10.10.08

A crise pedagógica


Tenho-me lembrado de Joseph Schumpeter por causa da crise financeira tão prolongada e profunda em que vivemos. Da sua teoria da destruição criativa – ou de como, por vezes, se impõe refazer tudo de cima a baixo, uma depurativa destruição de onde hão-de surgir os novos alicerces. A recuperação de Schumpeter não é uma oportunista tábua de salvação para o capitalismo, ou para o "neo-liberalismo", ou para qualquer um dos rótulos que os críticos costumam usar. Se a crise tem uma virtude, é as lições que dela se retiraram. Tanto para quem não gostava da denunciada falta de regulação dos mercados financeiros, como para os que cultivam o capitalismo.


O primeiro motivo de agrado da crise é a alegria espalhada pelos adversários do "neo-liberalismo". Andam por aí, de peito feito, vaidosos no convencimento de que a história acabou por lhes dar razão. Confirmou-se a desgraça que profetizavam para o seu particular credo ideológico vingar sobre os vícios sistémicos de um capitalismo iníquo. Alguns não hesitam em esfregar as mãos de contentamento. Deixam vir ao de cima a sua veia punitiva, exultando por haver gente abundantemente endinheirada que está a perder rios de dinheiro com a crise e empedernidos gurus da gestão cuja diligência foi desmascarada. Diria, uma certa maldade confundida com um acerto de contas, ou apenas uma genética incompatibilidade com quem fez da abastança forma de vida.


Eu, que fico feliz com o bem dos outros, regozijo com a intensa felicidade que tomou conta dos profetas da desgraça do "neo-liberalismo". Só incluo aqueles que são genuínos adversários do "neo-liberalismo", não os ratos de porão que fogem do navio que julgam em naufrágio, certos personagens menores da política que agora se dizem adversários figadais do "capitalismo selvagem" e proclamam o momento de pôr a mão visível em acção, a mão dos governos reguladores. São os simplórios oportunistas com quem não importa perder tempo. São os outros, os que sempre alimentaram o combate aos malefícios do capitalismo, que me enchem as medidas por estes dias. Pelo indescritível contentamento que exibem – e quem pode ficar indiferente a uma pessoa que irradia tanta felicidade?


Há um pouco de tudo entre o exército que acusa o "neo-liberalismo" pelo estado de coisas a que chegámos. O exército que se engrossa a cada dia que passa, a cada dia em que a crise não dá sinais de retroceder. Há os mais radicais, que exultam no convencimento de que estão diante do féretro do capitalismo. E os menos radicais, já não tão órfãos de referências que os guiem, os que aceitam o capitalismo ou com ele são condescendentes. Estes limitam-se a reclamar o controlo dos mercados que andavam indomáveis. Têm dito que são tempos sem precedentes. Afinal, cada crise é sempre uma crise singular - contraponho. Sem darem conta, porém, regressam às curas habituais. Quando as coisas andam mal nos mercados, é o momento da intervenção salvífica da entidade divina, o Estado.


Liberal dos sete costados, tenho uma desconfiança metódica em relação à milagrosa intervenção correctiva das autoridades. Que se adensa no tempo em que vivemos, um tempo de lideranças tão frouxas, um tempo onde campeia o amadorismo dos dirigentes. Episódios recentes confirmam-no: aparecem em pose grave a anunciar medidas que julgam ser a solução para inverter o rumo da crise. No dia seguinte, os mercados afundam-se ainda mais, mostrando a falta de confiança nas medidas e na gente que as adopta. Ao invés, acredito na capacidade auto-regenerativa dos mercados. Há, porventura, gente a mais sem escrúpulos, para quem só conta enriquecer depressa e depois enriquecer ainda mais. Mas acredito – ou quero acreditar, por descrença na solução alternativa da mão visível das autoridades – que o mercado sabe encontrar o seu ponto de equilíbrio com a depuração das excrescências. As falências são isto mesmo.


A crise também é pedagógica para um liberal dos sete costados. Serve para interrogar os seus alicerces intelectuais. Incomodam-me reacções exacerbadas de gente que se diz liberal (e há muitas maneiras de ser liberal), teimando que a crise não beliscou os fundamentos da economia de mercado e os esteios do liberalismo. É tapar o sol com a peneira. Uma forma diferente de religiosidade, tão imersa na cegueira que distingue os mais diligentes seguidores de qualquer religião. Perturbante, para o agnóstico militante, é sentir que a filiação liberal me aproxima de um sucedâneo de religiosidade. Um dia destes dizia que a crise não prova que o mal está na organização desregulada dos mercados. Está na ganância de gente que acaba por destruir por dentro a virtuosa organização do mercado. Ora, este argumento não se distingue da católica retórica que ensina que a deus nunca se podem imputar os males das pessoas, pois estas são dotadas de livre arbítrio.

E eis como a crise financeira produz a demanda de uma catarse interior.


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