30.10.08

Um texto socialmente iníquo


Advertência preliminar: a prosa que se segue é, para muitos, um hino à iniquidade social. Censurável, portanto, se for olhada pelo prisma da consensualidade forçada, dos dogmas que imperam por força da maré politicamente correcta. É um texto que rema para o lado contrário da caudalosa maré.


Neste regresso ao Mr. Keynes de antanho, promovido por políticos excitados com a oportunidade de voltarem a domar os, pensava-se, indomáveis mercados acusados da crise que cavalgamos, vejo argumentos como uma coreografia em falsete. É de bom-tom advogar preocupações sociais, aceitar a redistribuição de rendimentos para que os mais necessitados não sejam abandonados à sua desdita. Quem tiver a ousadia da dissidência, logo apontado a dedo e quase lapidado em praça pública. Como o direito à dissonância ainda não foi banido, exerço-o como voz que rompe a sinfonia patrocinada pelos sacerdotes bem pensantes e por uma classe política inebriada com os tempos sombrios que nos cercam.


Os consultores de quem manda sussurram, por estes dias, a cartilha de Mr. Keynes – o economista que, fosse vivo, não gostaria de ver esta economia tão desregulada, este capitalismo tão desenfreado. Talvez decepcionados pelo mau desempenho dos mercados, ou dos seus agentes a quem acusam dos piores crimes (sem, contudo, chegarem ao disparate do luso escritor laureado com Nobel, que há dias asseverou serem esses crimes comparáveis a genocídio), sopram os soundbytes ao ouvido dos actores proeminentes. Os consultores, também amadores – e assim se acha o fio à meada à tenaz mediocridade dos frouxos líderes esperançados na crise para o deixarem de ser, frouxos. Prova do amadorismo maior: acreditarem que a História se repete. Insistem nas comparações com a crise que começou com o colapso da Bolsa de Nova Iorque em 1929. Só para resgatarem as mesmas medidas, as de Mr. Keynes, que terão sido providenciais para limpar a demorada nódoa da crise que entrou bem fundo na década de trinta.


Do receituário de Mr. Keynes fazia parte a generosidade social. O Estado – supostamente, todos nós – é o bolso sem fundo onde a generosidade encontra manancial. Inerente à nossa condição de membros de uma comunidade onde se exige compaixão com os mais necessitados. Entra aqui a lógica da redistribuição. Nunca um slogan revolucionário assentou tão bem como retrato da redistribuição: "os ricos que paguem a crise", foi pregão pintado à exaustão nas paredes de cidades, vilas e aldeias nos tempos que se seguiram à revolução que depôs a ditadura. Hoje, interpelado por insistentes jornalistas sobre a subida do salário mínimo para 450 euros, o loquaz timoneiro da nação assegurou que é em tempos de crise devastadora que ninguém deve questionar o aumento da generosidade estatal.


Fazer generosidade social com o dinheiro dos outros é tão fácil como eu apostar os testículos dos meus gatos já castrados em como a decisão saiu da cartola porque se lembraram que há eleições para o ano. Vários empresários duvidam da capacidade para pagar este salário mínimo; ocasião para a entrada em cena da gente do costume que metodicamente desconfia das intenções dos azougados empresários, logo acusados de só terem olho para o malfadado lucro. O timoneiro insinuou a existência de uns estudos económicos provando que a competitividade da economia não é afectada pelo generoso aumento do salário mínimo. Será que os houve, esses estudos?


O que me causa espécie: a serem verdadeiros os temores de quem gere empresas (decerto com mais conhecimento de causa do que políticos encerrados nos seus castelos de marfim), esperam-nos falências. Atrás das falências, desemprego. Só então a generosidade custeada pelo orçamento de Estado começará a funcionar, por via da pesada factura dos subsídios de desemprego. Alguns estranharão a linha de raciocínio, interrogando-se: se o orçamento é financiado pelos impostos, se são os mais ricos que mais impostos pagam, onde está o problema? O problema está na lógica da generosidade forçada. Na subtracção de rendimentos que podiam ser destinados a investimentos produtivos, daqueles que criam os sacrossantos empregos que tantos votos garantem aos que adoram adoçar o discurso com promessas de não-sei-quantos empregos que haveriam de ser inventados durante a legislatura.


Odeio adágios populares, mas há um que retrata na perfeição a imperfeição desta lógica da generosidade forçada: tantas vezes vai o cântaro à fonte que num dia se há-de partir. Quando olho para estatísticas que comparam o peso das despesas públicas ao longo do tempo, é uma visão dantesca: um gráfico com uma linha sempre a subir, a do peso das despesas públicas na riqueza gerada. Já chega quase a 50%. Depois vêm os saudosos de Mr. Keynes, de braço dado com os figadais inimigos do capitalismo, fustigar o "neo-liberalismo" e o "capitalismo desregulado", mais outros chavões parecidos. As estatísticas desmentem-no. Para quê regressar a Mr. Keynes se ele nunca deixou de ser o patrono dominante?


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