Temos ideias. Gostamos de exibir convicções. Entretidos com os prazeres da discussão, no que isso faz bem ao intelecto, pretendemos sair de uma discussão de braço dado com o triunfo das ideias. No fértil mercado das ideias, uma revoada de argumentos, um desfile de provas que ora traduzem a superioridade das ideias que nos são queridas, ora são a devastadora denegação das ideias nos antípodas. Quem não gosta de as ter, ideias e convictas? Das assertivas ideias que logo se transformam em certezas insusceptíveis de contestação, logo imperativos categóricos que esmagam os adversários à implacável inclinação diante dos garbosos vencedores no mercado das ideias?
Nestes tempos cheios de complexidade, a única certeza que se perfila no horizonte é a da fluidez das certezas. Mesmo daquelas que se julgam inabaláveis, prenhes de uma autoridade intelectual que não passa de pretensa autoridade intelectual. Neste oceano de intermináveis incertezas emergem apóstatas, humildes ao ponto de admitirem que as ideias defendidas outrora estavam erradas. Ou que essas ideias provam o seu desajustamento aos factos.
Há dias, Alan Greenspan – antigo governador do banco central dos Estados Unidos e ideólogo da desregulação financeira agora tão vituperada – confessou que estava enganado. Disse-o em público, a solenizar o epitáfio do "selvático capitalismo" escrito pelos excitados apóstolos de um novo capitalismo, o capitalismo em que os governantes passam a meter a grossa unha. Greenspan admitiu que errou ao lavrar a carta de alforria dos mercados. Perante os sintomas do vendaval financeiro, Greenspan fez meia volta ideológica. Para gáudio dos que sempre fizeram carrancas à emancipação dos mercados e dos outros que têm uma desconfiança congénita no funcionamento da economia de mercado.
É louvável quando alguém tem a humildade de admitir que as suas ideias estavam erradas. Diria que é um sinal de grandeza de carácter, de grandeza intelectual. Os obstinados das ideias, aqueles que se recusam a admitir que navegam nas águas paradas das ideias, é que ficam para trás. Ao ver a apostasia de Greenspan e as reacções excitadas dos que habitam no hemisfério intelectual oposto, percebo a grandeza do primeiro e a mesquinhez dos segundos. Destes, a pose triunfante de quem se serve da confissão de arrependimento para vincar as suas ideias como acertadas. Sobra a pesporrência de uns em contraste com a humildade intelectual de Greenspan. É desta forma que muitas vezes se perde o rasto à "razão".
Admito que a apostasia de Greenspan actua como um soco pesado e seco nas minhas convicções. E que, por isso, acho abjectas as reacções de entusiasmo dos que se banqueteiam no público arrependimento de Greenspan. Alguns dos vitoriosos do momento já tiverem o seu tempo de apostasia. Já tiveram, lá atrás, as dores do arrependimento que os levaram a repudiar credos de outrora. Saciam a orfandade de referências na meia volta ideológica de um adversário de estimação. Eu apenas me convenço que a fluidez das ideias traz o lacre da incerteza do universo. E gosto de interrogar constantemente as ideais que abrigo no regaço, de as expor ao contraditório ideológico para testar as pessoais convicções.
Se há mérito neste vendaval que reequaciona os alicerces do capitalismo é o de fermentar interrogações às ideias, à minha particular mundividência. Os factos parecem apenas confirmar a demissão de liberais visões do mundo. Um coro entoa, em uníssono, o refrão que quase todos querem escutar: os mercados não podem ter a alforria que tinham, têm que se subjugar à regulação dos sábios – dos sábios que habitam no alcantilado e presciente castelo do Estado.
Da parte que me toca, ando a meio de uma introspecção das particulares ideias. De interrogação em interrogação, já menos convencido nos méritos de mercados emancipados, sentindo que os intérpretes dos mercados não souberam merecer a liberdade que lhes foi outorgada. Só que menos me convenço que a solução está na entrada em cena dos omniscientes engenheiros sociais ungidos de soluções mágicas. Se calhar, todos devíamos ser apóstatas neste momento. E ultrapassar a binária visão do mundo, como se tudo se resumisse a aceitar mercados sem controlo ou ao dogma dos mercados subjugados ao omnisciente controlo das autoridades. O que se requer é uma reinvenção das ideias, uma solução que se liberte do espartilho daquela binária visão do mundo.
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