Ainda não se anunciam os ventos já frescos, o sinal do Outono que tarda – e que chega mais tarda a cada ano que passa –, mas já as folhas se espalham pelas ruas. Fazem a sua cama densa debaixo das árvores que vão ficando despidas assim que o calendário entra pelo Outubro dentro. As amarelecidas folhas, enfraquecidas folhas, desprendendo-se dos seus ramos. Caducam no zénite da outonal estação que é a enseada onde se acolhem já féretros.
As folhas caducas, nesta altura apenas uma saudade do viço que foram outrora. Na sua tonalidade acobreada que toma contas das ruas, antes dos homens do lixo as virem recolher, encerram a nostalgia maior. Lacram as memórias de uma juventude vigorosa, aqueles tempos em que havia pressa de viver tudo ao mesmo tempo, como se o mundo fosse chegar ao fim ao cabo do dia seguinte. Eram os tempos em que tudo era vivido na sua vertiginosa velocidade. Sem oportunidade para os sentidos se demorarem nas imperceptíveis, mas contudo arrebatadoras, dádivas da vida, tamanha a pressa de passar por tudo.
As folhas tombadas, as folhas que esvoaçam anarquicamente quando o vento se levanta, são a testemunha desses tempos de insaciável consumo da vida. As folhas caídas que emolduram o Outono são um sinal paradoxal, a inexacta expectativa da nostalgia dos tempos perdidos no sótão das memórias. É que essas folhas não regressam às árvores de onde tombaram. São, elas mesmas, os vestígios de um tempo que deixou lá atrás a sua marca indelével. Se há lição vertida pelo restolho abundante que a outonal estação semeia nas ruas é a aprendizagem do tempo – um templo de onde se soltam as ondas que amansam a voragem da vida. Como se aquelas folhas, entretanto adormecidas no seu leito fatal, mostrassem a inutilidade da existência que teima em ultrapassar-se na pressa de viver. As coisas, todas as coisas, pertencem ao seu tempo.
Desenganados os que se entristecem nos sombrios dias de Outubro, quando as árvores vão emagrecendo em folhagem à medida que as ruas se enchem das caducas folhas. Nem a conjugação de elementos, que parece um convite à melancolia – os dias plúmbeos, o vento agreste, as primeiras chuvas que adivinham a impiedosa invernia, as roupas que acamam o corpo –, tem a força suficiente para entregar os corpos na letargia de quem se deixa derrotar pela melancolia outonal. Ao contrário: a escondida beleza do restolho composto pela folhagem em decesso. O acobreado das árvores ao longe, os castanheiros que se tingem de avermelhadas tonalidades, eis a magia de uma nova paleta de cores. Mudança. O Outono no seu esplendor revelado ao rejeitar a monotonia do estio já extenuante.
A beleza do quadro onde domina a cama de folhas caducas. Das folhas que crepitam quando são calcadas, ou das escorregadias folhas quando humedecidas pelos primeiros suores nocturnos que se condensam em gotas orvalhadas. É todo um respiradouro que renova a paciente existência. Pelas folhas que se entregam na sua tão bela sepultura, trinam os sinos que ecoam pelas profundezas do pensamento. Avisam que insistir na vertigem do tempo é um passo em falso, um tremendo equívoco, os sentidos permanentemente deixando escapar as pequenas coisas que a pressa impede de reter. As pequenas coisas que encerram o sabor mais intenso da existência.
São as folhas secas, no seu leito fatal, que o ensinam: pode a existência esbarrar na incómoda curta duração – pois a vida é sempre curta, por mais que se delongue. Apressá-la, na fobia de sorver toda a sua sumarenta seiva, porventura a traição maior aos que vivem tão desalmadamente. A tranquila cessão das folhas, que não seja o falsário altar onde os endemoninhados da vida voraz acabam por chegar à meta tão antes do tempo. Só então hão-de reparar como foram atraiçoados pelos corsários que os levaram à vertiginosa forma de vida. Quando forem folhas caducas, saberão.
1 comentário:
Oi vim através do blog VALE DAS SOMBRAS li um texto seu lá e me apaixonei...cheguei aqui fiquei mais encantada ainda com sua escrita..amei..como escreves bem
peço permissão para linkar vc em meu blog no ausência pois tenho dois.. parabéns pelo blog
suave seja!
bjos..na alma
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Sandrinha
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