos e profusos beijos quando se cumprimentam. A gélida chanceler não gosta, acha indecoroso.


A começar: será a etiqueta protocolar que obriga a manifestar o incómodo através de interpostas pessoas, os diplomatas dos dois países? Não há confiança para prescindir dos préstimos dos diplomatas e ter a franqueza de passar um discreto ralhete no expansivo presidente francês? Estas coisas resolvem-se olhos nos olhos. Não com a indecente mensagem passada à embaixada de um país, que por sua vez a transmite ao ministério dos negócios estrangeiros do outro país, que finalmente faz chegar o incómodo da donzela ao marialva acusado. Pelo caminho, com fugas de informação, o sumarento episódio aterra nas redacções dos jornais, ganhando foros de incidente diplomático.


Passada a surpresa de o ver retratado como notícia, roubando tempo ao que devia interessar aos políticos e à servil comunicação social, percebe-se: ou é a comunicação social tão enamorada pelo acessório, ou é por estarmos deprimidos por causa da crise e por isso carecemos de entretenimento. O circo recupera a boa disposição das gentes atarantadas pela crise que há e pela crise que está para chegar.


Cavalgo, então, na frívola maré. Leio que o desconforto da chanceler alemã pode ser entendido à luz das diferentes educações que têm no catolicismo e no protestantismo os seus diferentes códigos genéticos. Dizem que os franceses, católicos e latinos, são mais dados à exteriorização do afecto. As pessoas tocam-se sem se sentirem repugnadas pela mão do outro que afaga, sem haver choque por uma saudação se socorrer de ósculos pespegados por carnudos lábios. Ao contrário, os alemães. A frieza de comportamentos com origem no protestantismo. Resguardam emoções, militantemente gélidos. Recusam-se ao espalhafato dos afectos em público.


Algo não bate certo, porém. Os teutónicos são gente que se esconde debaixo de uma carapaça, gente orgulhosa por guardar o domínio das emoções para si (e para os mais íntimos). Os espalhafatosos franceses precisam de contacto físico: como se fosse condição necessária para contagiar os outros com as emoções de quem as deseja libertar. Nisto, os primeiros remetidos ao recato, perseguindo o individualismo das emoções. Os segundos, expansivos, altruístas na partilha (activa e passiva) dos afectos. Contudo, é mais a norte que os costumes são mais liberais. Será mais pela Alemanha que a libertinagem sobe na sua escala. O que introduz a perplexidade: por que se incomoda Merkel com a gelatinosa simpatia de Sarkozy, toda ela embrulhada em salamaleques afectuosos, a mão pousada sobre os ombros da mulher que manda na Alemanha, os espaventosos beijos que trocam à chegada e à despedida?


Tenho teorias. A chanceler está ali a representar a grande Alemanha. Que não fiquem dúvidas que a grande Alemanha não admite que a vizinha França passe a mão pelo seu dorso. Pode haver quem entenda o gesto como uma sublime mensagem de patético paternalismo machista exercido por Sarkozy. E, depois, quem não conhece o pétreo chauvinismo francês? Ou Merkel não gosta do estilo puerilmente charmoso de Sarkozy. Para os seus botões pensará: ele não é charmoso, é sarnoso. Não faz o seu estilo, o que lhe causa repugnância de cada vez que o presidente da França avança em direcção àquele pedaço de território alemão. Ou – derradeira hipótese – ela é admiradora de Bruni e incomoda-se com as investidas de Sarkozy, não vá a cantora primeira-dama ser acometida por uma fúria ciumenta e o caldo das relações diplomáticas entornar-se.


É espantoso como, no meio da crise quase sem precedentes, esta gente ainda encontra tempo para se demorar com esta laia de fait divers. É o espelho da sua tão frouxa têmpera. Quem disse que eles eram líderes? Pobre direita, que mal andas quando entre os teus ícones estão personagens deste calibre.


22.10.08

No restolho das folhas caducas


Ainda não se anunciam os ventos já frescos, o sinal do Outono que tarda – e que chega mais tarda a cada ano que passa –, mas já as folhas se espalham pelas ruas. Fazem a sua cama densa debaixo das árvores que vão ficando despidas assim que o calendário entra pelo Outubro dentro. As amarelecidas folhas, enfraquecidas folhas, desprendendo-se dos seus ramos. Caducam no zénite da outonal estação que é a enseada onde se acolhem já féretros.


As folhas caducas, nesta altura apenas uma saudade do viço que foram outrora. Na sua tonalidade acobreada que toma contas das ruas, antes dos homens do lixo as virem recolher, encerram a nostalgia maior. Lacram as memórias de uma juventude vigorosa, aqueles tempos em que havia pressa de viver tudo ao mesmo tempo, como se o mundo fosse chegar ao fim ao cabo do dia seguinte. Eram os tempos em que tudo era vivido na sua vertiginosa velocidade. Sem oportunidade para os sentidos se demorarem nas imperceptíveis, mas contudo arrebatadoras, dádivas da vida, tamanha a pressa de passar por tudo.


As folhas tombadas, as folhas que esvoaçam anarquicamente quando o vento se levanta, são a testemunha desses tempos de insaciável consumo da vida. As folhas caídas que emolduram o Outono são um sinal paradoxal, a inexacta expectativa da nostalgia dos tempos perdidos no sótão das memórias. É que essas folhas não regressam às árvores de onde tombaram. São, elas mesmas, os vestígios de um tempo que deixou lá atrás a sua marca indelével. Se há lição vertida pelo restolho abundante que a outonal estação semeia nas ruas é a aprendizagem do tempo – um templo de onde se soltam as ondas que amansam a voragem da vida. Como se aquelas folhas, entretanto adormecidas no seu leito fatal, mostrassem a inutilidade da existência que teima em ultrapassar-se na pressa de viver. As coisas, todas as coisas, pertencem ao seu tempo.


Desenganados os que se entristecem nos sombrios dias de Outubro, quando as árvores vão emagrecendo em folhagem à medida que as ruas se enchem das caducas folhas. Nem a conjugação de elementos, que parece um convite à melancolia – os dias plúmbeos, o vento agreste, as primeiras chuvas que adivinham a impiedosa invernia, as roupas que acamam o corpo –, tem a força suficiente para entregar os corpos na letargia de quem se deixa derrotar pela melancolia outonal. Ao contrário: a escondida beleza do restolho composto pela folhagem em decesso. O acobreado das árvores ao longe, os castanheiros que se tingem de avermelhadas tonalidades, eis a magia de uma nova paleta de cores. Mudança. O Outono no seu esplendor revelado ao rejeitar a monotonia do estio já extenuante.


A beleza do quadro onde domina a cama de folhas caducas. Das folhas que crepitam quando são calcadas, ou das escorregadias folhas quando humedecidas pelos primeiros suores nocturnos que se condensam em gotas orvalhadas. É todo um respiradouro que renova a paciente existência. Pelas folhas que se entregam na sua tão bela sepultura, trinam os sinos que ecoam pelas profundezas do pensamento. Avisam que insistir na vertigem do tempo é um passo em falso, um tremendo equívoco, os sentidos permanentemente deixando escapar as pequenas coisas que a pressa impede de reter. As pequenas coisas que encerram o sabor mais intenso da existência.


São as folhas secas, no seu leito fatal, que o ensinam: pode a existência esbarrar na incómoda curta duração – pois a vida é sempre curta, por mais que se delongue. Apressá-la, na fobia de sorver toda a sua sumarenta seiva, porventura a traição maior aos que vivem tão desalmadamente. A tranquila cessão das folhas, que não seja o falsário altar onde os endemoninhados da vida voraz acabam por chegar à meta tão antes do tempo. Só então hão-de reparar como foram atraiçoados pelos corsários que os levaram à vertiginosa forma de vida. Quando forem folhas caducas, saberão.


21.10.08

Da triunfante abstenção


Vejo os socialistas, ufanos com mais uma vitória eleitoral. Dizem que esmagaram a concorrência nas eleições regionais dos Açores. Maioria absoluta. No continente, o encantador aparelho socialista refina análises que nem o mais amador dos aspirantes a politólogo seria capaz de fazer: insinuam extrapolações das ilhas açorianas para o continente, um wishful thinking que procura antecipar o resultado que eles queriam que acontecesse nas eleições legislativas do próximo ano.


Escorrem vaidade, os socialistas lá dos Açores, com o oportunista amparo dos companheiros continentais. Apagam dos registos dois percalços que ofuscam tão feérica vitória por eles reclamada. Primeiro, perderam um deputado. Sinal de que houve menos gente a concordar com a reeleição dos socialistas. Dirão, passando a esponja neste dado, "pormenor irrelevante". Segundo, a abstenção foi superior a 50%. Foi maior o número dos que não foram votar do que os votantes no partido socialista. Esta é a dor maior que os socialistas varrem para debaixo do tapete. A dor que não convém revelar. Não vá ela beliscar a espampanante vitória. A habitual pesporrência dos que se olham do alto da putativa superioridade impede de julgar a gravidade de tão elevada abstenção. Não foi uma vitória cor-de-rosa. Quem saiu triunfante destas eleições foi a abstenção.


Foi a primeira vez, desde que a democracia trouxe o hábito de eleições, que a abstenção ultrapassou 50% em eleições para órgãos legislativos. Poucas menções ao fenómeno. Do César que vai continuar a mandar nos Açores uma breve referência, deixando pelo caminho a sugestão que para a abstenção terá contribuído a desactualização dos cadernos eleitorais. A lengalenga do costume de políticos que convivem mal com elevadas taxas de abstenção: ou há muitos eleitores inscritos que por esta altura já habitam cemitérios, ou é o específico caso dos Açores que continua a exportar muita gente para outras terras. Espantoso argumento, por ser proferido pelo presidente do governo regional açoriano: pois se as gentes continuam a emigrar aos magotes, é sintoma de que a vida nos Açores continua a ser madrasta. Por sua vez, sinal da inépcia de quem lá governa – e há mais de dez anos.


A abstenção é a filha bastarda do sistema político. Incompreendida, desvalorizada. Apoucada, até, quando os abstencionistas são atacados por, dizem os críticos, se demitirem de um dever político fundamental. (Seria altura para enxertar aqui contra-argumentação: antes de ser dever, votar é um direito. Para o objectivo do texto de hoje, essa discussão não vem ao caso.) A abstenção é a mágoa dos políticos profissionais, dos que vão a eleições e ficam tristes por dentro por haver tanta gente que não vota num deles. Continuo convencido que há muita abstenção que não se explica apenas pelos cómodos argumentos desfiados por políticos profissionais e analistas a soldo – a praia estava apetecível, ou havia um jogo de futebol que desviou as atenções (como se um jogo de futebol durasse das oito às dezanove horas…), ou as pessoas foram para fora durante o fim-de-semana, ou apenas não se interessam em escolher que os vai governar. Nunca por nunca a abstenção é sinal de desconfiança no sistema político e nos seus medíocres intérpretes.


Ainda que as eleições regionais nos Açores sejam específicas, há outra extrapolação a tirar: uma abstenção sem precedentes desmente uma teoria que tem feito furor por estes dias. Dizem alguns que diante de uma crise tão profunda e perante tempos vindouros tão incertos, as pessoas se refugiam nos actuais governantes. Neles depositam um elevado capital de confiança, esperando que sejam capazes de encontrar soluções para ultrapassar a crise. O que reforça as actuais lideranças e funciona como balão de oxigénio para aqueles líderes que estavam a descer na ladeira da credibilidade. Em si, a teoria é contestável. Francamente, acho-a esotérica. A ser verdade o que preconiza a teoria, as gentes entregam-se aos políticos do momento como se entregam à religião quando estão a viver momentos aflitivos. Há muito de metafísico nesta teoria.


A elevada abstenção nas eleições dos Açores destrói os alicerces desta inusitada teoria. O facto de haver tanta gente que se recusa a escolher um entre tantos concorrentes às eleições também pode ser interpretado como sinal de que essas pessoas (mais de metade do eleitorado) descrêem nas capacidades dos políticos para matarem a crise.


20.10.08

Um sonho por dentro do sonho


Havia múltiplas caixas que se encaixavam em caixas por sua vez maiores. O desdobramento dos sonhos. Até que se perdia o rasto ao sonho principal, ao sonho originário. A certa altura, nem sequer se distinguia a vida desprendida de sonhos da cornucópia de sonhos nos seus infindáveis desdobramentos. Uma espessa teia que restringia o discernimento. Ao destapar a caixa que encerrava um sonho, logo de seguida outra caixa perfilava tentador, porque desconhecido, sonho.


Por vezes tinha a impressão que a espessura onírica era apenas um refúgio. Da vida presente, dos cansados olhos que se fustigavam com a realidade em redor. A cada sonho mergulhava em lugares fantásticos, lugares que não figuram na geografia do mundo. Desses imaginados sítios brotava uma fonte inesgotável. Era como se a cada sonho se renovassem as forças que os olhos careciam assim que regressassem do profiláctico sonho. Paradoxalmente, desdenhava do sono. Teimava: era tempo gasto, um tempo inútil em que a vida ficava por umas horas remetida à letargia. Na sagração da sempre tão curta vida, o sono era um absurdo atentado, o perturbante mistério que rejeitava a sagração da vida. A menos que da riqueza da vida fizessem parte os nutridos sonhos em que a mente se abraça enquanto o corpo repousa.


Não que os sonhos fossem o repositório de paradisíacos cenários onde as angústias da vida acordada fossem compensadas. Havia-os maus, os sonhos. Havia-os, e muitos, surrealistas. Como havia a visitação de incomodativos pesadelos. Os sonhos tanto dispunham como indispunham, consoante as cores de que vinham tingidos, o sabor ora adocicado ora ácido que emprestavam ao despertar.


Com frequência, no momento em que o sono dava lugar à alvorada, havia uma linha ténue que não deixava distinguir se o sonho tinha já terminado ou se eram os sentidos já despertados do torpor do sono. Um limbo em que os sonhos pareciam prolongar-se para a vida sem sonhos. Às vezes, apetecia prolongar esse torpor e regressar ao sono, mergulhar nos apetecíveis sonhos que tinham terminado. Sempre melhores que a vida que esperava pelas horas seguintes.


Era nessa altura que tudo se parecia compor como se houvesse um sonho dentro do sonho. Ou como se a vida fosse o sonho maior, uma dimensão imperceptível que aprisionava os sentidos a uma tremenda ilusão não revelada. Ou, que assim não fosse, mas que assim fosse desejado todo um percurso. No contraste entre os idílicos sonhos e os pungentes cenários que se desfraldavam em redor para os olhos acordados. No fundo, os olhos que pareciam acordados, mas os olhos não acordados, possuídos pela anestesia do sonho maior – do sonho contínuo, interminável. Dele irradiavam os sonhos menores, os sonhos que se renovam a cada noite em que o corpo cansado exige o lastro do sono. Do alto contraste entre os sonhos vários, ficava sem saber se de algum deles ecoava uma melodia tingida com as pétalas da realidade.


Os sucessivos sonhos, os sonhos nos seus múltiplos desdobramentos, eram como círculos concêntricos. Problemas, ou promessas, nunca findados. Ramificações incessantes, num mapa complexo sem pontos cardeais. No caos instalado, os sonhos abraçavam-se em profusos ramos de onde nasciam outros ramos – sonhos com cores diferentes, personagens diferentes, afloramentos do sonho maior (a imaginada realidade, ou a realidade elevada ao patamar de imaginação), ou sonhos no seu contraste com o sonho maior, apenas ingredientes do sonho maior. A certa altura, uma constelação de sonhos, o ininteligível mapa do caos instalado. Todos os sonhos, um amplexo tomando conta do corpo inteiro, num asfixiante abraço. O corpo todo tomado pela miríade de sonhos, já impossível de distinguir entre a matéria onírica e a espessura do corpo.


Sonhos, têm todos um sentido? Mas o que interessa a hermenêutica dos sonhos? Parece que a hermenêutica dos sonhos é a fábrica onde os sonhos se entregam no seu interminável desdobramento. Já sem saber onde termina o sonho, ou sem perceber se a hermenêutica tarefa não é ela mesma uma derivação do sonho que interpreta. Se calhar, os sonhos apenas se degustam. Não são matéria para demoradas exegeses. O sonho, sonha-se.


17.10.08

As coisas nas suas cores


Terias que te convencer: que as coisas, todas as coisas do mundo, não são um fogoso repositório de sombras. Onde apenas triunfa a escuridão, uma asfixiante tirania que veda as cores aos olhos das pessoas. Terias que te convencer que as cores irrompem na sua clareza. As cores, monumentos maiores que emprestam a vivacidade que derrota a letargia dos vencidos.


Daqueles lugares onde habitam sorumbáticos seres, encravados nas suas indecifráveis trevas, grita um contagiante, aflitivo apelo a deixar o corpo enlear-se pelas areias movediças onde o pensamento se torna inerte. Tudo se passa como se a recusa das cores fosse a opressão do espírito livre que vê as asas seccionadas. As trevas onde todos são convocados para um rastejar digno dos vermes. Só sombras, vultos disformes – e os próprios corpos rastejantes decantados na sua disforme condição. A aliciante tentação de te abraçares aos sisudos dias onde todas as cores são assassinadas. Uma deriva fatal. Os espelhos onde as sombras se reproduzem são o altar onde repousam as cores. Cores sem sal, apenas os muitos matizes do negrume.


E, contudo, as coisas estão embrulhadas nas suas maravilhosas cores. Repousam nas portentosas cores adormecidas na recusa em serem reveladas. Adiam-se, sempre para um depois que tarda em chegar, aprisionadas na densa cortina de vultos e sombras onde se semeiam todos os alçapões onde o corpo cai com estridência. Nos dias que se sucedem, apenas a teimosia da demissão das cores, um suicidário apelo vindo das profundezas do ser, os dias sempre tristonhos. Uma pesada camada de plúmbeas nuvens que adeja sobre a cabeça. Pesa sobre a cabeça e arqueia o dorso na existência compungida. Diria: um legado da totalitária educação pontuada por dogmas metafísicos.


Os olhos, treinados para a traição das sombras onde vagueia a obscuridade. Tudo se revolve na sua opacidade. Ou parece entregar-se a essa opacidade, na fatal demissão de si. A doentia fuga dos dias aspergidos por uma coreografia de cores, todas as cores numa desenfreada embriaguez, caoticamente atropelando-se umas às outras. Mas cores. Uma paleta onde as cores são tantas que é difícil escolher um punhado delas para pintar a existência. O pior é que sabes que as cores existem, algures. E teimas no refúgio das esquálidas sombras que escondem a têmpera das coisas. Teimas em contemplar o sacrário onde navegam os vultos indiferenciados, todos empenhados na tacanhez das ausentes cores.


Temes a beleza das cores? Temes a libertária função das cores? A acomodação à procissão das sombras, um hino à indiferença do ser – à indiferença de todos os seres. Um comodismo que é demissão do ser. Há quem fique apaziguado com o ordeiro rebanho que toma a traiçoeira estrada plana onde só são admitidos os que assinam o contrato da acrítica existência. Cedem à convocatória dos sacerdotes a quem convém a negação das cores. Os sacerdotes, conscientes de que a contemplação das cores libertaria as amarras do ordeiro rebanho. Que jamais o seria, assim que tomasse conhecimento da beleza das coisas nas suas esplendorosas cores. Quem aceitaria recuar à mesquinha existência?


Podem as cores alimentar dissabores. Podem as cores causar episódicas náuseas, pois nem todas as cores espelham agradáveis sensações à vista. Nem que cores haja a fazer notar alguma repugnância espontânea, seriam preferíveis à impenitência das sombras que são o teu espartilho. Porém, persistes na acomodação malsã que te agrilhoa. Como se a liberdade em ti fosse maleita terminal.


O mundo todo a preto e branco, um mundo pequeno que se encerra na sua mesquinha concha. Nem é do exterior que a medonha escuridão te protege. É da incomodativa existência que questiona, metodicamente interroga todos os alicerces das coisas. Debaixo das fundações enraizadas das coisas, serias capaz de as discernir nas suas cores. Que assim não passam de miríficas promessas que não chegam a sair do casulo dos sonhos, aquelas promessas sempre agendadas para o depois que nunca tem lugar. Houvesse ao menos vontade. Vontade para espreitar para as coisas pelo seu lado oculto. Porventura haverias de descobrir o adiado hino ao optimismo. Até serias o seu emérito compositor.


16.10.08

Em pose para a fotografia (tristes figuras)


Tarefas ingratas. Daquelas dão sempre resultados insatisfatórios. Pôr a cara a jeito de uma fotografia que seja o retrato oficial, por exemplo. Ensaios atrás de ensaios, de um e outro ângulo, num impossível esforço para o rosto ser captado em pose natural. Sempre fotografias que são difíceis de digerir, que entram a contragosto na sensibilidade dos olhos que são os juízes mais exigentes da figura tecida através da câmara fotográfica.


Quando isto acontece, apetece-me oferecer uma silhueta imperceptível, como se fosse impossível distinguir a cara que se resguarda na silhueta por sua vez refugiada na cortina de sombras. As fotografias "tipo passe" são o lacre de desagradáveis impressões. Assim que as retiro do invólucro, uma imediata sensação de estar a fitar um desconhecido. A cara retratada não parece a minha. Invariavelmente, fico mal no retrato. E estranho que o rosto emoldurado no retrato pareça diferente do rosto que habita todos os dias no espelho matinal. Porventura, um espelho generoso. Ou as fotografias, incapazes de reter os traços fidedignos do rosto nos seus tempos habituais. As fotografias, um embuste.


Há lugares que exigem fotografia do rosto como cartão-de-visita aos visitantes desses lugares. A fotografia revela o rosto de quem habita nesses lugares. Páginas pessoais na internet, páginas profissionais, folhetos que apresentam a pose estudada do chefe de alguma coisa, etc. Onde tenho esbarrado em poses mais ridículas é em lugares onde há gente que julga pertencer a um qualquer tipo de elite. Ontem vi na televisão uma reportagem que ensinava truques para as gentes lavarem uma "vida positiva". A reportagem desfiava o enfadonho rosário de milagres da "vida positiva", com a assinatura de uma especialista vinda da psicologia.


No início da reportagem, os espectadores foram informados que as sugestões miraculosas eram da autoria de uma "investigadora na Universidade do Minho" (não retive o nome). Passou, por um punhado de segundos, a imagem do rosto da investigadora. Ocupando todo o ecrã. Os lábios semi-cerrados, esboçando um suave sorriso. Notava-se pelo brilho dos olhos que a senhora sabia do que falava, pois tanto brilho só podia ser sintoma da "vida positiva" que ela consegue levar. A pedra de toque no breve retrato filmado da cientista: o queixo amparado pelo dorso de uma mão, que erguia a cabeça com ligeireza num inaudível lampejo de altivez. Há variações desta pose. A mão amparando a parte lateral da cabeça, com dois dedos negligentemente movediços sobre o nariz ou sobre os lábios. Ou só as pontas dos dedos em assistência à parte lateral da cabeça. Ou a mão toda como sustentáculo do rosto, acamando-o nas rugas da palma da mão desde o queixo até às imediações das orelhas.


Uma interrogação: fica a pose mais grave, e portanto respeitável, se as mãos subirem ao nível do rosto e forem seus bordões que lacram a gravidade e a respeitabilidade do retratado? Se há função que essas fotografias não conseguem cumprir, é a de exteriorizarem naturalidade. São poses forçadas, fabricadas, altivas. De quem parece querer passar ao mundo uma superioridade em qualquer coisa. Poses pretensiosas. E poses ridículas, se a subjectividade mo consentir. As tristes figuras que andamos a fazer nos retratos que nos oficializam aos outros, principalmente quando dar o nosso melhor acaba por nos embrulhar no manto da ridicularia.


Estarei errado, talvez. A interminável fila de rostos suportados por mãos ou dedos ou mãos e dedos em modalidades variáveis coincide com estética que vem de outros caminhos. Ao contrário do meu diagnóstico, muita gente enamorada pela pose estudada em que o rosto e as mãos trocam os passos na valsa fotográfica. A subjectividade da estética trata do resto. No que me diz respeito, essas fotografias cheias de solenidade e carentes de naturalidade são um baú onde encontro o kitsch na sua pureza.


E por que temos que oferecer o rosto ao mundo, como se o rosto fosse noiva prometida ao ávido mundo? Na antítese da popularizada pose, há quem se esconda de retratos, impenitentes objectores da face desnudada em fotografias trazidas ao conhecimento geral. De Herberto Hélder não há conhecimento de fotografias recentes, por recusa militante do poeta. Tenho para mim que entre a exposição de poses ridículas e o recolhimento da figura, prefiro a discrição do último.


15.10.08

Tristes veteranos


Veteranos de outras guerras. De guerras para eles sempre perdidas. Na fauna particular do meio universitário, estes veteranos fazem as vezes de parasitas. Demoram-se nos bancos da universidade. Dir-se-ia, em jeito de sátira, que por gostarem tanto do que lhes é ensinado vão uma e outra vez, e outra ainda mais, fazer exames. Simpaticamente, prometem-se como clientes para o seguinte ano académico. Ufanam-se do estatuto de veteranos que lhes dá especiais benesses na hierarquia estudantil. Um estranho universo, este: onde os parlapatões andam nas palmas das mãos dos servis pares e exigem aristocrático tratamento e respeito a preceito. Um grito da mediocridade estulta.


Um dia destes cruzei-me com o veterano do momento. Vinha amparado no cajado peculiar que distingue o veterano estudante, o mais velho a quem os outros, e sobretudo os caloiros, devem prestar acrítica vassalagem. O cajado é uma colher de pau de gigantescas proporções, quase do tamanho do veterano. Pelos vistos, nem tão colossal colher chega para que sorvam generosas quantidades de caldo de sabedoria. Pudera: na insólita lógica de "socialização estudantil" o estatuto do veterano é o mais invejável.


Dizia: cruzei-me com o veterano de serviço, que tinha estacionado diante de três imberbes mas esculturais raparigas. Julgo, seriam caloiras estudantes, tal a pose do veterano e dos acólitos que o acompanhavam. Impunham-se às raparigas. O veterano insinuava-se no charme só típico da aristocrática pose que os veteranos chamam a si. Salivava, com abundância, ali parado a admirar as curvilíneas neófitas estudantes. Pareceu-me que as jovens estavam a dar trela ao paspalho. Percebi então: há quem vá na lengalenga dos imbecis veteranos. E assim os veteranos se apropriam da sinecura que ocupam na "hierarquia" estudantil para irem coleccionando conquistas. Percebi, enfim, a compensação que paga o largo tempo que se arrastam na universidade. Não é tanta a vergonha da veterana condição, as reprovações umas atrás das outras: ano após ano, vão engrossando o bornal das conquistas femininas, juntando ao pecúlio mais algumas ingénuas que sucumbem à léria inconsequente.


É a pobreza de espírito que se decanta. A mesma pobreza de espírito que preenche o desértico terreno a que pertence a "tradição" das praxes académicas. Os seus defensores continuam agarrados à ideia de que é pela praxe que os novos estudantes se socializam. Na maior parte das vezes, uma inaudita socialização que passa por humilhantes actos. Neste código muito particular, o servilismo ao veterano é uma extensão de um anacronismo que se confunde com tradição. O veterano é carinhosamente tratado por "dux veteranorum" – um latinório que apela às ancestrais tradições, e uma expressão que contém em si as sementes de um anacrónico e desigual tratamento aristocrático. Estas avantesmas são "duques" e, como duques que se julgam, exigem tratamento a preceito. Quem ousar faltar ao respeito comete o crime de lesa-majestade – um inadmissível atentado contra as "tradições académicas". E as tradições respeitam-se, não se interrogam. Nem que sejam abjectas tradições.


É pena o que sinto pelos veteranos que se arrastam na contumácia de aulas e exames. Nos bancos da universidade, pouco frequentados que os muitos afazeres que se exigem ao "dux veteranorum" não deixam agenda livre, têm pouco tempo para alguma coisa aprenderem. Preferem os deleites enraizados pela acéfala "tradição académica". Através das benesses inerentes ao estatuto fazem o tirocínio para uma inútil forma de vida em que se vão treinando na demorada estância universitária. Os anos vão passando, as aulas vão anotando a sua ausência, os exames, os poucos exames a que se decidem propor, uma via-sacra de reprovações. Pelo caminho, vão delapidando o erário familiar, com os progenitores a sustentarem a parasita forma de vida.


A tacanhez fatal, o aproveitamento do privilegiado estatuto do mais velho a quem todos se devem desmultiplicar em intermináveis genuflexões. Com uma extensão muito marialva – sem surpresa, ou não dominassem as tradições às quais as interrogações são impedidas: os "charmosos" veteranos, o charme que vem de arrasto pela sinecura que ocupam. Anotei a água na boca que escorria com abundância daquele "dux veteranorum", coitada criatura que não fosse o privilégio que ostenta do alto do seu particular cajado decerto andaria pelas ruas da amargura na satisfação dos apelos vindos das profundezas das hormonas. Nessa altura apeteceu-me resvalar para um infantil duelo (não estivesse obrigado à monogamia).


14.10.08

Solidariedade com Lino


Até já foi motivo de paródia num programa de humor da televisão. Corro o risco de perder em originalidade, pois os humoristas disseram o que já tinha agendado dizer há dias (o assunto estava a aguardar, na fila de espera, ocasião para ser tratado). O episódio aconteceu há já uma semana, quando o ministro Mário Lino foi apanhado a dormitar enquanto sua excelência, o presidente da república, orava.


Se calhar o ministro punha-se a jeito para o enésimo episódio em que a chacota tomba sobre si. Ele tem-se distinguido mais pela incontinência verbal (e, diria, mental) que acaba por se voltar contra si. Quem se esqueceu do maravilhoso "Alcochete, jamais", quando mais tarde seria Alcochete a ser escolhido para receber o aeroporto? Quem se esqueceu de declarações de terrível mau gosto, como a que proferiu depois do acidente aéreo em Madrid, puxando a razão a si ao chamar a atenção para a insegurança do aeroporto de Lisboa? A traição do sono em pleno discurso de Cavaco seria mais um acto do anedotário que cobre Lino, o ainda ministro que só o é porque ao leme segue uma seita de amadores.


Tudo ao contrário do que seria provável, contudo. Quando vi as fotografias de Lino imerso num sono profundo enquanto sua excelência o inquilino de Belém perorava, contrariei o impulso espontâneo de apedrejar o patético ministro. Os habituais críticos da personagem que parece ter sido talhada para a crítica fácil podiam vergastar o ministro atraiçoado pelo sono. Até os lídimos representantes da muito institucional maneira de olhar para o mundo poderi-se-iam sentir ofendidos pela falta de sentido institucional do ministro, aquele sono a exibir uma inadmissível falta de respeito por sua excelência que discursava. Da minha parte, um improvável acto de solidariedade com inepta personagem: Lino adormeceu durante um discurso, um longo bocejo é o que é, de Cavaco. Nisso, assino por baixo a peça satírica dos humoristas.


O que sinto de cada vez que vejo ou ouço Cavaco discursar? A irreprimível vontade de interrogar: as aulas dele eram assim tão maçadoras? Tão entediantes quanto os discursos acentuados pela pose grave, a pose tão séria, possuída pela elevação institucional, aquela voz monocórdica, os discursos monossilábicos? É curioso: recuo ao tempo em que Cavaco foi primeiro-ministro. Nunca teve o verbo fácil. Também, como agora, escorregava para expressões infelizes (tão acertadamente satirizadas pelos humoristas). A austeridade em pose foi, todavia, elevada a um expoente ímpar. Será da idade mais avançada, que traz um sentido de responsabilidade depurado? Ou sentirá Cavaco que, como presidente da república, tem que passar a pose mais grave, pois afinal o presidente da república é mais importante que o primeiro-ministro? (Que ninguém o segrede ao actual primeiro-ministro, para ele não ter um ataque de apoplexia.)


Cavaco fala e não consigo evitar os bocejos que se repetem à cadência das palavras muito compassadas entoadas com aquela voz que, no campeonato das vozes monocórdicas, só é vencida pela de Jaime Gama. E mesmo quando Cavaco se esforça por aligeirar o registo, sempre em desastradas tentativas de oferecer aos súbditos um rosto humano, é pior a emenda. O pior está reservado para os momentos solenes, que é necessário pontuar com discursos carregados da mesma solenidade. Oratórias intermináveis, em que a noção do tempo se transforma, parecendo que os minutos se demoram além dos sessenta segundos convencionados. Quem estranha que Lino tenha adormecido? Alguém, no seu juízo, pode censurar o ministro por ter sido apanhado nos braços de Morfeu?


Coitado do ministro: tantas dores de cabeça na pele de governante e ainda ter que aturar as cerimónias solenes do cinco de Outubro, quando aquilo não tem nada a ver com as funções técnicas do ministro das obras públicas. Porventura, poucas horas de sono, tantas as preocupações. Logo agora que, em plena crise financeira, a prudência aconselharia a adiar o calendário das faraónicas obras públicas que fazem desta apenas remediada terra um arremedo de rico país. A prudência esbarra na teimosia do calendário eleitoralista (eleições já para o ano) e na insensata ostentação dos socialistas empenhados em construir os elefantes brancos das obras públicas – eles querem deixar a sua impressão digital emoldurada no futuro.


Diante tantas dores de cabeça, que tantas horas de sono devem roubar ao ministro Lino, quem estranha que tenha sucumbido ao sono perante o longo bocejo das palavras de Cavaco? Não é lapidação pública que ele merece. É solidariedade.


13.10.08

Acto II: a igreja, o dinheiro e a hipocrisia


Retomo o assunto – a igreja bisbilhoteira, a igreja que não se cansa de meter onde não é chamada. A igreja que tem escorregado para um antropófago oportunismo: está entre aqueles que se acotovelam na fila dos abutres que querem carcomer a frágil carcaça do capitalismo mergulhado, dizem, na pior crise desde a depressão dos anos trinta do século passado.


Ao pequeno-almoço passo os olhos pelas notícias. Leio que o bispo de Leiria exige muita coisa a propósito da crise que nos aflige. Exige que os gestores aceitem salários menos milionários. Deve pensar que é nos muito elevados proventos dos gestores de ricas empresas que radica a crise. E apela às pessoas: é necessário redefinir as coordenadas da ética quando se relacionam com o dinheiro. Para se desprenderem dos malefícios do consumismo desenfreado, o consumismo que aliena as gentes. Eu traduzo: o consumismo que afasta as almas dos caminhos espirituais por onde andam os pastores que espalham a palavra de deus.


Mete-me confusão de cada vez que aparecem porta-vozes da igreja a meter o bedelho em assuntos para os quais não são chamados. Uma pausa para reconsiderar: não mete confusão, pois a igreja católica sempre interferiu na consciência daqueles que se acolhem no rebanho apascentado pelos seus pastores. É isso que explica que das hierarquias da igreja aos padres de aldeia todos opinem sobre qualquer assunto. Mesmo os assuntos que escapam ao conhecimento empírico da igreja (o sexo é o melhor exemplo). Desta vez reforça-se a imagem de uma igreja estranhamente (ou não) de braço dado com os que fazem do combate ao capitalismo modo de vida. Convém olhar com atenção para esta inopinada aliança.


Que o bispo renove o apelo para os católicos (os empenhados e aqueles que confortavelmente se colocam no estatuto de "não praticante") perderem de vista a fatuidade do consumismo fácil, percebe-se. Dantes era o comunismo; quase extinto o comunismo, agora é o consumismo o grande rival de igrejas a abarrotar de gente e da plenitude da fé. O bispo está a fazer pela vida. Numa estratégia de sobrevivência, é sabido, exige-se um ataque fulminante ao adversário, sobretudo quando ele está enfraquecido. Nisto, a crise é um "maná" para a igreja. A oportunidade para afastar as gentes do pérfido consumismo que as trazia afastadas dos prazeres espirituais propagandeados pelo catolicismo. A míngua de dinheiro é o pretexto ideal para trazer de volta ao rebanho algumas ovelhas entretanto tresmalhadas. Abençoada crise.


Inóspito, pedregoso mesmo, é o caminho escolhido pelos bispos e arcebispos mundo fora quando denunciam os horrendos malefícios do dinheiro. Andam muito preocupados com a ganância dos especuladores dos mercados internacionais, que apenas curam de atingir lucros, muitos e em pouco tempo. Agora a hierarquia eclesiástica atira-se aos gestores que recebem salários milionários. Por acaso a igreja é accionista das empresas que decidem remunerar os gestores com salários principescos? Ao que parece, a igreja católica empenhada entre o coro, o numeroso coro, que clama por uma vigilante regulação dos mercados. A igreja entre aqueles que ambicionam por a pata em cima dos mercados, para que não façam asneira que resulta em crises como a que estamos a padecer.


É aqui que entra a perplexidade: como pode a igreja reclamar contra os abusos do dinheiro se ela vive mergulhada numa opulência que não consegue disfarçar? Dirão em sua defesa: a "igreja dos pobres" vive em opulência porque os milhões de crentes espalhados por todo o mundo são generosos na hora das dádivas que enriquecem o património da igreja. Dirão ainda que as dádivas são um acto voluntário dos crentes. Podia contestar esta parte do argumento, se fosse fundo na lógica do pedacinho do céu conquistado a pulso através da esmola e das oferendas que entram no orçamento diário da igreja. Não vem ao caso neste momento. O que interessa é reflectir nisto: como pode a igreja denunciar o satânico dinheiro quando ela é a casa da sumptuosidade? As palavras do bispo de Leiria foram proferidas num local que é o exemplo acabado dessa opulência: o novo santuário de Fátima. Numa enciclopédia de hipocrisia, tudo isto é o retrato perfeito.


A igreja católica tem opinião sobre tudo e mais alguma coisa. Se quer assumir um papel interventivo na sociedade, fica aqui uma ideia: que se converta em partido político. Nesta altura, até eram fáceis as coligações de interesses: do PS (inclusive) para a esquerda. O frentismo de esquerda ficaria enriquecido com o contributo do partido eclesiástico.


10.10.08

A crise pedagógica


Tenho-me lembrado de Joseph Schumpeter por causa da crise financeira tão prolongada e profunda em que vivemos. Da sua teoria da destruição criativa – ou de como, por vezes, se impõe refazer tudo de cima a baixo, uma depurativa destruição de onde hão-de surgir os novos alicerces. A recuperação de Schumpeter não é uma oportunista tábua de salvação para o capitalismo, ou para o "neo-liberalismo", ou para qualquer um dos rótulos que os críticos costumam usar. Se a crise tem uma virtude, é as lições que dela se retiraram. Tanto para quem não gostava da denunciada falta de regulação dos mercados financeiros, como para os que cultivam o capitalismo.


O primeiro motivo de agrado da crise é a alegria espalhada pelos adversários do "neo-liberalismo". Andam por aí, de peito feito, vaidosos no convencimento de que a história acabou por lhes dar razão. Confirmou-se a desgraça que profetizavam para o seu particular credo ideológico vingar sobre os vícios sistémicos de um capitalismo iníquo. Alguns não hesitam em esfregar as mãos de contentamento. Deixam vir ao de cima a sua veia punitiva, exultando por haver gente abundantemente endinheirada que está a perder rios de dinheiro com a crise e empedernidos gurus da gestão cuja diligência foi desmascarada. Diria, uma certa maldade confundida com um acerto de contas, ou apenas uma genética incompatibilidade com quem fez da abastança forma de vida.


Eu, que fico feliz com o bem dos outros, regozijo com a intensa felicidade que tomou conta dos profetas da desgraça do "neo-liberalismo". Só incluo aqueles que são genuínos adversários do "neo-liberalismo", não os ratos de porão que fogem do navio que julgam em naufrágio, certos personagens menores da política que agora se dizem adversários figadais do "capitalismo selvagem" e proclamam o momento de pôr a mão visível em acção, a mão dos governos reguladores. São os simplórios oportunistas com quem não importa perder tempo. São os outros, os que sempre alimentaram o combate aos malefícios do capitalismo, que me enchem as medidas por estes dias. Pelo indescritível contentamento que exibem – e quem pode ficar indiferente a uma pessoa que irradia tanta felicidade?


Há um pouco de tudo entre o exército que acusa o "neo-liberalismo" pelo estado de coisas a que chegámos. O exército que se engrossa a cada dia que passa, a cada dia em que a crise não dá sinais de retroceder. Há os mais radicais, que exultam no convencimento de que estão diante do féretro do capitalismo. E os menos radicais, já não tão órfãos de referências que os guiem, os que aceitam o capitalismo ou com ele são condescendentes. Estes limitam-se a reclamar o controlo dos mercados que andavam indomáveis. Têm dito que são tempos sem precedentes. Afinal, cada crise é sempre uma crise singular - contraponho. Sem darem conta, porém, regressam às curas habituais. Quando as coisas andam mal nos mercados, é o momento da intervenção salvífica da entidade divina, o Estado.


Liberal dos sete costados, tenho uma desconfiança metódica em relação à milagrosa intervenção correctiva das autoridades. Que se adensa no tempo em que vivemos, um tempo de lideranças tão frouxas, um tempo onde campeia o amadorismo dos dirigentes. Episódios recentes confirmam-no: aparecem em pose grave a anunciar medidas que julgam ser a solução para inverter o rumo da crise. No dia seguinte, os mercados afundam-se ainda mais, mostrando a falta de confiança nas medidas e na gente que as adopta. Ao invés, acredito na capacidade auto-regenerativa dos mercados. Há, porventura, gente a mais sem escrúpulos, para quem só conta enriquecer depressa e depois enriquecer ainda mais. Mas acredito – ou quero acreditar, por descrença na solução alternativa da mão visível das autoridades – que o mercado sabe encontrar o seu ponto de equilíbrio com a depuração das excrescências. As falências são isto mesmo.


A crise também é pedagógica para um liberal dos sete costados. Serve para interrogar os seus alicerces intelectuais. Incomodam-me reacções exacerbadas de gente que se diz liberal (e há muitas maneiras de ser liberal), teimando que a crise não beliscou os fundamentos da economia de mercado e os esteios do liberalismo. É tapar o sol com a peneira. Uma forma diferente de religiosidade, tão imersa na cegueira que distingue os mais diligentes seguidores de qualquer religião. Perturbante, para o agnóstico militante, é sentir que a filiação liberal me aproxima de um sucedâneo de religiosidade. Um dia destes dizia que a crise não prova que o mal está na organização desregulada dos mercados. Está na ganância de gente que acaba por destruir por dentro a virtuosa organização do mercado. Ora, este argumento não se distingue da católica retórica que ensina que a deus nunca se podem imputar os males das pessoas, pois estas são dotadas de livre arbítrio.

E eis como a crise financeira produz a demanda de uma catarse interior.


9.10.08

Bento XVI, profeta da desgraça ou acólito do folclore anti-capitalismo?


Mote: "Os bancos caem; só a palavra de deus é estável."


O Papa é um castiço. Aproveitou a ocasião – mercados financeiros pelas ruas da amargura – para se juntar ao coro de pitonisas que andam, tão vaidosas, repetindo à exaustão "eu não avisei?". Um coro de abutres. Os ditos não hesitam em abocanhar o que julgam ser os restos já quase cadavéricos do execrável capitalismo. Bento XVI conseguiu ver no momento um feixe de inspiração de onde recolheu a oportunista comparação. Porque de puro oportunismo se trata. Compreensível oportunismo: a melhor forma de ocultar a crise que nos afecta é sermos profeta da desgraça da crise alheia, ainda pior que a nossa. Como se na crise alheia estivesse a cura para a nossa própria crise.


Caem, os bancos, no diagnóstico do Papa. Se soubesse um pouco de história económica, conteria o indisfarçável regozijo pelo pandemónio que varre os mercados. É que os bancos caem, uns até perecem, mas o sistema capitalista é globalmente mais forte, encontrando na crise a catarse que o salva da doença terminal que apenas consome os menos capazes. Das palavras de sua santidade percebe-se que ou está a aproveitar o caos quase sem precedentes para nobilitar a fé cristã, ou anda de mau humor porque as suas poupanças estão a ser tocadas pelos ventos da crise.


A comparação feita pelo Papa merece que a atenção nela se detenha. Afinal, quem colocou os bancos e a palavra de deus na mesma bolsa de valores? Foi o Papa. Depois deste deslize papal – lendo a notícia, fica-se a saber que a metáfora se soltou a meio de um sermão feito de improviso – a igreja católica perdeu trunfos para reclamar contra os excessos materialistas que se apoderam da gente comum. Foi o sumo-sacerdote que trouxe a palavra de deus para o mesmo nível dos bancos cotados em bolsa.


Os católicos são instruídos para nunca questionarem a sábia palavra emitida pela boca dos Papas. Apesar de não me incluir no grupo, vou fazer a vontade ao sumo padre e interrogar: qual é a cotação da palavra de deus? É ela assim tão estável como proclamado pelo chefe da igreja católica? Se fosse um daqueles ratos dos mercados financeiros, sempre com elaboradas fórmulas matemáticas que são a equação de todos os problemas, uma cotação haveria de ser encontrada. Fujo da racionalidade hermética da matemática, como fujo dos apelos cegos à fé perfumados pela metafísica. A palavra de deus não tem um valor determinado nesta bolsa de valores. Expõe-se a variações. Se quiséssemos, podia-se construir um gráfico retratando as oscilações da palavra de deus. Por mais que custe à igreja católica, se esse gráfico reproduzir uma série temporal onde está vertido o longo prazo, a invectiva papal sobre o capitalismo ignora os telhados de vidro da igreja de que Bento XVI é o pastor máximo. O gráfico seria implacável, o desmentido factual da crença do Papa: afinal a palavra de deus não é estável, está em declínio e de há muito tempo. As provas? Os seminários com menos aprendizes de padres e as igrejas com menor assistência.


Já se sabia que a igreja não morre de amores pelos símbolos que representam o capitalismo moderno. É contra a sede de dinheiro que aliena as pessoas dos valores espirituais. O capitalismo é o adversário principal da fé católica. Aqueles que forem coerentes consigo mesmos e que, sendo crentes, obedecerem aos preceitos papais, não podem cair nos descaminhos do capitalismo, da cegueira do lucro, da materialidade fútil do consumismo. São devedores da frugalidade da vida. Agora que o capitalismo está na mó de baixo, Bento XVI, já com o tirocínio da retórica falaciosa tão típica dos frouxos políticos contemporâneos, quis ser mais um a dar estocada fatal no sistema capitalista.


As suspeitas vindas de trás em sua plena confirmação: já não são apenas grupelhos católicos fantasiosos, na sua especificidade regional aberta a influências indígenas (exemplo: a teologia da libertação), que ecoam voz de protesto contra o farisaico capitalismo. O topo da hierarquia católica, também de braço dado com os folclóricos que perseguem impiedosamente o capitalismo. Só falta saber se teremos direito a ver arcebispos, em representação papal, na próxima manifestação dos movimentos anti-globalização. Seria uma diversificação de actividades da igreja. Pode ser que consiga evangelizar alguns jovens que costumam espalhar a confusão nessas manifestações alter-globalização.


Um improvável namoro, dirá a voz corrente. Nestes tempos em que arribam as mais raras aves, quem sabe?


8.10.08

O “Zé”, vereador da esquerda folclórica em Lisboa, a soldo da extrema-direita?


Há tiros que saem directos para o pé de quem os dispara. Talvez não fosse esse o efeito pretendido, pois temos que acreditar que o pistoleiro de serviço não preenche os requisitos de um doentio masoquismo.


O partido da extrema-direita voltou à carga com outro cartaz de gigantescas proporções mandado afixar numa rua qualquer de Lisboa. Tal como dantes, contra os imigrantes que, aos olhos da extrema-direita, serão a principal doença que mergulha esta santa terrinha numa profunda depressão. Um cartaz xenófobo, irradiando uma lamentável intolerância. Um cartaz que deixa à mostra a profunda ignorância que consome as entranhas da extrema-direita ao fazer do combate à imigração um dos cavalos de batalha: ignoram estudos, com rigor científico, que provam que sem a entrada continuada de imigrantes a Europa definha.


A afixação de outdoors mexe com as competências atribuídas ao vereador da esquerda folclórica, esse cidadão exemplar, activista por excelência das causas que bulem com o exercício da cidadania, o advogado José Sá Fernandes – carinhosamente tratado por "Zé" entre a casta urbana, intelectual e que não consegue esconder hábitos pequenos burgueses, que adora votar na esquerda caviar (é que está na moda). O que fez o "Zé"? Sem pestanejar, mandou retirar o cartaz por achar que ele contém linguagem xenófoba, transpirando um insidioso apelo à violência contra os imigrantes. Que interessa que a Procuradoria-Geral da República tenha dado um parecer que não encontrava razões para a desinstalação do cartaz?


Conviria lembrar ao vereador que é um homem que sabe de leis: a Procuradoria-Geral da República existe para defender os interesses públicos sempre que valores que são património da sociedade sofram entorses. Aproveitando a ocasião para puxar o lustro aos esteios que formam qualquer cidadão que viva num Estado de direito, há um princípio basilar que parece esquecido: a separação entre a política e os tribunais. Por decoro, os políticos devem ficar fora da justiça. Ou a justiça – e os políticos – perdem rasto à decência e esgotam todo o seu capital de credibilidade junto dos cidadãos. Nesse caso, o Estado de direito esfuma-se na confusão entre política e tribunais.


Entendo que haja uma irritação contra a extrema-direita. As exibições de intolerância, o passado que glorifica, a retórica que roça a violência, eis o que compõe a presença da extrema-direita na paisagem política. Não há um singelo pedaço deste ideário, uma única palavra do discurso habitual, que cative a minha simpatia. Para mim, a extrema-direita é deplorável. Mas não aceito que ela seja silenciada, ou é a democracia que tanto se ufana de certos valores que faz o jogo da extrema-direita que quer silenciar. Que essa irritação venha de sectores situados nos antípodas da extrema-direita, também é compreensível. Por todos os motivos. O principal dos quais é uma certa confluência de métodos e finalidades entre a extrema-direita e a esquerda caviar (não se lhes pode chamar extrema-esquerda que, sintomaticamente, eles ficam ofendidos). À intolerância congénita da extrema-direita respondem com a sua própria maneira de serem intolerantes. O que é revelador de um certo posicionamento perante os problemas políticos. Revelador da sua própria intolerância congénita. Nisto, o que distingue a extrema-direita da esquerda caviar?


Tenho que admitir: aplaudi a corajosa decisão do folclórico vereador. Primeiro, porque é todo um programa político da agremiação partidária onde se acolheu. Espezinhar o princípio basilar da separação de poderes é a confissão de como esta agremiação, caso algum dia tomasse conta do poder, não se cansaria de atropelar o Estado de direito. Por outro lado, a decisão de retirar o cartaz é a manifestação inequívoca de como partilham o código genético da intolerância e do não respeito pela liberdade de expressão com a extrema-direita que querem silenciar. Em terceiro lugar, sem dar conta, o patusco "Zé" ofereceu de bandeja visibilidade à extrema-direita. E terá também motivado uma inesperada solidariedade com a extrema-direita assim silenciada. Eu não sabia que o "Zé" estava a soldo da extrema-direita.


O que acho grotesco no episódio é o bafiento moralismo da esquerda caviar e do seu inestimável vereador em Lisboa. Aparecem como empertigados penhores de valores que não constam do seu património genético. E porque acho deplorável que a esquerda caviar suba nos tamancos da sua pretensa superioridade moral para nos dizer que mensagens políticas temos ou não direito a consumir. Está bom de ver: o paradoxo que é ver esta gente usar o conceito de "liberdade individual", a que puxam lustro para a legalização dos casamentos homossexuais (matéria onde coincidimos), e depois deixarem cair a máscara quando acham conveniente atropelar o princípio para silenciar a extrema-direita.