20.10.08

Um sonho por dentro do sonho


Havia múltiplas caixas que se encaixavam em caixas por sua vez maiores. O desdobramento dos sonhos. Até que se perdia o rasto ao sonho principal, ao sonho originário. A certa altura, nem sequer se distinguia a vida desprendida de sonhos da cornucópia de sonhos nos seus infindáveis desdobramentos. Uma espessa teia que restringia o discernimento. Ao destapar a caixa que encerrava um sonho, logo de seguida outra caixa perfilava tentador, porque desconhecido, sonho.


Por vezes tinha a impressão que a espessura onírica era apenas um refúgio. Da vida presente, dos cansados olhos que se fustigavam com a realidade em redor. A cada sonho mergulhava em lugares fantásticos, lugares que não figuram na geografia do mundo. Desses imaginados sítios brotava uma fonte inesgotável. Era como se a cada sonho se renovassem as forças que os olhos careciam assim que regressassem do profiláctico sonho. Paradoxalmente, desdenhava do sono. Teimava: era tempo gasto, um tempo inútil em que a vida ficava por umas horas remetida à letargia. Na sagração da sempre tão curta vida, o sono era um absurdo atentado, o perturbante mistério que rejeitava a sagração da vida. A menos que da riqueza da vida fizessem parte os nutridos sonhos em que a mente se abraça enquanto o corpo repousa.


Não que os sonhos fossem o repositório de paradisíacos cenários onde as angústias da vida acordada fossem compensadas. Havia-os maus, os sonhos. Havia-os, e muitos, surrealistas. Como havia a visitação de incomodativos pesadelos. Os sonhos tanto dispunham como indispunham, consoante as cores de que vinham tingidos, o sabor ora adocicado ora ácido que emprestavam ao despertar.


Com frequência, no momento em que o sono dava lugar à alvorada, havia uma linha ténue que não deixava distinguir se o sonho tinha já terminado ou se eram os sentidos já despertados do torpor do sono. Um limbo em que os sonhos pareciam prolongar-se para a vida sem sonhos. Às vezes, apetecia prolongar esse torpor e regressar ao sono, mergulhar nos apetecíveis sonhos que tinham terminado. Sempre melhores que a vida que esperava pelas horas seguintes.


Era nessa altura que tudo se parecia compor como se houvesse um sonho dentro do sonho. Ou como se a vida fosse o sonho maior, uma dimensão imperceptível que aprisionava os sentidos a uma tremenda ilusão não revelada. Ou, que assim não fosse, mas que assim fosse desejado todo um percurso. No contraste entre os idílicos sonhos e os pungentes cenários que se desfraldavam em redor para os olhos acordados. No fundo, os olhos que pareciam acordados, mas os olhos não acordados, possuídos pela anestesia do sonho maior – do sonho contínuo, interminável. Dele irradiavam os sonhos menores, os sonhos que se renovam a cada noite em que o corpo cansado exige o lastro do sono. Do alto contraste entre os sonhos vários, ficava sem saber se de algum deles ecoava uma melodia tingida com as pétalas da realidade.


Os sucessivos sonhos, os sonhos nos seus múltiplos desdobramentos, eram como círculos concêntricos. Problemas, ou promessas, nunca findados. Ramificações incessantes, num mapa complexo sem pontos cardeais. No caos instalado, os sonhos abraçavam-se em profusos ramos de onde nasciam outros ramos – sonhos com cores diferentes, personagens diferentes, afloramentos do sonho maior (a imaginada realidade, ou a realidade elevada ao patamar de imaginação), ou sonhos no seu contraste com o sonho maior, apenas ingredientes do sonho maior. A certa altura, uma constelação de sonhos, o ininteligível mapa do caos instalado. Todos os sonhos, um amplexo tomando conta do corpo inteiro, num asfixiante abraço. O corpo todo tomado pela miríade de sonhos, já impossível de distinguir entre a matéria onírica e a espessura do corpo.


Sonhos, têm todos um sentido? Mas o que interessa a hermenêutica dos sonhos? Parece que a hermenêutica dos sonhos é a fábrica onde os sonhos se entregam no seu interminável desdobramento. Já sem saber onde termina o sonho, ou sem perceber se a hermenêutica tarefa não é ela mesma uma derivação do sonho que interpreta. Se calhar, os sonhos apenas se degustam. Não são matéria para demoradas exegeses. O sonho, sonha-se.


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