13.10.08

Acto II: a igreja, o dinheiro e a hipocrisia


Retomo o assunto – a igreja bisbilhoteira, a igreja que não se cansa de meter onde não é chamada. A igreja que tem escorregado para um antropófago oportunismo: está entre aqueles que se acotovelam na fila dos abutres que querem carcomer a frágil carcaça do capitalismo mergulhado, dizem, na pior crise desde a depressão dos anos trinta do século passado.


Ao pequeno-almoço passo os olhos pelas notícias. Leio que o bispo de Leiria exige muita coisa a propósito da crise que nos aflige. Exige que os gestores aceitem salários menos milionários. Deve pensar que é nos muito elevados proventos dos gestores de ricas empresas que radica a crise. E apela às pessoas: é necessário redefinir as coordenadas da ética quando se relacionam com o dinheiro. Para se desprenderem dos malefícios do consumismo desenfreado, o consumismo que aliena as gentes. Eu traduzo: o consumismo que afasta as almas dos caminhos espirituais por onde andam os pastores que espalham a palavra de deus.


Mete-me confusão de cada vez que aparecem porta-vozes da igreja a meter o bedelho em assuntos para os quais não são chamados. Uma pausa para reconsiderar: não mete confusão, pois a igreja católica sempre interferiu na consciência daqueles que se acolhem no rebanho apascentado pelos seus pastores. É isso que explica que das hierarquias da igreja aos padres de aldeia todos opinem sobre qualquer assunto. Mesmo os assuntos que escapam ao conhecimento empírico da igreja (o sexo é o melhor exemplo). Desta vez reforça-se a imagem de uma igreja estranhamente (ou não) de braço dado com os que fazem do combate ao capitalismo modo de vida. Convém olhar com atenção para esta inopinada aliança.


Que o bispo renove o apelo para os católicos (os empenhados e aqueles que confortavelmente se colocam no estatuto de "não praticante") perderem de vista a fatuidade do consumismo fácil, percebe-se. Dantes era o comunismo; quase extinto o comunismo, agora é o consumismo o grande rival de igrejas a abarrotar de gente e da plenitude da fé. O bispo está a fazer pela vida. Numa estratégia de sobrevivência, é sabido, exige-se um ataque fulminante ao adversário, sobretudo quando ele está enfraquecido. Nisto, a crise é um "maná" para a igreja. A oportunidade para afastar as gentes do pérfido consumismo que as trazia afastadas dos prazeres espirituais propagandeados pelo catolicismo. A míngua de dinheiro é o pretexto ideal para trazer de volta ao rebanho algumas ovelhas entretanto tresmalhadas. Abençoada crise.


Inóspito, pedregoso mesmo, é o caminho escolhido pelos bispos e arcebispos mundo fora quando denunciam os horrendos malefícios do dinheiro. Andam muito preocupados com a ganância dos especuladores dos mercados internacionais, que apenas curam de atingir lucros, muitos e em pouco tempo. Agora a hierarquia eclesiástica atira-se aos gestores que recebem salários milionários. Por acaso a igreja é accionista das empresas que decidem remunerar os gestores com salários principescos? Ao que parece, a igreja católica empenhada entre o coro, o numeroso coro, que clama por uma vigilante regulação dos mercados. A igreja entre aqueles que ambicionam por a pata em cima dos mercados, para que não façam asneira que resulta em crises como a que estamos a padecer.


É aqui que entra a perplexidade: como pode a igreja reclamar contra os abusos do dinheiro se ela vive mergulhada numa opulência que não consegue disfarçar? Dirão em sua defesa: a "igreja dos pobres" vive em opulência porque os milhões de crentes espalhados por todo o mundo são generosos na hora das dádivas que enriquecem o património da igreja. Dirão ainda que as dádivas são um acto voluntário dos crentes. Podia contestar esta parte do argumento, se fosse fundo na lógica do pedacinho do céu conquistado a pulso através da esmola e das oferendas que entram no orçamento diário da igreja. Não vem ao caso neste momento. O que interessa é reflectir nisto: como pode a igreja denunciar o satânico dinheiro quando ela é a casa da sumptuosidade? As palavras do bispo de Leiria foram proferidas num local que é o exemplo acabado dessa opulência: o novo santuário de Fátima. Numa enciclopédia de hipocrisia, tudo isto é o retrato perfeito.


A igreja católica tem opinião sobre tudo e mais alguma coisa. Se quer assumir um papel interventivo na sociedade, fica aqui uma ideia: que se converta em partido político. Nesta altura, até eram fáceis as coligações de interesses: do PS (inclusive) para a esquerda. O frentismo de esquerda ficaria enriquecido com o contributo do partido eclesiástico.


2 comentários:

Zeca Portuga disse...

«(…) porta-vozes da igreja a meter o bedelho em assuntos para os quais não são chamados» - vejo que o sr. desconhece o papel da Igreja. É que, falar do escândalos, da indecência, da verdadeira roubalheira que são salários (e as mordomias) dos gestores (sobretudo dos públicos), é precisamente, o papel da Igreja. Esse é, até, o seu dever e a sua obrigação. Tal facto nada tem de “político”. É, isso sim, um problema social, cultural, moral e ético.

Na verdade, “os padres de aldeia” falam sobre quase tudo, porque tem esse dever moral, social e religioso. De resto, têm a obrigação de se munir dos meios e da informação exacta, séria, actualizada e honesta, por forma a serem os porta-vozes da dignidade, do decoro da honestidade e da rectidão de condutas sociais. Todo o católico que não denuncia tais atropelos à dignidade humana, é um falsário, um charlatão e co-autor (por omissão), de tais actos.
De resto, os membros da Igreja são (e têm obrigação de o ser) os mais atentamente cultos e esclarecidos membros da sociedade.

Vê-se que V. Exa. desconhece o papel social das instituições da Igreja, tal como nada sabe da Igreja como instituição empregadora (portanto como fonte de redistribuição de recursos económicos).

Eu sei que, quando se desconhece em absoluto um destes assuntos, é muito fácil partir para o comentário provocador, injusto, infundado e até injurioso.

A Igreja não força ninguém a contribuir com as suas dádivas. O que eu acho indecente e escandaloso, é que alguém teça comentários completamente descabidos sobre os recursos económicos da Igreja. Se o comentador é “contribuinte” líquido, não contribua, e portanto não terá razão de queixa (para que tais actos não recaiam sobre o seu dinheiro); se não é “contribuinte” líquido, nada tem a ver com a forma como alguém gasta aquilo que lhe não pertence. Tais comentários denunciam a mais baixa e infame inveja, a que se junta um esquálido e repugnante ódio.

Se a Igreja peca em alguma coisa, é no facto de ser pouco “interventiva” e denunciante das injustiças sociais. Os membros da Igreja têm que ser mais incómodos, mais acutilantes, mais precisos e actuantes, na denúncia e na alerta das consciências (infelizmente adormecidas) de uma sociedade demasiado conformista e pacata, frente a tantas desigualdades e tantas injustiças e tanta regressão social, civilizacional e cultural.

Anónimo disse...

Opus Dei ate aqui! Deixo o velho lema anti-fundamentalista:"Olhe que nao, olhe que nao" caro zeca portuga.