28.10.08

Vudu Sarkozy


Alguém com muita imaginação, e uma certa antipatia pela figura do presidente da república francesa, inventou um boneco reproduzindo os traços faciais de Sarkozy. O boneco tem uma interessante utilidade para os detractores da personagem: é um peluche muito especial, diria, propositadamente peluche. Só para poder receber os alfinetes que se espetam nele, das pessoas que, através do vudu, procuram exorcizar os seus particulares fantasmas.


Estranho seria que Sarkozy, do alto da gravidade das suas funções, não ficasse indignado. O obnóxio cérebro que teve a inventiva ideia há-de dar com os costados num tribunal. Acusado de ofensa à honra pessoal. Falta saber se a honra beliscada pertence a Sarkozy cidadão, um entre tantos na republicana França, ou a Sarkozy com as vestes do presidente da república em que não se pode tocar nem ao de leve. Fico maravilhado com a aura intocável destes governantes que chamam a si uma respeitabilidade acima de qualquer suspeita, elevando-se a um patamar inacessível ao comum dos mortais. É interessante que, nisto, repúblicas e monarquias pouco se distingam. Ainda há dias li num jornal espanhol que o rei lá do sítio, distraído, nada fez para impedir que um zeloso funcionário do ministério público pusesse no banco dos réus um autarca que teve um deslize e insinuou que sua alteza era corrupta.


Quando estas personagens se alcandoram a um patamar tão elevado, como se fossem muito diferentes da maralha que conduzem, há ali alguma auto-deificação. Uma paradoxal auto-deificação, porventura não surpreendente nas monarquias – pois os reis e as rainhas parecem feitos de uma massa diferente do comum dos mortais, tão especiais, tão providenciais, tão acima da média em tudo o que se envolvam. A mesma conduta em repúblicas é mais difícil de explicar. É, ao mesmo tempo, uma deriva suicida dos republicanos que se querem distinguir da putativa diferente têmpera dos monarcas. No fim de contas, os republicanos que se acham acima do cidadão comum comportam-se como reis sem coroa. E sem os privilégios da sucessão dinástica (se bem que vão abundando os exemplos que trazem a sucessão dinástica para dentro das repúblicas).


Os ofendidos políticos que não perdoam o sarcasmo que sobre eles se abate são pobres de espírito, desprovidos de ginástica mental para serem os alvos do humor alheio. Dessa forma mostram escassa inteligência, pois as suas reacções despropositadas acabam por ampliar a dimensão do sarcasmo de que são alvo. Põem-se a jeito para mais chacota. Pelo caminho, perdem a noção da decência, que se confunde com a exigência em serem respeitados, o que prejudica a possibilidade de serem criticados através do sempre saudável humor. Quem assim exige ser levado muito a sério perde o seu capital de credibilidade. A escassa inteligência mostra-se pelo dispêndio de tempo e energias a combaterem na justiça os que ousaram beliscar o seu intocável estatuto.


No caso de Sarkozy, o episódio do vudu que vai acabar em tribunal é sintomático da patetice que envolve, a cada dia que passa, a figura. É um homenzinho que não hesita em colocar-se em bicos dos pés – talvez pela estatura de minorca que, consta, atormenta os seus sonhos, de tal arte que calça sapatos com uns tacões que artificialmente esticam a personagem nuns centímetros além da sua estatura natural. No cortejo de vaidades pessoais, deve ter agradecido aos deuses a profunda crise que nos cerca: oportunidade para vir todos os dias para a ribalta, com a pose grave tecendo os dantescos diagnósticos que a sua providencial aura há-de permitir ultrapassar. Senhor das suas certezas, até já decretou a renovação do capitalismo.


O frenesim sarkozyano é o fértil terreno para intensas irritações pessoais. Admito, em alguns casos até, de empedernidos militantes de uma esquerda qualquer, motivo para o ódio de estimação. Daí ao sarcástico boneco vudu onde os detractores podem descarregar a ira, ou o cansaço pelas repetidas e aparatosas aparições do cromo, um singelo passo a separar. Como os percebo. De cada vez que vejo Sarkozy passear a sua vaidosa arrogância, os seus gestos espaventosos, a retórica assertiva e cheia de teatralidade, sinto uma súbita pulsão de, ó heresia, ser de uma esquerda qualquer.


Aos indígenas especialistas do marketing, uma interrogação: haverá mercado para o vudu Sócrates?


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