21.10.08

Da triunfante abstenção


Vejo os socialistas, ufanos com mais uma vitória eleitoral. Dizem que esmagaram a concorrência nas eleições regionais dos Açores. Maioria absoluta. No continente, o encantador aparelho socialista refina análises que nem o mais amador dos aspirantes a politólogo seria capaz de fazer: insinuam extrapolações das ilhas açorianas para o continente, um wishful thinking que procura antecipar o resultado que eles queriam que acontecesse nas eleições legislativas do próximo ano.


Escorrem vaidade, os socialistas lá dos Açores, com o oportunista amparo dos companheiros continentais. Apagam dos registos dois percalços que ofuscam tão feérica vitória por eles reclamada. Primeiro, perderam um deputado. Sinal de que houve menos gente a concordar com a reeleição dos socialistas. Dirão, passando a esponja neste dado, "pormenor irrelevante". Segundo, a abstenção foi superior a 50%. Foi maior o número dos que não foram votar do que os votantes no partido socialista. Esta é a dor maior que os socialistas varrem para debaixo do tapete. A dor que não convém revelar. Não vá ela beliscar a espampanante vitória. A habitual pesporrência dos que se olham do alto da putativa superioridade impede de julgar a gravidade de tão elevada abstenção. Não foi uma vitória cor-de-rosa. Quem saiu triunfante destas eleições foi a abstenção.


Foi a primeira vez, desde que a democracia trouxe o hábito de eleições, que a abstenção ultrapassou 50% em eleições para órgãos legislativos. Poucas menções ao fenómeno. Do César que vai continuar a mandar nos Açores uma breve referência, deixando pelo caminho a sugestão que para a abstenção terá contribuído a desactualização dos cadernos eleitorais. A lengalenga do costume de políticos que convivem mal com elevadas taxas de abstenção: ou há muitos eleitores inscritos que por esta altura já habitam cemitérios, ou é o específico caso dos Açores que continua a exportar muita gente para outras terras. Espantoso argumento, por ser proferido pelo presidente do governo regional açoriano: pois se as gentes continuam a emigrar aos magotes, é sintoma de que a vida nos Açores continua a ser madrasta. Por sua vez, sinal da inépcia de quem lá governa – e há mais de dez anos.


A abstenção é a filha bastarda do sistema político. Incompreendida, desvalorizada. Apoucada, até, quando os abstencionistas são atacados por, dizem os críticos, se demitirem de um dever político fundamental. (Seria altura para enxertar aqui contra-argumentação: antes de ser dever, votar é um direito. Para o objectivo do texto de hoje, essa discussão não vem ao caso.) A abstenção é a mágoa dos políticos profissionais, dos que vão a eleições e ficam tristes por dentro por haver tanta gente que não vota num deles. Continuo convencido que há muita abstenção que não se explica apenas pelos cómodos argumentos desfiados por políticos profissionais e analistas a soldo – a praia estava apetecível, ou havia um jogo de futebol que desviou as atenções (como se um jogo de futebol durasse das oito às dezanove horas…), ou as pessoas foram para fora durante o fim-de-semana, ou apenas não se interessam em escolher que os vai governar. Nunca por nunca a abstenção é sinal de desconfiança no sistema político e nos seus medíocres intérpretes.


Ainda que as eleições regionais nos Açores sejam específicas, há outra extrapolação a tirar: uma abstenção sem precedentes desmente uma teoria que tem feito furor por estes dias. Dizem alguns que diante de uma crise tão profunda e perante tempos vindouros tão incertos, as pessoas se refugiam nos actuais governantes. Neles depositam um elevado capital de confiança, esperando que sejam capazes de encontrar soluções para ultrapassar a crise. O que reforça as actuais lideranças e funciona como balão de oxigénio para aqueles líderes que estavam a descer na ladeira da credibilidade. Em si, a teoria é contestável. Francamente, acho-a esotérica. A ser verdade o que preconiza a teoria, as gentes entregam-se aos políticos do momento como se entregam à religião quando estão a viver momentos aflitivos. Há muito de metafísico nesta teoria.


A elevada abstenção nas eleições dos Açores destrói os alicerces desta inusitada teoria. O facto de haver tanta gente que se recusa a escolher um entre tantos concorrentes às eleições também pode ser interpretado como sinal de que essas pessoas (mais de metade do eleitorado) descrêem nas capacidades dos políticos para matarem a crise.


8 comentários:

Anónimo disse...

Esta já uma das nossas mais antigas discussões.
Não concordo de todo com esta tua conclusão: "O facto de haver tanta gente que se recusa a escolher um entre tantos concorrentes às eleições também pode ser interpretado como sinal de que essas pessoas (mais de metade do eleitorado) descrêem nas capacidades dos políticos para matarem a crise".
Quem quer dar este sinal, vai às urnas e vota em branco.
Quem nem sequer vai lá, está também a dizer: "os outros que escolham!" Ou então: "não concordo com este sistema". Ou ainda: "não quero saber." Ou até: "Vou à praia".
Moral da história, neste "saco" estão demasiadas possíveis mensagens, pelo que não devemos concluír nada. A não ser mesmo, não contam. Quem se abstem de participar, também se deve abster de criticar.

E como diz o outro, a democracia é o pior de todos os sistemas, com excepçao de todos os outros.

Ponte Vasco da Gama

PVM disse...

PVG:
A tua posição é muito mais “absoluta” que a minha: enquanto eu abro a possibilidade para outros significados da abstenção (aproveito a tua citação: “…também pode ser interpretado” – sublinho: “também”), tu encerras-te numa posição monolítica. Tanto assim que concluis que aos abstencionistas devia ser vedada a crítica. Era o que mais faltava! Já me bastam os totalitarismos encapotados do Sócrates e do Bloco de Esquerda.
Sugeres que o descontentamento deve ser expresso através da ida às urnas e do voto em branco (e por que não do voto nulo?). Com isso estás a extrapolar para os outros o que tu farias perante esse descontentamento. O problema é que essas extrapolações de comportamentos (“os outros deviam fazer como eu”) esbarram na muita subjectividade que existe entre as pessoas.
Percebo a tua exasperação com os abstencionistas – essas excrescências que não são merecedores da democracia. Só que enquanto a procissão passa, o problema da abstenção continua a ser varrido para debaixo do tapete. Como se não fosse um problema. Um problema que toca à porta dos actores políticos, muito mais do que aos abstencionistas. Para estes, o que fala mais alto é a consciência (atormenta-se pela sua abstenção?). E enquanto prevalecer a liberdade de voto (acima do dever de voto), ou enquanto não tivermos um sistema que obriga as pessoas a irem votar para não pagarem elevadas multas (Bélgica e Austrália, por exemplo), temos que aceitar conviver com a abstenção.
PVM

Anónimo disse...

Não me importava que o voto fosse obrigatório, embora também conviva bem com o facto de não o ser. Mas acho, de facto, que quem não exerce esse direito se auto-limita, auto-exclui. Tem esse direito. Mas não tem mais do que isso.

Mas vamos seguir a tua tese: a abstenção tem um significado. O pessoal anda descontente com a classe política e, como tal, não põe os pés nas mesas de voto. E aqui já estou até a admitir que os que faltam por pura deformação cívica, tipo “nem me lembrei que havia eleições”, ou “fui antes à praia” também contam como abstencionistas com a intenção que referi em primeiro lugar.
O que fazer?

Como a maioria não vota, mudamos os políticos? Baseados nisto? Como? Arranjamos políticos que cativem os votantes a ir lá? Mudamos o sistema? Tornamos o voto obrigatório e fazemos com que o Estado ganhe umas massas com este pessoal?

Diz-me tu, o que concluímos quando, por exemplo, a maioria da população que pode votar não o faz?

Algo vai mal, certo? E depois?… Achas que é dessa forma que a classe política vai mudar? Eu não acredito. Na prática são eleitos na mesma e como são menos a votar, os fanáticos que os rodeiam contam mais…!

Fico na minha, desculpa. Um povo que não comparece a votar, merece uma classe política medíocre como a nossa.

Ou então que diga o que quer! A passividade é um direito mas quando é exercida livremente não pode ser interpretada como um gesto com um significado objectivo.

Compreendo e respeito a tua abstenção, mas contigo estão muitíssimos que simplesmente se marimbaram. Na abstenção estão muitas motivações (e faltas dela), é muita subjectividade junta para se retirarem ilações sérias.

Quanto aos votos nulos, também inserem subjectividade (podem ser intencionais ou podem ser erros involutantários). Entendo que só o voto em branco, esse sim, diz: "nenhum merece o meu voto"

O resto é música para a classe política.

Um abraço,
PVG

PVM disse...

A frase chave é a seguinte (e cito): “Um povo que não comparece a votar, merece uma classe política medíocre como a nossa.” Só que discordo totalmente do sentido da relação causal. É porque a classe política é medíocre que o povo se vem demitindo de votar.
É óbvio que a classe política não muda por ser elevada a abstenção. Alias, esse será o principal motivo para a classe política assobiar para o alto quando se fala de abstenção: como devem sentir que são causa do problema, evitam falar dele. O que falta é a renovação da classe política. Uma vassourada de cima a baixo. Coisa pouco provável, porém. Por um lado, porque a política é parasitada pelos menos capazes, por aqueles que foram subindo nos aparelhos partidários e pouco mais são capazes de fazer fora da política. Por outro lado – e talvez em consequência daquele motivo – os que poderiam mudar este estado de coisas preferem fazer a sua vida fora dos holofotes da política. É um ciclo vicioso.
A proposta dos abstencionistas “com causa” (por assim dizer, para os distinguir dos abstencionistas desinteressados ou dos abstencionistas preguiçosos) se transferirem para as fileiras do voto em branco tem lógica, mas é ineficaz. A abstenção ainda tem significado, é sublinhada como dado relevante em cada eleição. Já os votos em branco não passam de uma minúscula nota de rodapé. É um dado quase imperceptível. O que aconteceria se muitos abstencionistas passassem a votar em branco? Se agora a abstenção, enquanto manifestação de protesto, já é desvalorizada, se houvesse a transferência para os votos em branco essa manifestação desaparecia do mapa. Seria um convite à perpetuação dos medíocres no palco da política.

Anónimo disse...

Resumindo (porque também não vai ser desta que chegamos a um acordo sobre isto), a abstenção “com sentido responsável” só tem dimensão quando inclui os abstencionistas “irresponsáveis”. Assumes então que são poucos os que o fazem com racionalidade. Seria de facto interessante ver até que ponto os descontentes com a classe política se exprimiriam objectivamente, quantos seriam?
Admito que acabassem por não ser muitos.
E por isso volto à minha conclusão: temos os políticos que merecemos. Temos o país que merecemos.
E se queremos mesmo que algo mude, participemos então!
Tu serias um bom político!
Pensa nisso!

Um abraço,
Ponte Vasco da Gama

Anónimo disse...

Resumindo (porque também não vai ser desta que chegamos a um acordo sobre isto), a abstenção “com sentido responsável” só tem dimensão quando inclui os abstencionistas “irresponsáveis”. Assumes então que são poucos os que o fazem com racionalidade. Seria de facto interessante ver até que ponto os descontentes com a classe política se exprimiriam objectivamente, quantos seriam?
Admito que acabassem por não ser muitos.
E por isso volto à minha conclusão: temos os políticos que merecemos. Temos o país que merecemos.
E se queremos mesmo que algo mude, participemos então!
Tu serias um bom político!
Pensa nisso!

Um abraço,
Ponte Vasco da Gama

PVM disse...

Eu não assumi nada do que me imputas. A única certeza que podemos ter quanto à dimensão da abstenção é que é muito difícil saber se são mais os abstencionistas responsáveis ou os abstencionistas irresponsáveis.
Com o actual estado de coisas (e a pobreza das personagens que dominam a paisagem política), vou continuar a faltar à chamada. Acho que já o disse antes: votar (num partido, ou num candidato) é como escolher uma mulher. Não é pelo mal menor.
Agradeço o palpite (“bom político”), mas declino. A razão é só uma: não quero.
PVM

Anónimo disse...

A diferença é que quando não optas por uma mulher, governas a tua vida na mesma.

Quando não optas por um partido, mesmo um mal menor, estás a deixar que os outros escolham “a tua mulher”.

É que vais ter mesmo de "viver com ela": por muito que nos custe, eles é decidem o IVA que pagamos, o IRS que pagamos, o funcionamento das Escolas dos nossos filhos, etc…

Ponte Vasco da Gama