17.10.08

As coisas nas suas cores


Terias que te convencer: que as coisas, todas as coisas do mundo, não são um fogoso repositório de sombras. Onde apenas triunfa a escuridão, uma asfixiante tirania que veda as cores aos olhos das pessoas. Terias que te convencer que as cores irrompem na sua clareza. As cores, monumentos maiores que emprestam a vivacidade que derrota a letargia dos vencidos.


Daqueles lugares onde habitam sorumbáticos seres, encravados nas suas indecifráveis trevas, grita um contagiante, aflitivo apelo a deixar o corpo enlear-se pelas areias movediças onde o pensamento se torna inerte. Tudo se passa como se a recusa das cores fosse a opressão do espírito livre que vê as asas seccionadas. As trevas onde todos são convocados para um rastejar digno dos vermes. Só sombras, vultos disformes – e os próprios corpos rastejantes decantados na sua disforme condição. A aliciante tentação de te abraçares aos sisudos dias onde todas as cores são assassinadas. Uma deriva fatal. Os espelhos onde as sombras se reproduzem são o altar onde repousam as cores. Cores sem sal, apenas os muitos matizes do negrume.


E, contudo, as coisas estão embrulhadas nas suas maravilhosas cores. Repousam nas portentosas cores adormecidas na recusa em serem reveladas. Adiam-se, sempre para um depois que tarda em chegar, aprisionadas na densa cortina de vultos e sombras onde se semeiam todos os alçapões onde o corpo cai com estridência. Nos dias que se sucedem, apenas a teimosia da demissão das cores, um suicidário apelo vindo das profundezas do ser, os dias sempre tristonhos. Uma pesada camada de plúmbeas nuvens que adeja sobre a cabeça. Pesa sobre a cabeça e arqueia o dorso na existência compungida. Diria: um legado da totalitária educação pontuada por dogmas metafísicos.


Os olhos, treinados para a traição das sombras onde vagueia a obscuridade. Tudo se revolve na sua opacidade. Ou parece entregar-se a essa opacidade, na fatal demissão de si. A doentia fuga dos dias aspergidos por uma coreografia de cores, todas as cores numa desenfreada embriaguez, caoticamente atropelando-se umas às outras. Mas cores. Uma paleta onde as cores são tantas que é difícil escolher um punhado delas para pintar a existência. O pior é que sabes que as cores existem, algures. E teimas no refúgio das esquálidas sombras que escondem a têmpera das coisas. Teimas em contemplar o sacrário onde navegam os vultos indiferenciados, todos empenhados na tacanhez das ausentes cores.


Temes a beleza das cores? Temes a libertária função das cores? A acomodação à procissão das sombras, um hino à indiferença do ser – à indiferença de todos os seres. Um comodismo que é demissão do ser. Há quem fique apaziguado com o ordeiro rebanho que toma a traiçoeira estrada plana onde só são admitidos os que assinam o contrato da acrítica existência. Cedem à convocatória dos sacerdotes a quem convém a negação das cores. Os sacerdotes, conscientes de que a contemplação das cores libertaria as amarras do ordeiro rebanho. Que jamais o seria, assim que tomasse conhecimento da beleza das coisas nas suas esplendorosas cores. Quem aceitaria recuar à mesquinha existência?


Podem as cores alimentar dissabores. Podem as cores causar episódicas náuseas, pois nem todas as cores espelham agradáveis sensações à vista. Nem que cores haja a fazer notar alguma repugnância espontânea, seriam preferíveis à impenitência das sombras que são o teu espartilho. Porém, persistes na acomodação malsã que te agrilhoa. Como se a liberdade em ti fosse maleita terminal.


O mundo todo a preto e branco, um mundo pequeno que se encerra na sua mesquinha concha. Nem é do exterior que a medonha escuridão te protege. É da incomodativa existência que questiona, metodicamente interroga todos os alicerces das coisas. Debaixo das fundações enraizadas das coisas, serias capaz de as discernir nas suas cores. Que assim não passam de miríficas promessas que não chegam a sair do casulo dos sonhos, aquelas promessas sempre agendadas para o depois que nunca tem lugar. Houvesse ao menos vontade. Vontade para espreitar para as coisas pelo seu lado oculto. Porventura haverias de descobrir o adiado hino ao optimismo. Até serias o seu emérito compositor.


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