O Papa é um castiço. Aproveitou a ocasião – mercados financeiros pelas ruas da amargura – para se juntar ao coro de pitonisas que andam, tão vaidosas, repetindo à exaustão "eu não avisei?". Um coro de abutres. Os ditos não hesitam em abocanhar o que julgam ser os restos já quase cadavéricos do execrável capitalismo. Bento XVI conseguiu ver no momento um feixe de inspiração de onde recolheu a oportunista comparação. Porque de puro oportunismo se trata. Compreensível oportunismo: a melhor forma de ocultar a crise que nos afecta é sermos profeta da desgraça da crise alheia, ainda pior que a nossa. Como se na crise alheia estivesse a cura para a nossa própria crise.
Caem, os bancos, no diagnóstico do Papa. Se soubesse um pouco de história económica, conteria o indisfarçável regozijo pelo pandemónio que varre os mercados. É que os bancos caem, uns até perecem, mas o sistema capitalista é globalmente mais forte, encontrando na crise a catarse que o salva da doença terminal que apenas consome os menos capazes. Das palavras de sua santidade percebe-se que ou está a aproveitar o caos quase sem precedentes para nobilitar a fé cristã, ou anda de mau humor porque as suas poupanças estão a ser tocadas pelos ventos da crise.
A comparação feita pelo Papa merece que a atenção nela se detenha. Afinal, quem colocou os bancos e a palavra de deus na mesma bolsa de valores? Foi o Papa. Depois deste deslize papal – lendo a notícia, fica-se a saber que a metáfora se soltou a meio de um sermão feito de improviso – a igreja católica perdeu trunfos para reclamar contra os excessos materialistas que se apoderam da gente comum. Foi o sumo-sacerdote que trouxe a palavra de deus para o mesmo nível dos bancos cotados em bolsa.
Os católicos são instruídos para nunca questionarem a sábia palavra emitida pela boca dos Papas. Apesar de não me incluir no grupo, vou fazer a vontade ao sumo padre e interrogar: qual é a cotação da palavra de deus? É ela assim tão estável como proclamado pelo chefe da igreja católica? Se fosse um daqueles ratos dos mercados financeiros, sempre com elaboradas fórmulas matemáticas que são a equação de todos os problemas, uma cotação haveria de ser encontrada. Fujo da racionalidade hermética da matemática, como fujo dos apelos cegos à fé perfumados pela metafísica. A palavra de deus não tem um valor determinado nesta bolsa de valores. Expõe-se a variações. Se quiséssemos, podia-se construir um gráfico retratando as oscilações da palavra de deus. Por mais que custe à igreja católica, se esse gráfico reproduzir uma série temporal onde está vertido o longo prazo, a invectiva papal sobre o capitalismo ignora os telhados de vidro da igreja de que Bento XVI é o pastor máximo. O gráfico seria implacável, o desmentido factual da crença do Papa: afinal a palavra de deus não é estável, está em declínio e de há muito tempo. As provas? Os seminários com menos aprendizes de padres e as igrejas com menor assistência.
Já se sabia que a igreja não morre de amores pelos símbolos que representam o capitalismo moderno. É contra a sede de dinheiro que aliena as pessoas dos valores espirituais. O capitalismo é o adversário principal da fé católica. Aqueles que forem coerentes consigo mesmos e que, sendo crentes, obedecerem aos preceitos papais, não podem cair nos descaminhos do capitalismo, da cegueira do lucro, da materialidade fútil do consumismo. São devedores da frugalidade da vida. Agora que o capitalismo está na mó de baixo, Bento XVI, já com o tirocínio da retórica falaciosa tão típica dos frouxos políticos contemporâneos, quis ser mais um a dar estocada fatal no sistema capitalista.
As suspeitas vindas de trás em sua plena confirmação: já não são apenas grupelhos católicos fantasiosos, na sua especificidade regional aberta a influências indígenas (exemplo: a teologia da libertação), que ecoam voz de protesto contra o farisaico capitalismo. O topo da hierarquia católica, também de braço dado com os folclóricos que perseguem impiedosamente o capitalismo. Só falta saber se teremos direito a ver arcebispos, em representação papal, na próxima manifestação dos movimentos anti-globalização. Seria uma diversificação de actividades da igreja. Pode ser que consiga evangelizar alguns jovens que costumam espalhar a confusão nessas manifestações alter-globalização.
Um improvável namoro, dirá a voz corrente. Nestes tempos em que arribam as mais raras aves, quem sabe?
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