23.10.08

A pudica chanceler


Sinal dos tempos que atravessamos: a gente que devia ser responsável e apresentar soluções credíveis para a tão profunda crise financeira que há e para a crise económica que há-de vir, entretida com lamentáveis fait divers. Angela Merkel queixou-se na embaixada alemã em Paris que Sarkozy vomita uma enxurrada de charme sobre ela. À boa maneira do macho latino, Sarkozy acha-se um sedutor (assim como assim, não está para a perna de qualquer um conquistar a, por muitos endeusada, Carla Bruni). Daí o afecto com que agracia Merkel, com indiscretos afagos e profusos beijos quando se cumprimentam. A gélida chanceler não gosta, acha indecoroso.


A começar: será a etiqueta protocolar que obriga a manifestar o incómodo através de interpostas pessoas, os diplomatas dos dois países? Não há confiança para prescindir dos préstimos dos diplomatas e ter a franqueza de passar um discreto ralhete no expansivo presidente francês? Estas coisas resolvem-se olhos nos olhos. Não com a indecente mensagem passada à embaixada de um país, que por sua vez a transmite ao ministério dos negócios estrangeiros do outro país, que finalmente faz chegar o incómodo da donzela ao marialva acusado. Pelo caminho, com fugas de informação, o sumarento episódio aterra nas redacções dos jornais, ganhando foros de incidente diplomático.


Passada a surpresa de o ver retratado como notícia, roubando tempo ao que devia interessar aos políticos e à servil comunicação social, percebe-se: ou é a comunicação social tão enamorada pelo acessório, ou é por estarmos deprimidos por causa da crise e por isso carecemos de entretenimento. O circo recupera a boa disposição das gentes atarantadas pela crise que há e pela crise que está para chegar.


Cavalgo, então, na frívola maré. Leio que o desconforto da chanceler alemã pode ser entendido à luz das diferentes educações que têm no catolicismo e no protestantismo os seus diferentes códigos genéticos. Dizem que os franceses, católicos e latinos, são mais dados à exteriorização do afecto. As pessoas tocam-se sem se sentirem repugnadas pela mão do outro que afaga, sem haver choque por uma saudação se socorrer de ósculos pespegados por carnudos lábios. Ao contrário, os alemães. A frieza de comportamentos com origem no protestantismo. Resguardam emoções, militantemente gélidos. Recusam-se ao espalhafato dos afectos em público.


Algo não bate certo, porém. Os teutónicos são gente que se esconde debaixo de uma carapaça, gente orgulhosa por guardar o domínio das emoções para si (e para os mais íntimos). Os espalhafatosos franceses precisam de contacto físico: como se fosse condição necessária para contagiar os outros com as emoções de quem as deseja libertar. Nisto, os primeiros remetidos ao recato, perseguindo o individualismo das emoções. Os segundos, expansivos, altruístas na partilha (activa e passiva) dos afectos. Contudo, é mais a norte que os costumes são mais liberais. Será mais pela Alemanha que a libertinagem sobe na sua escala. O que introduz a perplexidade: por que se incomoda Merkel com a gelatinosa simpatia de Sarkozy, toda ela embrulhada em salamaleques afectuosos, a mão pousada sobre os ombros da mulher que manda na Alemanha, os espaventosos beijos que trocam à chegada e à despedida?


Tenho teorias. A chanceler está ali a representar a grande Alemanha. Que não fiquem dúvidas que a grande Alemanha não admite que a vizinha França passe a mão pelo seu dorso. Pode haver quem entenda o gesto como uma sublime mensagem de patético paternalismo machista exercido por Sarkozy. E, depois, quem não conhece o pétreo chauvinismo francês? Ou Merkel não gosta do estilo puerilmente charmoso de Sarkozy. Para os seus botões pensará: ele não é charmoso, é sarnoso. Não faz o seu estilo, o que lhe causa repugnância de cada vez que o presidente da França avança em direcção àquele pedaço de território alemão. Ou – derradeira hipótese – ela é admiradora de Bruni e incomoda-se com as investidas de Sarkozy, não vá a cantora primeira-dama ser acometida por uma fúria ciumenta e o caldo das relações diplomáticas entornar-se.


É espantoso como, no meio da crise quase sem precedentes, esta gente ainda encontra tempo para se demorar com esta laia de fait divers. É o espelho da sua tão frouxa têmpera. Quem disse que eles eram líderes? Pobre direita, que mal andas quando entre os teus ícones estão personagens deste calibre.


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