16.10.08

Em pose para a fotografia (tristes figuras)


Tarefas ingratas. Daquelas dão sempre resultados insatisfatórios. Pôr a cara a jeito de uma fotografia que seja o retrato oficial, por exemplo. Ensaios atrás de ensaios, de um e outro ângulo, num impossível esforço para o rosto ser captado em pose natural. Sempre fotografias que são difíceis de digerir, que entram a contragosto na sensibilidade dos olhos que são os juízes mais exigentes da figura tecida através da câmara fotográfica.


Quando isto acontece, apetece-me oferecer uma silhueta imperceptível, como se fosse impossível distinguir a cara que se resguarda na silhueta por sua vez refugiada na cortina de sombras. As fotografias "tipo passe" são o lacre de desagradáveis impressões. Assim que as retiro do invólucro, uma imediata sensação de estar a fitar um desconhecido. A cara retratada não parece a minha. Invariavelmente, fico mal no retrato. E estranho que o rosto emoldurado no retrato pareça diferente do rosto que habita todos os dias no espelho matinal. Porventura, um espelho generoso. Ou as fotografias, incapazes de reter os traços fidedignos do rosto nos seus tempos habituais. As fotografias, um embuste.


Há lugares que exigem fotografia do rosto como cartão-de-visita aos visitantes desses lugares. A fotografia revela o rosto de quem habita nesses lugares. Páginas pessoais na internet, páginas profissionais, folhetos que apresentam a pose estudada do chefe de alguma coisa, etc. Onde tenho esbarrado em poses mais ridículas é em lugares onde há gente que julga pertencer a um qualquer tipo de elite. Ontem vi na televisão uma reportagem que ensinava truques para as gentes lavarem uma "vida positiva". A reportagem desfiava o enfadonho rosário de milagres da "vida positiva", com a assinatura de uma especialista vinda da psicologia.


No início da reportagem, os espectadores foram informados que as sugestões miraculosas eram da autoria de uma "investigadora na Universidade do Minho" (não retive o nome). Passou, por um punhado de segundos, a imagem do rosto da investigadora. Ocupando todo o ecrã. Os lábios semi-cerrados, esboçando um suave sorriso. Notava-se pelo brilho dos olhos que a senhora sabia do que falava, pois tanto brilho só podia ser sintoma da "vida positiva" que ela consegue levar. A pedra de toque no breve retrato filmado da cientista: o queixo amparado pelo dorso de uma mão, que erguia a cabeça com ligeireza num inaudível lampejo de altivez. Há variações desta pose. A mão amparando a parte lateral da cabeça, com dois dedos negligentemente movediços sobre o nariz ou sobre os lábios. Ou só as pontas dos dedos em assistência à parte lateral da cabeça. Ou a mão toda como sustentáculo do rosto, acamando-o nas rugas da palma da mão desde o queixo até às imediações das orelhas.


Uma interrogação: fica a pose mais grave, e portanto respeitável, se as mãos subirem ao nível do rosto e forem seus bordões que lacram a gravidade e a respeitabilidade do retratado? Se há função que essas fotografias não conseguem cumprir, é a de exteriorizarem naturalidade. São poses forçadas, fabricadas, altivas. De quem parece querer passar ao mundo uma superioridade em qualquer coisa. Poses pretensiosas. E poses ridículas, se a subjectividade mo consentir. As tristes figuras que andamos a fazer nos retratos que nos oficializam aos outros, principalmente quando dar o nosso melhor acaba por nos embrulhar no manto da ridicularia.


Estarei errado, talvez. A interminável fila de rostos suportados por mãos ou dedos ou mãos e dedos em modalidades variáveis coincide com estética que vem de outros caminhos. Ao contrário do meu diagnóstico, muita gente enamorada pela pose estudada em que o rosto e as mãos trocam os passos na valsa fotográfica. A subjectividade da estética trata do resto. No que me diz respeito, essas fotografias cheias de solenidade e carentes de naturalidade são um baú onde encontro o kitsch na sua pureza.


E por que temos que oferecer o rosto ao mundo, como se o rosto fosse noiva prometida ao ávido mundo? Na antítese da popularizada pose, há quem se esconda de retratos, impenitentes objectores da face desnudada em fotografias trazidas ao conhecimento geral. De Herberto Hélder não há conhecimento de fotografias recentes, por recusa militante do poeta. Tenho para mim que entre a exposição de poses ridículas e o recolhimento da figura, prefiro a discrição do último.


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