6.10.08

Antropologia do crime


A sociologia de pacotilha que abunda por aí assegura que a criminalidade anda nos píncaros por causa da crise económica. As gentes andam desesperadas, vivendo à míngua por entre as migalhas que a crise vai deixando no caminho. No auge do desespero, as gentes descambam para o crime. É o que lhes resta. Nesta lógica, teríamos condescendentes juízes a arranjar causa desculpabilizante para os crimes motivados pelo desespero alimentado pela profunda crise. Seria uma roda livre: mais pessoas apercebendo-se que haveria na crise o pretexto para tresloucados actos que os sentassem no banco dos réus. Logo de seguida um compassivo juiz – porventura com a mesma doutrinação maoista da senhora que combate a criminalidade económica e a corrupção – a passar uma esponja nos descaminhos da lei.


Não é teoria que me convença. Também não concordo com aqueles que tentam dar uma ajuda ao ministro da administração interna, o Rui Pereira pau-para-toda-a-obra (ele tanto é ministro dos polícias, como esteve no tribunal constitucional, como tem perfil para ser ministro da agricultura, ou das finanças, como nem seria de estranhar que entrasse para governador do Banco de Portugal, tanto o perfil plurifacetado do cromo). Acham que não há mais crimes, nem sequer tem aumentado a criminalidade violenta. O que se passa, dizem, é a comunicação social de sarjeta que faz notícia de cada crime e aumenta as proporções da criminalidade. Só que a realidade não é tão doce quanto este governo e os seus acólitos gostariam que fosse.


Tem muito que se lhe diga a maneira de pensar de um criminoso. Sem distinção de crime – tanto faz o pequeno crime como o crime mais repugnante, o que dá direito a uma boa maquia de tempo na cadeia. Vou daqui retirar os homicídios e todos os crimes sobre outras pessoas. Só os crimes motivados pelo desejo de enriquecimento, e da maneira mais fácil, que é sem as pessoas se darem ao trabalho de trabalharem. É gente que arrisca um bem inestimável (a liberdade) na aposta do súbito e fácil enriquecimento. A linha entre a liberdade e as masmorras é uma ténue linha. Quando dão conta, e quando as polícias são diligentes na investigação e os tribunais se esquecem de ser complacentes, já acordam encerrados numa cela. Nessa altura, interrogo-me, se por entre o arrependimento farão cálculos sobre o risco que correram na ânsia de enriquecerem pela via mais fácil.


Se fosse gente mais instruída, com certeza que a prática do crime seria precedida de cálculos cuidados que pesariam, em dois pratos da balança, o risco de privação da liberdade e os proventos generosos do acto punido com pena de prisão. Sociólogos, com a ajuda de economistas que construíram complexos modelos econométricos para medir as imensas variáveis em causa, teriam a resposta na ponta da língua. Acontece que raras vezes os meliantes que procuram fácil enriquecimento através do crime têm conhecimentos, rudimentares que sejam, de sociologia e de econometria. Entramos no domínio do amadorismo. Ou, diria, do empirismo, a palavra-chave para a tanta criminalidade deste tipo.


O nutriente da criminalidade que cresce em flecha não é a penetrante crise económica que semeia desespero. É o sentimento de impunidade notado entre as gentes que se deixam sucumbir pela tentação da criminalidade. Há gente muito importante que vive mergulhada em luxos principescos e que, pelo menos se suspeita, lá chegaram por meios repudiados pela lei. Ou gente que corrompe e intimida quem lhe aparece pelo caminho como obstáculo, espalhando um rasto de terror, uma espécie de máfia em pezinhos de lã. Vão passando entre as gotas de chuva sem se molharem. Quase um milagre, não fossem os esconsos meandros do direito que dão azo à existência de curandeiros (advogados espertos, muito espertos – tanta a esperteza como a ausência de escrúpulos) que os safam das masmorras com manobras processuais, ou a inepta investigação policial que dá ensejo às manobras processuais, ou juízes que proferem sentenças incríveis.


A gentinha mais anónima, que endeusa esses personagens que continuam a viver à margem da lei e ainda se pavoneiam como senhores exemplares, tenta aplicar os ensinamentos dos seus heróis. Afinal, pensa a gente corriqueira, os heróis provam que compensa andar à margem da lei. Com um pouco de sorte, um pouco de jeito e, caso as coisas corram mal, um advogado idóneo, tudo se compõe. Quando dão conta, nem houve sorte, nem menos jeito e os advogados trutas que conseguem o milagre de pôr em liberdade o criminoso mais evidente são escassos e muito, muito caros.


Nessa altura, já entre o sol perfurado pelas grades da cela, alcançam que o cálculo do risco foi tão errado quanto as negativas que tiravam nos exames de matemática enquanto penaram na escola.


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