31.12.08

Cousteau, "The Last Good Day of the Year"

“Novas oportunidades”, ou a ascensão da mediocridade?


O ano está senescente e presta-se a balanços. Podia destacar numerosos acontecimentos, uns pela positiva, outros como expressão do que de mais lamentável o ano senescente trouxe. Quase ao calhas, como das primeiras coisas que veio à lembrança, calhou o programa "novas oportunidades".


Terá sido uma invenção da casta de pedagogos que medra pelo ministério da educação, contagiando com o seu entusiasmo experimentalista um primeiro-ministro com percurso académico pejado de dúvidas? Ou, ao contrário, uma súbita iluminação que clareou a mente sempre muito à frente do timoneiro da pátria, que terá encomendado aos vanguardistas pedagogos do ministério um programa destinado à muita gente que tinha os estudos pendurados? É um desperdício de capacidades, ter esse exército de valorosa gente que, por motivos insondáveis, interrompeu o percurso escolar.


Se a pirâmide demográfica anuncia tempestades para o sector do ensino, nada como reinventar a pólvora: facilitam-se as coisas à numerosa gente que ainda não tinha terminado o ensino secundário, que assim fica com um pé à porta das universidades. Como complemento, inventou-se o programa "mais de 23". Quem tiver idade superior a vinte e três anos e alguma experiência profissional nem precisa dos estudos secundários concluídos. Prestam-se a provas que testam os seus (básicos) conhecimentos e passam a fazer o tirocínio para doutores.


Há dias li uma história que é o retrato acabado das consequências das "novas oportunidades". Um desportista de alta competição andava longe de terminar o ensino secundário. Nem sequer com as muitas regalias do estatuto de alta competição lá chegou. Até que percebeu como a sua vida podia mudar. Primeiro acto: tirar partido das "novas oportunidades" e, num abrir e fechar de olhos, tinha em mãos o certificado do décimo segundo ano de escolaridade. Segundo acto: percebeu que o estatuto de desportista de eleição o punha ao abrigo de um contingente especial no acesso à universidade. Não tinha que passar pelo crivo das médias de acesso à universidade, que isso fica para o comum dos mortais. Há um ano só tinha o nono ano de escolaridade. Hoje é estudante de medicina.


Já houve quem, nas páginas dos jornais, se mostrasse perplexo. Estará o rapaz capacitado para ser médico, olhando à ascensão vertiginosa que o levou, de uma penada só, do nono ano para os bancos de uma faculdade de medicina? E se um dia mais tarde calhar em sorte sermos tratados por este médico – foi a interrogação repetida à exaustão. Vejo o outro prisma do assunto: terá o rapaz pedalada para aguentar o curso de medicina? Não andará ali a ocupar o lugar de alguém que teria mais capacidade para a função?


Ao longo dos últimos anos têm-se multiplicado os episódios de ilusão estatística alimentados pelos notáveis pedagogos do ministério da educação. Só para não passarmos vergonha nas comparações com os parceiros europeus, mudam-se as regras e cauciona-se um mar de facilidades que garante o sucesso aos estudantes. As consequências são perversas. Primeiro, as criancinhas que depois se fazem adolescentes treinam-se no facilitismo metódico que não é a melhor preparação para serem parte integrante da selva profissional. Segundo, neste contexto de facilidades o papel dos professores é desvalorizado. De uma forma ou de outra, todos obtêm aprovação. Nem sequer se distingue o mérito, pois pode acontecer que um aluno esforçado venha a estar nas mesmas condições do cábula que aproveita a oportunidade das "novas oportunidades". Por que se esforçam os que têm brio se a compensação é a mesma dos que aproveitam o embuste governamental? Terceiro, temo que a banalização se instale também nas universidades. Os maus hábitos que vêm de trás descompensam os alunos para as exigências a que o ensino universitário estava habituado. O processo de Bolonha já arrepiou algum caminho, não cultivando a exigência de outrora. Hoje, não se avaliam conhecimentos; avaliam-se competências – só para baixar a fasquia da exigência e não maçar muito os estudantes.


Há medidas que são o espelho dos seus fautores. São conhecidas as curvas sinuosas do percurso académico do timoneiro da pátria. Como é público o curriculum da senhora que manda no ministério da educação, uma escalada meteórica com cinco anos a separar a entrada na universidade da conclusão de um doutoramento. Estes são os méritos da democratização: se tiveram acesso a tantas facilidades, faz sentido estendê-las à populaça. Nem que seja para premiar a mediocridade que, numa cultura de exigência, jamais passaria disso mesmo, mediocridade não premiada. E qual é a surpresa? Os mandantes da actualidade, lídimos representantes da mediocridade.


Odeio ser catastrofista. Mas diante disto só consigo balbuciar, em jeito de interrogação, se isto não é o princípio do fim.


30.12.08

Há gente que nasceu para ser carne para canhão?


Vejo a serenidade de Tzipi Livni, ministra dos negócios estrangeiros de Israel, ao pronunciar o inevitável: nas guerras há sempre vítimas inocentes. Ela diz: "as pessoas têm que compreender". Eu persisto na incompreensão. Resultado de um lirismo inconsequente, o de teimar em não entender a animalesca veia da humanidade entretida com guerras fratricidas. Aquela serenidade da senhora, apenas uma obscena serenidade.


Uma guerra sem baixas não é uma guerra – dirão, atónitos com o lirismo inconsequente dos que teimam em esboçar a sua repugnância pelas guerras, os "realistas" que aceitam o mundo como ele é. Porventura não só aceitam o mundo como ele é; acredito que chorariam lágrimas de crocodilo se o almanaque do mundo passasse pela ausência de guerras e guerrinhas durante um lapso de tempo – mas essa é uma especulação de que não me ocupo hoje.


O que me perturba é haver quem trata as vítimas de guerras como simples números. Não são gente, são já só cadáveres que, nessa condição, não deixam de ser um número a engrossar a estatística das baixas causadas por mais uma guerra do infindável rol que envergonha a humanidade. A frieza com que esses números são anunciados empresta a bestialidade a quem os pronuncia, a quem faz a contabilidade acumulada das vítimas, aos que jogam os números das vítimas de ambos os lados da contenda como expressão da parte que vai triunfando. O que é obsceno? A tranquilidade com que pessoas mortas em combate são traduzidas em números. Sejam militares que, por missão profissional, são a carne para canhão idealizada. Sejam as vítimas inocentes apanhadas no lugar errado e no tempo errado, a quem a retórica belicista convencionou catalogar como "danos colaterais" – e há fórmula mais indecorosa para rotular quem é inocente carne para canhão em guerras de que não devia fazer parte?


Que me interessa quem tem razão – se israelitas ou palestinianos? Todos a perdem quando se entregam a manobras que levam ao desperdício de vidas. São vidas, nomes, um património onde se somam todos os minutos e dias e meses e anos de uma vida subitamente cerceada por uma bomba rebentada por um desmiolado kamikaze a quem foram prometidas setenta virgens na dimensão celestial ou por um sofisticado obus que rebenta com precisão cirúrgica num alvo que, por acaso, tinha naquele momento civis inocentes. Aquela gente que se afadiga em encontrar justificações para as acções da facção da sua simpatia perde-se em análises muito sofisticadas que ensaiam a prova de que a facção da sua simpatia se limita a ripostar aos ataques ou provocações do outro lado. Não percebem que passam ao lado do essencial. Nem percebem que essas análises são tão rigorosas quanto a procura da agulha num palheiro, tão certeiras quanto assegurar se foi a galinha ou o ovo que surgiu em primeiro lugar, tão grotescas por tudo isto.


Aos simpatizantes de ambas as facções digo isto: não há desculpas aceitáveis para que um endemoninhado kamikaze se faça rebentar e com ele leve as vidas de sabe-se lá quantos inocentes. Que apenas o não são, na pérfida maneira de ver de quem instrumentaliza o kamikaze, por terem nascido com a nacionalidade do "inimigo". Essas vítimas são gente, pessoas com nome e com uma vida, não são números ou bandeiras destruídas em nome de uma causa ou de uma religião qualquer. E não há pretextos que sirvam para justificar, nem sequer para legitimar, acções militares impiedosas que em poucos dias já expediram para os cemitérios mais de trezentas pessoas. Para quem condescende com o tribalismo travestido em vestes civilizadas do exército israelita, invocar a auto-defesa é um pretexto esgotado; não lhes passa pela cabeça que as retaliações (assuma-se, por um momento, aceitáveis) devem obedecer à proporcionalidade?


É nestas alturas, sobretudo nestas alturas, que o enfeudamento das pessoas a religiões reforça a minha convicção: as religiões são deploráveis.


Neste tipo de conflitos – os conflitos que se eternizam, os conflitos sem solução em tempo algum – apetece imaginar a redescoberta do tempo. Como se fosse possível dobrar uma página e começar tudo de novo, reescrever a história a partir de uma folha em branco. Para que esta impossibilidade fosse possível, só se a realidade implodisse e com a implosão uns e outros fossem arrastados na lava terminal.


29.12.08

Elogio da juventude


(Em diálogo com o elogio da velhice)


Um dilema, uma inquietante encruzilhada. Ora a sensação de que o tempo corre para a frente, implacável, e que todas as nostalgias são uma ofensa ao devir. As nostalgias como tempo desperdiçado na evocação das memórias que o são apenas isso – memórias, tempo morto, tempo roubado ao tempo que se esvai até ao fatal momento em que um ponto final for colocado na existência. Ora, em contrapartida, a saudade pela juventude que teve o seu ocaso.


A sagração da juventude cujos vestígios se tentam resgatar não é uma expressão de nostalgia. Não há aqui elogio de uma particular juventude emoldurada nos registos da memória. Como se fosse um ensaio para prolongar até ao futuro episódios de outrora que pertencem ao património da juventude pessoal. É de coisa diferente que trata o elogio da juventude. Recusa em ver o corpo envelhecer. Fitar o espelho em demanda das rugas que vão marcando o rosto, um mapa peculiar das vicissitudes dobradas. Ecoar um largo suspiro pelos tempos em que do corpo se exaltavam outras capacidades. Uma paradoxal dialéctica entre corpo e mente, porém. Se ao corpo começam a faltar forças, dobrado pelos sinais de um envelhecimento indomável, a mente revigora capacidades ao libertar-se do espartilho da imaturidade.


Por vezes, não se consegue ceder à tentação de lutar contra a passagem do tempo que vai roubando os fragmentos da juventude que ainda se conservam. É nessas alturas que a nostalgia irrompe, resgatando do baú das memórias os sinais de uma juventude em ausência. E, todavia, sobra a sensatez para combater a relapsa nostalgia, pois ela é a confissão de uma derrota que se abate sobre os que se entregam à militância da rememoração do tempo ido. A evocação da juventude que se esvai é apenas uma homenagem à juventude que algum dia se há-de perder, definitivamente, enclausurada então num túmulo. Uma homenagem à juventude como coisa abstracta.


Quando se dá conta que o tempo corre mais depressa que o relógio, triunfa o louvor da juventude. Olha-se para trás: os cálculos do tempo que transcorreu desde certo episódio marcante revelam o largo calendário que acumula a poeira do tempo. Neste hiato, todo um mundo que mudou, toda uma vida que foi atravessando as mudanças, umas intencionais, outras trazidas de surpresa. O calcário dos anos acumulados a notar-se nos sinais do tempo à feição do envelhecimento. É então que a encruzilhada sublime troa na sua obstinação: entre admitir que os ponteiros da vida fluem no seu sentido natural, e a recusa em perder os vestígios da juventude que desmaiam na inevitabilidade temporal.


Porventura há uma explicação para a encruzilhada diante: um ciclo de vida que emerge como charneira entre a juventude erodida e a meia-idade a ocupar o seu espaço. Há dias em que vinga o sabor adocicado da idade revelada, a reconfortante sensação de que o tempo que ainda falta não merece ser desaproveitado em devaneios que recuperam os vestígios de uma juventude que já não é senão uma memória. E há dias de negação, dias de teimosia em prolongar uma juvenil existência desmentida pelas rugas, pelos cabelos grisalhos em revelação crescente a cada visita ao cabeleireiro, das primeiras traições do corpo. Esses sinais são o alarme que soa e despertam a necessidade de estender a juventude, nem que seja uma artificial juventude.


Forja-se uma juventude que teve o seu tempo. Como se, de repente, do sono despertasse para a inteligibilidade da primavera que já o deixara de ser, aos poucos. As camadas do tempo adensam-se e furtam os sinais dessa primavera. Redobra-se o combate à marcha do tempo, como se fosse possível dobrar a sua inexorabilidade. Pode-se algo contra a emergência da espontaneidade? Ainda que essa espontaneidade seja a negação da realidade que desfila diante dos olhos?


Sobra uma inveja, uma saudável inveja, dos que ostentam a colossal juventude.


26.12.08

És ignorante, ou mentiroso? (Em todo o caso, se fosses meu aluno chumbava-te)


"Foi por isso que criámos as condições para que baixassem os juros com a habitação (…)", José Sócrates, ao que parece o primeiro-ministro que vamos ter que aguentar até 2013, na mensagem de natal difundida pela televisão.


Como o posso evitar? Bem me esforço por ignorar a sua presença. Há que convir: é difícil. O homem é uma praga que enxameia os ecrãs da televisão nos noticiários – e aqui, confesso, o mal é meu, embrenhado numa dependência de noticiários, compulsivo consumidor de informação que sou. Não há noticiário em que não apareça. Uma, duas, três, quatro vezes. Para que ninguém se esqueça que está entregue nas suas prodigiosas mãos. É então que a muito bem oleada máquina da propaganda se faz sentir. De tanto entrar pelos olhos e ouvidos dentro – acreditará a máquina de propaganda – acabaremos por nos render às maravilhas da personagem. Nem que seja pelo cansaço.


Da minha parte, é o enjoo que fala mais alto. Até pode ser excessiva a análise, mas tenho para mim que não houve pior primeiro-ministro desde que a democracia foi instaurada – descontando Vasco Gonçalves e Santana Lopes, porque ninguém pode ser pior que Santana Lopes. Estou cansado do actual timoneiro da pátria, cansado da deificação que o rodeia, cansado da mediocridade que aparece magicamente transformada em grandiosidade, cansado do culto de personalidade que faz parte da estratégia da propaganda. E, sobretudo, moído pela desvergonha cozinhada pela máquina de propaganda que lhe compõe a imagem, passando mensagens que são uma mentira pegada – ou a manifestação da maior das ignorâncias.


Ontem não vi – nunca o faria – a mensagem de natal lida pelo portentoso primeiro-ministro. Mais tarde, travei conhecimento com o conteúdo ao passar os olhos pelas notícias. A frase que dá o mote a este texto prendeu a minha atenção. Por deformação profissional, talvez. Quando a personagem diz que "criaram as condições para que baixassem os juros com a habitação", ou mente despudoradamente ou exibe toda a sua ignorância. Por um momento, sonhei que a personagem regressara aos bancos da universidade e, para minha desdita, era meu aluno. Aprendia comigo os fundamentos da União Europeia. Se num exame escrevesse uma frase que, por outras palavras, dissesse aquilo que ontem comunicou às massas, podia-lhe assegurar (e com um prazer indescritível) reprovação redonda.


O que contém aquela frase assassina que terá levado no engodo muita gente que assistia, naturalmente embevecida, à venda de banha da cobra? Primeiro, utiliza o verbo "criar" no plural. Olhando ao resto do discurso, e colocando a frase no contexto, o senhor estava-se a referir ao governo que dirige de forma exemplar. Ele quer que os concidadãos acreditem que foi o seu fantástico governo, decerto guiado pela sua presciente acção, que ordenou a diminuição das taxas de juro.


Todos os meus alunos – até aqueles que chumbaram – teriam o prazer de fazer a rectificação: é o Banco Central Europeu que fixa as taxas de juro nos países que têm o euro como moeda. E o Banco Central Europeu beneficia de independência política. Haveria alguém de ensinar ao apedeuta primeiro-ministro que "independência política" significa isto: o pessoal do Banco Central Europeu não pode, nem quer, receber instruções dos governos dos países. Um especialista da matéria podia ser convidado por um órgão da comunicação social para convencer os incréus (e avivar a memória, ou iluminar o obscuro conhecimento, do primeiro-ministro): já foram tantos os episódios em que o Banco Central Europeu bateu o pé ao poder político, recusando fazer aquilo que era insinuado nas pressões exercidas por gente que governava os países da União Europeia.


Depois deste esclarecimento, manteria o apedeuta primeiro-ministro a bombástica e mentirosa frase? Claro, estamos em vésperas de eleições. Vale tudo, por definição. Até mentiras, sobretudo aquelas mentiras que chegam de mansinho e ecoam inverdades que a maioria da audiência é incapaz de detectar. São as mentiras que passam por verdades, as muito convenientes mentiras, as mentiras que favorecem a imagem de quem assim mente. Quem as toma por verdades termina por aplaudir o mentiroso. Logro atrás de logro – com a inestimável ajuda da desastrada oposição "à direita" – assim se faz o caminho que me vai levar a suportar o apedeuta por mais quatro anos.


E, francamente, não sei o que me há-de deixar mais inquieto: se diagnosticar aquela frase como sintoma de ignorância, ou como exalação de uma, mais uma, mentira despudorada. Cá para mim, é as duas coisas ao mesmo tempo.


25.12.08

Feios, porcos e maus


(Um conto de natal alternativo – ou um conto alternativo de natal)


Organizavam-se em bando, sempre clandestinos. Vinham do nada, anónimos no meio da massa anónima que festejava o natal. Odiavam o natal. Eram brigadas de um terrorismo singular, um terrorismo insolitamente sem violência. Pelo menos, sem a violência física do terrorismo habitual. Faziam-se notar por outra violência, uma violência que atacava a sensibilidade das pessoas. Por roubarem o natal às pessoas.


Preparavam com antecipação o boicote das festividades natalícias. Reuniam-se em segredo, tão bem resguardados que não havia polícias, sequer diligentes serviços secretos, que conseguissem desarticular os preparativos para a adulteração do natal. Eram gente comum. Gente respeitável, alguns até bem colocados na estratificação social. E embora se dessem a conhecer pelo provocante nome "feios, porcos e maus", quase nenhum reproduzia o estereótipo. Só eram feios, porcos e maus porque roubavam o natal às pessoas que o continuavam a sagrar de forma tão intensa. Nada os movia contra quem se deixava enfeitiçar pelo natal; apenas não gostavam do natal. Era contra o natal, o natal como instituição enraizada, que se agitavam. Usavam a mesma retórica belicista da imbecilidade da guerra feita pelos supostos detentores do monopólio da violência legalizada (os Estados): os decepcionados pelo furto do natal eram as suas vítimas colaterais. A esses, sobrava a alternativa de serem, também, feios, porcos e maus.


A cada ano que passava, as brigadas captavam mais simpatizantes. Quando chegavam às catacumbas onde se reuniam, traziam motivações muito diferentes. Uns, apenas cansados da rotina do natal. Outros, empenhados na militância de ideologias que se não revêem no consumismo natalício. Outros ainda, de surpresa, vindos de quadrantes católicos mais radicais, decepcionados pela adulteração do natal: a quadra perdera os pontos de ancoragem com a significação religiosa. E ainda havia alguns a quem a felicidade que irradiava das pessoas em quadra natalícia era um embuste de todo o tamanho – a causa suficiente para se insurgirem contra o natal como reacção à falácia. Também lá se encontravam líricos que condescendiam com o natal; só queriam mudar-lhe o calendário, por estarem cansados dos caídos de Dezembro serem reservados às rotineiras festividades.


Competia-lhes roubar o natal, em todas as suas formas e expressões. O desafio maior era roubar ao calendário o vigésimo quarto e o vigésimo quinto dias de Dezembro. Queriam impor o salto do vigésimo terceiro para o vigésimo sexto dia. Para não haver espaço no calendário para as celebrações da época. Sem os dias correspondentes, as pessoas sentir-se-iam órfãs de calendário, não teriam dias para encaixar o natal. Nos rotineiros hábitos que as moldam, deparavam com a desorientação do tempo saltitante. Quando dessem conta, acordavam no vigésimo sexto dia de Dezembro, já a destempo do natal.


O embargo do natal acontecia por outros meios. Pela calada da noite, alguns feios, porcos e maus furtavam as lojas que vendiam bacalhau. Sabiam que para uma multidão não há natal sem a verificação das tradições gastronómicas. Era outra maneira de semear a desorientação nas pessoas: como celebrar o natal à míngua de bacalhau? Outros elementos destruíam as iluminações de rua alusivas ao natal. De nada servia às autoridades patrulharem ruas e avenidas. Ensaiavam actos de diversão, para atrair as polícias a outros locais. Ficavam com terreno aberto para boicotarem o que quisessem. Havia os actos mais pequenos: todos os pais natal trepando pelas paredes das casas ou empoleirados nas varandas eram retirados. Impediam as encomendas de figos secos vindos da Turquia. As confeitarias já se recusavam a fabricar bolo-rei, pois sabiam que se o ousassem fazer não conseguiam vender sequer um bolo-rei. E até as televisões, constrangidas à mudança de hábitos: os "natais dos hospitais", enfim, banidos da antena, pois as brigadas tinham como sabotar a emissão.


Nem sequer as lágrimas das crianças – das crianças ainda com idade para se recordarem do que era o natal na tradição fabricada – comoviam os feios, porcos e maus. Talvez esta insensibilidade justificasse que fossem "maus" acima de tudo, e por arrastamento "feios" e "porcos". Não se demoviam nem com o ar contristado das crianças. Queriam que as crianças mais novas, aquelas que começavam a crescer sem saber o que era o natal de antanho, não lacrimejassem na ausência do natal roubado.


24.12.08

Pai natal cleptomaníaco


(Mensagem natalícia às criancinhas, do desmancha-prazeres natalício)


Petizes: já repararam na mania que muita gente consagrou recentemente? A mania de colocar nas varandas e nas janelas bonecos fazendo as vezes de um anafado pai natal, como se estivesse a trepar às varandas das casas. Podíamos falar da opção estética, não fosse dar-se o caso de estar convencionado que a cada um cabe a sua estética, matéria volátil que convém não discutir – proclamam os ideólogos do pensamento acertado. Ou não: podemo-nos aventurar contra a maré dominante e interrogar o mau gosto de enfeitar as varandas com o grotesco boneco, retratando o imaginário que vos encanta – e ilude – petizes, por esta altura.


Eu não sei se a tenra idade é a caução para o engodo a que vos remetem na época natalícia. É outra convenção – e as convenções, vão-se habituando, não se questionam para não ser perturbada a ordem estabelecida. Do imaginário em que vocês navegam faz parte a ideia de que o pai natal desce a chaminé pela calada da noite e, quando acordam pela manhã, lá estão amontoados os presentes que são a sagração do, por muitos contestado, execrável consumismo.


Vejam o rol de equívocos que fazem desfilar pelas vossas cabeças ainda em formação. Primeiro, a maioria das criancinhas vive nas grandes cidades, acantonada em condomínios que partilham a mesma chaminé. Como pode o pai natal descer pela chaminé e depositar as prendas que vocês ansiosamente esperam, se a chaminé é uma parte comum do prédio onde moram? Segundo equívoco: uma incongruência que vocês deviam denunciar aos progenitores e professores que na escola contribuem para o consagrado imaginário natalício. Afinal, o pai natal desce pela chaminé ou penetra nas vossas casas pela varanda, como é revelado pelos caricatos bonecos que enfeitam muitas varandas e janelas? Terceiro equívoco: as histórias de natal contribuem para a fantasia da época – e, vão-se habituando, as fantasias são isso mesmo, ilusões que se esboroam na azeda decepção assim que cai a cortina que as encobria. Ao contrário dessas histórias, vocês não precisam de esperar pelo amanhecer para descobrirem as prendas que calharam em sorte. É logo pela noite, depois de a família fazer o contrário dos conselhos dos nutricionistas ao cabo de uma maratona gastronómica.


Retomo a anti-estética dos bonecos em forma de pai natal a trepar às varandas. Sinal dos tempos, porventura: não tendo cabimento enfiar a figura nas chaminés que pertencem à pluralidade que habita o condomínio, mudam-se os hábitos. O pai natal agora entra nas casas pela janela que está mais à mão. Continuo sem perceber a adulteração fermentada pelo imaginário natalício. Já dantes não percebia por que motivo o pai natal se escondia de todos e descia pela fuligem das chaminés. Mais perplexo ficava ao saber que o pai natal terminava a labuta com a farda impecável, sem o menor sinal da fuligem acumulada nas entranhas das chaminés. A reescrita da fábula do natal não desfaz os equívocos: desde a tenra idade aprendem que as visitas entram nas vossas casas pela porta, depois de se fazerem anunciar soando a campainha da entrada. Já alguma vez uma visita entrou à socapa pela janela?


O que me traz à desilusão que vos anuncio: o pai natal devia ser como as pessoas normais e teria que se anunciar batendo à porta de cada residência. Como alterou os hábitos e agora entra às escondidas estroncando uma janela, o pai natal é um meliante como outro qualquer que entre na residência alheia para furtar objectos. Para atenuar o vosso choque pela revelação, concedo na diferença: o pai natal deixa prendas, o ladrão comum sai das casas roubadas com um pecúlio que empobrece as vítimas do crime.


Se vocês tivessem direito a sindicato, propunha que reivindicassem uma alteração do imaginário do natal. Deviam exigir ao pai natal que não trepasse às varandas, pois os meliantes comuns podem usar o precedente para escapar à prisão. E exigir que o pai natal deixasse as prendas na vossa presença. Mais: ele só devia abandonar o lar visitado depois de vocês desembrulharem todos os presentes. Dessa forma, podiam confrontar o pai natal com os agradecimentos e os protestos, consoante o agrado ou a decepção pela generosidade do balofo barbudo.


Quando forem crescidos, vão ser educados para a defesa dos direitos dos consumidores. Ora, o natal é uma indústria como outra qualquer. Se os serviços prestados pelo pai natal deixam um travo amargo, a DECO devia estar à mão de semear para acolher os vossos protestos. Para, no ano seguinte, a visita do pai natal ser mais do agrado dos petizes, os grandes consumidores do natal.


23.12.08

Tempo de antena


As adoráveis idiossincrasias. De todos os povos. O lusitano povo tem, entre muitas, o hábito de reservar as tarefas até ao último momento. As coisas vão sendo adiadas, pois ainda há tempo de sobra até chegar o prazo agendado para as cumprir. Para que havemos de desembaraçar as tarefas no tempo extemporâneo? Quando o tempo passa e a tarefa sobra para a última hora, sobeja uma azáfama que traz consigo a incrível pressão. Há quem diga que só assim consegue viver, sob os holofotes da pressão – como se fosse imperativo ter um revólver apontado à cabeça para fruir a exigível produtividade.


É assim com os tempos de antena. O que caracteriza o Dezembro? Para além do que está convencionado (festividades natalícias, um ano velho dobrado pelo novo ano), uma revoada de tempos de antena de mil e uma associações e sindicatos e sabe-se-lá-mais-o-quê com direito aos minutos que a lei aclama como direito de expressão através do "serviço público" de televisão. Têm o ano todo para colocar o tempo de antena. Passam os meses uns atrás dos outros e nunca é oportuno mostrar a mensagem que identifica a associação ou a reivindicação que é timbre do sindicato. Só em Dezembro, o último mês do ano, para aproveitar a prerrogativa gerada pela generosidade da anacrónica lei. Quando o ano já não tem mais meses para oferecer e antes que a dobra do calendário extinga o direito a aparecer na televisão naqueles escassos minutos.


Por esses tempos de antena passam exemplares fantásticos do imaginário indígena. Personagens catitas, personagens dantescos, gente com péssima dicção, figuras supostamente bom postas, a fatiota que usam nos casamentos tirada do armário para a televisiva aparição, tão bem apessoados. Tempos de antena fabricados como se ainda estivéssemos nos anos setenta – e não me refiro a sindicatos que exalam a iconografia soviética, num saudosismo que não conseguem reprimir –, tal o amadorismo cénico. De permeio com tempos de antena que se socorrem das maravilhas da tecnologia, que vivemos numa era de democratização também da tecnologia.


Há nestes tempos de antena muitos casos de "cinco minutos de fama". Para muitos dos anónimos dirigentes de uma desconhecida associação que representa os interesses mais inauditos, este é o zénite de uma vida (descontando o instante em que foram entronizados, ou se fizeram entronizar, no comando da associação). Subiram a pulso na escada da vida. O degrau mais alto, a aparição na pública televisão no espaço dedicado ao tempo de antena. São sempre os últimos a dar conta da pose ridícula, que esse é juízo a que só os outros, os telespectadores acidentais, conseguem ter acesso. O narcisismo trata do auto-diagnóstico: são eles que fazem a ovação mais audível e demorada ao pessoal desempenho à frente das câmaras da televisão que os deram a conhecer à audiência que supõem numerosa.


Os tempos de antena já foram satirizados por humoristas. Ser espectador de alguns tempos de antena é um exercício de surrealismo. Não é de estranhar que os tempos de antena em profusão pré-natalícia sejam matéria-prima abundante e gratuita para humoristas. Fonte para criação de personagens nas suas criações humorísticas. Há nestes tempos de antena um ingrediente terapêutico: são um programa de humor espontâneo.


É por isso que às vezes estaciono diante da televisão, no aperitivo para o cortejo das desgraças que desfilam no noticiário, embevecido com os tempos de antena das anónimas associações que se sucedem. Na maior parte dos casos, nem retenho o interesse sectorial nem a mensagem difundida. A atenção está presa nas personagens que se passeiam à frente da câmara, na peça de oratória grave – porque em todos os casos o mundo resume-se à pequenez dos interesses que aparecem ali representados pela anónima associação a quem coube em sorte o dia da visitação ao tempo de antena. Ou é coincidência, ou de cada vez que me entrego aos tempos de antena deparo com aberrações que se julgam artistas da televisão, mestres de uma oratória ininteligível, uma dicção sofrível que não deixa entender metade do que dizem, senhoras com penteados que são pesadelos com o peso dos quilos de laca que são a armadura dos penteados, senhores, uns mais velhos outros mais novos a querem imitar os primeiros, passeando gravatas com cores berrantes.


Há quem sugira a liquidação dos tempos de antena que a generosa lei garante a toda e qualquer associação e sindicato e sabe-se-lá-mais-o-quê. Discordo. Nestes tempos de antena encerra-se um precioso laboratório das idiossincrasias nativas. Manda a antropologia que não se desperdice a preciosidade. E quem pode recusar um programa de humor espontâneo?


22.12.08

Igreja desempoeirada?


A ortodoxia não é um exclusivo dos comunistas lusitanos. É visita assídua da igreja católica, presa às amarras de um conservadorismo que mostra como a igreja é um anacronismo destes dias. Só que às vezes o vento muda de quadrante e sopra com sabor a surpresa. Um vento que irrompe contra a monotonia instalada, uma lacuna na ortodoxia dominante. Um laivo de heterodoxia, portanto.


O bispo do Porto decidiu inovar e meteu no You Tube a tradicional alocução natalícia. Eis a igreja, vinda das catacumbas dos costumes, rendida às novas tecnologias. O bispo terá indagado os hábitos dos fiéis – e dos menos fiéis e de outros que andam tresmalhados deste rebanho – e percebeu que as redes sociais, a famosa Web 2.0, são um poderoso meio de difusão. Ora, como a igreja católica está em crise – e como poderia escapar ao manto da crise? – o estado de necessidade obriga a mudar de hábitos. Por uma vez, alguém da hierarquia eclesiástica parece entender para que lado roda o mundo, em vez de teimarem em fazer o mundo rodar para o lado que tanto gostariam. O bispo do Porto admite-o: o You Tube é "um instrumento da nova evangelização".


Este é um pequeno passo para a igreja sair das masmorras do tempo, libertando-se dos dogmas da inércia temporal. Tem muito terreno pela frente para a tarefa ser consumada – isto na suposição de que está nas intenções da igreja a reconciliação com os tempos que vivemos, o que não consigo afiançar ser sua genuína intenção. Já temos padres que parecem tudo menos padres, sem a sotaina escura e o cabeção que desde tempos imemoriais eram indumentária distintiva. Padres de calças de ganga, modernaços. Padres vivaços que se especializaram na fusão de dois catecismos aparentemente contraditórios – o de Cristo e o do Marx. Mas são padres irrelevantes na hierarquia. Não são eles que arquitectam a linha oficial da igreja. Na sua irrelevância, são dissidentes autorizados mas inexpressivos a esbarrar no dique que impede a actualização da igreja. Pois é disso que se trata: colocar a igreja a par com o relógio que marca o compasso do tempo.


Passei a vista pela mensagem do senhor bispo (na notícia; não a fui ver ao You Tube). Há um excerto que gostei: "quero deixar a todos uma palavra de encorajamento, porque é destas coisas que parecem pequenas, mas onde nós investimos toda a boa vontade, que nascem a prazo, e às vezes nem sequem a muito longo prazo, as melhores soluções, as mais humanas e também as mais divinas". Passo por cima da referência divina, que o ateísmo a isso obriga. O que me interessa? Que as soluções nascem a prazo, estas pequenas medidas – tudo no contexto da crise profunda que se anuncia nos seus efeitos devastadores para o futuro que está para chegar. Até aqui, um sinal da heterodoxia. Pois a igreja anda enamorada pelas teses que desfilam a certeza fora do tempo de esquerdismos vários e analistas contra a corrente, em uníssono sugerindo o regresso a Keynes como parte do pacote das "novas medidas" para encerrar a crise no seu túmulo. O bispo do Porto deixa, nas entrelinhas da sua alocução, sinais de que Keynes não é "nova medida" nem a panaceia que alguns, com crendice misturada com esotérica presciência, julgam ser a única solução.


Não chegam estas pequenas ilhas que iludem o anacronismo que corrói a igreja católica. Quem traça a doutrina da igreja tem que perceber os sinais do mundo. A começar, o respeito pelo livre arbítrio das pessoas, em particular dos crentes que são a prioridade da igreja. A não intromissão na consciência das pessoas, para diluir o feudalismo intelectual na relação entre a igreja e os crentes, tamanha a dependência a que os crentes são conduzidos. E, porque não, aceitar a natureza humana, já que por muito que se pregue a abstracção da fé ela não pode nada contra o rigor da biologia: por muito que custe aos castos sacerdotes condenados à abstinência de sexo, os prazeres carnais pertencem à natureza humana. Deve a igreja aceitar, ao menos, a não intromissão na intimidade de cada pessoa, deixando-as entregues ao livre arbítrio e os devaneios carnais de variada espécie. Como deve aceitar que a sexualidade não rima com procriação, o que seria suficiente para renegar a patética doutrina que repudia os métodos contraceptivos. Já agora, como sinal de que está acordada para o tempo que passa diante dos seus olhos, mudar de posição quanto aos preservativos já não como método contraceptivo mas como meio de prevenção contra a epidemia da SIDA.


Mas: o que interessa ao ateu os caminhos por onde anda a igreja católica?


19.12.08

Solenidade institucional, que coisa bela


Há quem tenha um enorme apego pelas instituições. Considera-as o cimento da vida em comunidade. Sem elas seríamos um somatório de vontades individuais, de desordenadas e caóticas vontades individuais. Das instituições, a mão mágica que transforma as vontades individuais com uma certa apetência para o egoísmo – acreditam os cultores da bondade das instituições. São elas que temperam os egoísmos, dir-se-ia, convencem os indivíduos a declinarem o egoísmo ante as virtudes de viver em comunidade.


Há uma rima necessária: instituições com solenidade. Quando as instituições são esteios da oficialização da autoridade que se sobrepõe aos cidadãos, a solenidade de certos momentos é irrecusável. Convencionou-se que esses solenes momentos são, eles mesmos, cimento da lealdade dos cidadãos à comunidade a que pertencem. Ontem foi um desses dias, com a habitual visita de cortesia de uma comitiva do parlamento ao palácio onde reside o presidente da república. Os solenes momentos exigem pose grave e palavras de circunstância – ainda que sejam palavras embebidas na vacuidade do seu significado, mas a pose grave e de Estado trata de lhes dar um sentido, por figurado que seja.


A comitiva da assembleia da república foi a Belém desejar feliz ano novo ao presidente da dita (república). Este retribuiu os votos, estendendo-os aos representados no parlamento – o povo em geral. Por uma vez, algum laicismo vingou entre a penumbra do catolicismo omnipresente. Pois o presidente da república discorreu oratória que apenas contemplou votos para o ano novo, esquecendo-se de reservar um par de palavras para a quadra natalícia que ainda está mais próxima. Foi avisando que 2009 será um ano preenchido por dificuldades. Desejou "boa saúde e (…) um ano tão próspero quanto possível", pois "tudo é relativo nos tempos que correm".


Algum dia teria de concordar com o discurso – enfadonho, cada vez mais enfadonho – de sua excelência. Não sei se foi esquecimento, mas a ausência de votos de bom natal motivou pessoal simpatia com o presidente da república. Se há coisa que nunca entendi foi políticos a desejarem feliz natal aos súbditos. Qual é, pela boca dos políticos com responsabilidade, o significado daquela expressão? Muitas prendas no sapatinho, eles também empenhados na lógica do consumismo? Ou apenas aquilo que todos desejamos uns aos outros, por convenção "social", sem se saber ao certo o que contêm os votos que formulamos?


Aquele beija-mão institucional, zelosamente trazido pelas televisões para comprazimento do rebanho ordeiro, foi o retrato do cinzentismo militante em que esta terra está mergulhada. Os manuais do protocolo de Estado ensinam que o número um é o presidente da república e o número dois é o presidente da assembleia da república. Aqui, um parêntesis se impõe: isto da hierarquia do Estado é uma lengalenga sem sentido, uma bazófia para inglês ver. Pois se quem manda é o chefe de governo, por que se há-de insistir que o número um e o número dois são aquelas figuras? São as deficiências do sistema político no seu esplendor.


Cinzentismo: Cavaco e Gama em parelha. A ver quem triunfa no campeonato do tédio. Que não haja dúvidas: Jaime Gama é imbatível. Dizer que é dono de voz monocórdica peca por defeito. É voz xanax. Acredito que mesmo os que lutam com insónias terríveis não conseguem resistir à voz xanax do presidente da assembleia da república, logo de seguida caindo nos braços de Morfeu. Cavaco anda lá perto. Aposto que anda a ter lições com Gama. Com a idade, e a pose grave desde que entrou para o panteão dos presidentes da república, tem destilado uma oratória possuída por uma entoação que está cada vez mais parecida com a de Gama.


O que dizem no beija-mão que enaltece as instituições junto dos súbditos? Banalidades. O número um diz mata: "que 2009 seja um ano de tranquilidade institucional, que será positivo para enfrentar as dificuldades que temos pela frente". Ao que o número dois diz esfola: "é nos períodos difíceis que deve ser redobrado o sentido de solidariedade". Por isso é que um dia depois do beija-mão institucional o parlamento, o mesmo parlamento que prometeu juras de fidelidade ao inquilino de Belém, vai aprovar, sem mexer num vírgula, o Estatuto dos Açores que tinha sido reprovado pelo presidente da república.


É assim que gosto das coisas, embrulhadas na sua elevada hipocrisia. O beija-mão institucional, só para que o povaréu fique embevecido com o lugar sacrossanto das instituições. A solenidade das instituições é o tal cimento que semeia, entre o povaréu, o convencimento que tudo funciona como dever ser. Um cimento mal amanhado, contudo, que se esboroa logo no dia seguinte.


18.12.08

Desperdícios preciosos


Um velho a vasculhar no lixo. Remexe, indiferente a quem passa. As pessoas da afluência – ou, sabe-se lá, nem tanto – descem a rua, passam pelo amontoado de lixo e, elas também, indiferentes ao velho andrajoso em demanda pelas profundezas dos detritos. Diria, o velho como se estivesse sozinho no mundo, metendo os braços no meio do lixo, revolvendo os desperdícios da classe média por saber que da actividade há-de levar sortida vantagem.


Tirava cartões, sem receio de meter as mãos na imundície que fermenta um depósito de bactérias onde nidificam as doenças dos desvalidos. Adivinhei o velho na sua deambulação rotineira pelo lixo espalhado pela cidade. O que já não tinha serventia para a classe média, o que simbolizava a sua servidão, era para aquele velho esbanjamento agradecido. Agasalhos e calçado já sem aproveitamento para a gente empenhada na sociedade da afluência, ou apenas objectos decorativos que alegravam o sítio onde o velho morava. Vasculhava, um após outro, os verdes receptáculos do lixo urbano. Metodicamente. Anestesiado diante do odor fétido do amontoado de desperdícios.


No aluvião de plásticos, papeis, cartões, papel de embrulho, restos das refeições das famílias, haveria sempre uma preciosidade para o velho. Retirou um rádio, velho como ele, das profundezas do lixo. Esfregou a sujidade com uma manga. Olhou o aparelho, primeiro com desconfiança. Como se não entendesse como pode um aparelho daqueles encontrar o seu túmulo no lixo. Quase de certeza não estaria a funcionar, suspeitei pela pose desconfiada do velho. Arriscou uma tentativa. Ecoou um ruído surdo, mas audível, o ruído que os rádios fazem quando não estão sintonizados. O aparelho sobrevivera à humidade e à humilhação de ter convivido não se sabe quanto tempo com o resto dos desperdícios. Quando não era desperdício.


Nem assim retirou o ar carregado, o rosto fechado dentro das rugas acentuadas. Nem sequer quando, noutro sítio onde o lixo se armazenava, caótico como lixo, encontrou um par de sapatos. Uns sapatos que experimentou. Um par de sapatos talvez um número acima do tamanho dos seus pés. Mas os sapatos pareciam estar quase novos. Dois pares de peúgas, agora que o inverno se acerca e os pés agradecem agasalho para derrotar o frio e a humidade, dois pares de peúgas a solução para dar serventia aos sapatos. Não se desfez das rotas e encardidas sapatilhas que calçava. Acomodou os sapatos num saco de serapilheira, como se fosse o pai natal de si próprio. E nem então esboçou um sorriso, o mesmo rosto carrancudo, o mesmo rosto inexpressivo.


Acenou com a cabeça em tom reprovador. Sinalizando a incompreensão pelo fausto, a seu ver uma incompreensível exibição de fausto. Um rádio operacional. Um par de sapatos de homem, diria, de executivo. Pouco mais do que estreados. Não sei se o homem estava informado do andamento do mundo. Não sei se alguma vez a palavra "crise" tinha emprenhado os seus ouvidos, como emprenha aos que julgamos maior discernimento com a cautela da embriaguez de informação. Provavelmente o acenar de cabeça viesse substituído por uma expressão de perplexidade, tivesse o velho travado conhecimento com os infortúnios do mundo.


Que importam as crises, quando a abundância é apenas suturada ao pé da errância do velho homem entre os restos da nossa afluência? Naquela altura, não consegui sentir comiseração pelo velho mendigo do lixo alheio. Naquela altura, senti as lágrimas interiores vertidas pela obscena, afluente sociedade quando se convenciona que a crise tomou conta do horizonte. Essa sim, é uma dor obscena.


Uma súbita lucidez apoderou-se através da tela oferecida aos meus olhos: o homem tisnado pela velhice a lutar contra a imundície do restolho burguês, sabedor que de tanto porfiar dali haveria de retirar proveito. Só lhe escapava isto: por que insondáveis mistérios uma alma se desprendera de um rádio ainda em funcionamento, porque insondáveis mistérios outra alma não quisera usar um par de sapatos quase novo? Haveria razões. Do grotesco desperdício às mais íntimas razões, com o selo emocional, que levam as pessoas a enviar para o lixo o que outros, sem serem homens errantes remexendo desperdícios, achariam serventia.


Curvado no seu mundo-arquipélago, ao velho não interessavam especulações. Só um agradecimento, um anónimo agradecimento aos autores de preciosos desperdícios. Eram a sua fábrica de reservada felicidade.


17.12.08

O anarquista perante os tumultos anarquistas de Atenas


Hoje expressa-se a costela anarquista. Diante dos protestos, e depois dos distúrbios e do caos semeado pelos jovens anarquistas em Atenas (e menos jovens, resgatados à modorra da meia-idade, em mergulho nas profundezas da juventude anárquica). Poderia o anarquista exultar com o desafio à autoridade. Ver gente a enfrentar a polícia é sinal da autoridade do Estado questionada. O anarquista poderia mostrar simpatia pelas manifestações de Atenas.


Mas há anarquismos e anarquismos. Há anarquia que rima como puro caos, amantes os seus cultores da desordem que seria penhora da desagregação do Estado. Porventura para, do caos, os seus fautores se erguerem como novos senhores de uma ordem que nunca teria esse nome. Como há um anarquismo que não se revê na autoridade do Estado e respeita os direitos de propriedade, quase sagrados esses direitos, por respeito ao esforço individual que caucionou a aquisição dessa propriedade.


O anarquista que se encontra do outro lado da barricada ideológica (por contraponto aos jovens anarquistas de Atenas) logo asfixia os sedimentos de simpatia com os revoltosos atenienses quando repara que o caos ataca tudo o que apareça pela frente, indiscriminadamente. Na seiva onde fervilha a raiva incontida dos jovens tumultuosos, espalha-se um rasto de destruição. Automóveis incendiados, lojas vandalizadas, e o alvo privilegiado: bancos e multinacionais que são o mostruário do sistema capitalista odiado pelos jovens anarquistas de Atenas. Esses bancos e multinacionais não escapam à fúria avassaladora dos revoltosos, atacados sem dó, como se nesses ataques houvesse um laivo de justiça divina (se os jovens anarquistas acreditassem em qualquer entidade divina).


É aqui que se separam os caminhos destes anarquistas e do anarquista que escreve. Para começar, eles odeiam o sistema capitalista. Eu acho-o a maior invenção do ser humano. Eles atropelam a propriedade privada, destruindo automóveis de gente inocente. A menos que a simples posse de um automóvel sinalize a cumplicidade dos proprietários com o nefando capitalismo que eles gostavam de derrubar. Atacam as empresas que são o expoente da globalização gananciosa, elegendo os bancos como alvo preferencial por causa da tempestade que atravessamos, a tempestade crismada "crise financeira". Para os revoltosos, estas empresas cuidam do lucro e desvalorizam as pessoas. Tudo isto está na origem da opressão dos trabalhadores, que perdem direitos com a passagem do tempo; no exército de desempregados, que cresce de maneira aviltante; no futuro sombrio que se oferece aos jovens que passam anos a estudar sem saberem o que fazer quando terminarem os estudos.


Ainda que coincidisse no diagnóstico, logo divergia nos meios escolhidos para convocar a atenção do mundo inteiro – pois é o mundo inteiro que está de olhos em Atenas, e parte desse mundo, arauto da desgraça, pressagia que os tumultos atenienses acabarão por ter réplica noutros locais. Por mais que os acontecimentos sejam convenientes à habitual facção enamorada por lirismos espúrios (os eternos saudosistas de um Maio de 68 a repetir-se ao longo do tempo), esta gente ainda não entendeu como os protestos de Atenas foram capturados por movimentos anárquicos sedentos de semear o caos. É enternecedor ler o "aviso" presciente do "patriarca da democracia" lusitana, Mário Soares: ele não ficava surpreendido se por cá eclodisse um movimento semelhante. Apetece perguntar: não ficava surpreendido, ou até gostava que isso acontecesse?


O episódio tem um travo amargo para o anarquista situado no outro lado. O anarquista repudia o exercício da força que repousa no manto da autoridade, aquilo que politólogos e sociólogos consagraram como o "monopólio da violência", sinal necessário da existência do Estado. Todavia, como posso recusar a confissão que me dá prazer assistir às cargas policiais sobre os anarquistas de Atenas? Quando dou comigo a sentir esse prazer, é uma numa tremenda contradição interior que me sinto agrilhoado. Até porque a violência policial não se exerce para defender a propriedade privada esbulhada pela violência gratuita dos anarquistas tumultuosos, mas para defender a ordem estabelecida e a autoridade do Estado.


É por isso que me motiva uma dupla oposição aos jovens anarquistas de Atenas: por estar nos antípodas da sua agenda ideológica; e por os seus actos me levarem à heresia anarquista de condescender com a violência policial.


16.12.08

E arremessaram um par de sapatos a Bush


Está quase a sair de cena o por muitos proclamado pior presidente de sempre da história dos Estados Unidos. Agora que está nos actos finais é ainda mais vituperado, o coitado. Que fique registado: não vou cavalgar na onda bem pensante e assinar por baixo a sentença de que Bush foi o pior presidente da história dos Estados Unidos. Não conheço o suficiente da história daquele país para chegar a tal conclusão. Descontando isso, concordo que Bush foi o pior presidente dos Estados Unidos desde que me conheço a acompanhar – e de longe – a política daquele país.


Daí a enxovalhar a personagem, acho excessivo. O exercício a que se prestam os do costume tem um efeito contraproducente: de tanto se bater no desgraçado, de tanto o humilhar, a certa altura começa a irromper um sentimento de comiseração. Não que a comiseração seja apanágio recomendável para quem ela se destina. Mas há nesta piedade sobre o constantemente aviltado um paradoxal efeito. Por um lado, a compaixão tem, por uma vez, cores viçosas que parecem reabilitar, um pouco que seja, a personagem. Por outro lado, noto o pessoal incómodo em manifestar este sentimento por quem o não merece. É o desconforto provocado pela metódica perseguição dos anti-americanos primários, dos que arrumam à direita, com sobranceria, a patética maneira de fazer política.


O mais recente acto do vilipêndio de Bush: numa visita ao Iraque, estava Bush a preparar-se para falar numa conferência de imprensa e um jornalista iraquiano atirou-lhe com os dois sapatos, dirigindo-lhe um par de impropérios em árabe. Bush teve reflexos para se desviar dos sapatos, diminuindo os danos – pois decerto o enxovalho seria maior, e o prazer de um numeroso exército de detractores atingiria níveis orgásticos, se um dos sapatos só parasse no rosto do ainda por dias presidente dos Estados Unidos. O episódio está a fazer furor, como seria de esperar. Motivou o aplauso de muitos, o jornalista iraquiano já entronizado o herói do momento.


Até sou capaz de concordar que o ar patético de Bush e a sequência interminável de erros dos neoconservadores põem o ainda presidente dos Estados Unidos a jeito deste e de muitos outros actos de humilhação que se possam imaginar. Das duas, uma: ou a costela anárquica vem ao de cima e qualquer acto de desonra a qualquer líder de qualquer país merece aplauso, sem distinção de merecimento ou não; ou se toma a pose séria, a pose de Estado, e se reprovam todos os actos que insultam os líderes, ainda que no nosso íntimo haja o desejo inconfessável de atirar com sapatos, ovos podres, um nojento escarro sobre o político que coincide com o pessoal ódio de estimação.


Ora, o que me traz perplexo não é Bush ter quase sido atingido pelo par de sapatos do exaltado jornalista. É ver o entusiasmo dos metódicos desalinhados do bushismo e saber que se o boneco quase a ser atingido fosse um dos seus estariam, nesta altura, a escorrer excitados textos de reprovação do insulto. Ao que interessa: o comprazimento de ver Bush desviar-se dos sapatos para não ficar com um olho à Belenenses deve ser o mesmo se, por exemplo, naquele lugar e naquele momento fosse Chavéz, Zapatero, Brown, Lula da Silva ou, por que não dizê-lo, Obama, a baixar o corpo para escapar dos sapatos agressores.


Se pudesse chegar aos destinatários, endereçava o seguinte pedido aos militantes adversários de Bush, dos neoconservadores, dos Estados Unidos em geral: moderem-se, por favor. De tanto frenesim, de tanta perseguição, de tanto fazerem disso modo de vida – como se pouco mais houvesse de interessante neste mundo – quase têm o condão de me fazerem um adorador do país (o que está longe de acontecer), um admirador dos neoconservadores (uma heresia para o liberal clássico) e manifestar misericórdia em relação a Bush (o que me aborrece).


Gostava de saber se aqueles sapatos exalavam o odor fétido de uns pés arredios da higiene. Seria simbólico. Tanto da desastrada passagem de Bush pela Casa Branca, como dos exagerados que não poupam nas críticas, na ironia, na ofensa até e que, por o fazerem sem descanso, quase trazem Bush para o lugar da comiseração.


15.12.08

Seremos mesmo “todos” de esquerda?


Sondagens caseiras anunciam a catástrofe (os socialistas a roçarem a maioria absoluta) e a extrema-esquerda junta abrigando 20% das intenções de voto. É a crise imparável, que teve o condão de destruir crenças de afamados economistas que agora pressagiam o regresso a Keynes, batendo no peito em jeito de "mea culpa". Há dias, no Diário de Notícias, Pedro Lomba sugeria que "somos" de esquerda porque temos salários reduzidos e trabalhamos para quem ostenta tanta abastança.


As esquerdas rejubilam. Andam de peito inchado, envaidecidas, no convencimento de que a crise trouxe o colapso do diabolizado "neoliberalismo". Entre a pose "afinal tínhamos razão" da extrema-esquerda e a conversão oportunista de socialistas a um Keynes de novo milagreiro, há muita gente a embarcar na maré. É em momentos de aperto que as emoções se sobrepõem à racionalidade. Muita gente só se lembra do seu deus quando vive uma aflição. Há muitos enamorados de uma esquerda qualquer por lhes ocorrer, vagamente, que só as esquerdas possuem sensibilidade social, só as esquerdas conseguem praticar a justiça social, tirando aos nefandos ricos para redistribuir por um numeroso exército de necessitados. Não é novo: na construção de ideias e imagens, as esquerdas gostam de visões absolutas e de chamar a si o monopólio de certos paradigmas.


A fé pessoal é incontestável. Pertence ao domínio da intimidade de cada um, logo intangível. Posso, quando muito, dirigir uma interrogação para dentro de mim: "por que não és capaz de embarcar na caudalosa maré das esquerdas triunfantes?" Em parte, por mau feitio, um veemente espírito de contradição. Quando vejo consensos irrecusáveis, as correntes copiosas que reclamam a participação de todos os que sejam sensatos, é quando mais me apetece ser dissidente do coro esmagador. Trata-se de um imperativo de higiene mental.


Por outro lado, tento convocar o discernimento – o meu discernimento, que até pode ser um tremendo erro na maneira de ver dos outros, o que pouco me atormenta. Sou observador do modismo e tento perceber se encaixa nas ideias que são meu lastro – ou se o modismo, de tão triunfante, convoca um abalo nos alicerces das pessoais ideias. Se a correspondência não existe, sobra-me o "desconsolo" de figurar entre a escassa minoria que se recusou alistar no consenso do momento. Este engrandecimento das esquerdas não me comove. E menos me convencem as receitas que elas preconizam para ultrapassar a crise. Aliás, a surpresa é a convergência de medidas defendidas pelas várias esquerdas, numa espécie de frentismo inusual se se atender à história política da democracia em que vivemos.


Primeira dissonância com o modismo: não consigo digerir o regresso a receitas do passado como solução milagrosa para extinguir o incêndio da crise. Foram resgatar Keynes ao túmulo. Esquecem-se, os promotores da ressuscitação de Keynes, que ele tinha sido enterrado por as suas políticas terem levado à grande crise da década de setenta. E por as suas políticas terem sido incapazes de voltar a página da crise. Parece que não aprendemos com os erros de outrora. Que nos esquecemos da história – ou que é conveniente olvidar certas páginas enegrecidas que ficaram registadas lá atrás.


Segunda dissonância: depois da peregrinação interior para responder à pergunta "por que não és capaz de ser de esquerda", retomo a proposta de Pedro Lomba. Sendo um remediado trabalhador por conta de outrem, não tenho o prazer de figurar entre a privilegiada minoria dos "bem pagos". Nem assim consigo encontrar razões para o alistamento no imenso exército que, por convicção, oportunismo ou lirismo, pertence às esquerdas. Sei que está na moda fazer descer o chicote nos endinheirados e nos que, não sendo capitalistas, auferem salários das arábias. Invoca-se um dever de solidariedade para amortecer os males dos muitos desvalidos com os recursos tirados, por arte de impostos, aos abastados. Outros sobem ao púlpito do tribunal da moralidade – esse lugar tão perigoso – e sentenciam a falta de ética dos poucos que ganham demais. A todos falta saber se os salários das arábias têm merecimento ou não. Partem da suposição negativa. Os preconceitos, só a eles pertencem.


Lamento, mas não sou capaz. De entrar nos sumptuosos palácios onde habitam as esquerdas, esses lugares perfumados pela justiça social, os lugares ungidos pela igualdade. Onde não haveria ricos e os pobres deixá-lo-iam de ser. Um lugar onde irradiaria a centelha da solidariedade, convencidos os abastados a redistribuir pelos carenciados e pelos menos carenciados que não reprimem a pessoal ganância e se deixam cegar pelo néon dos cifrões. Pedro Lomba terá acertado ao lado: eu não estou entre os que ganham muito e isso não me faz cultor de uma esquerda qualquer. Sem ser de direita – pelo menos das direitas indígenas.


As coisas do mundo são complexas demais para se prestarem a leituras tão simplistas. O súbito enamoramento pelas esquerdas, que tinge as cores da moda, parece-me um refulgente simplismo.


12.12.08

Prisioneiro em si


Debatia-se. Lutava contra as suas teimosias internas. Na maior parte do tempo, descontente com o que dizia, o que fazia. Angustiado pelas masmorras internas que o aprisionavam a um eu que o desprazia. Fazia planos para matar o eu que sempre conhecera. Planos sempre adiados, esbarrando na permanente incapacidade para se libertar das pessoais masmorras que o amordaçavam.


Andava pelas ruas, cruzava-se com os imensos rostos anónimos, olhava para as árvores julgando nelas encontrar a inspiração ausente. Partilhava pensamentos com as águas revoltas do oceano. E nem a inspiração dos poetas, nem isso chegava para descobrir o segredo que demandava. Esbarrava sempre no mesmo rosto, nos mesmos trejeitos, nas palavras que se repetiam em fórmulas exaustivas. Entregava-se a uma rotina cansativa. Tudo isto reconhecia, como se fosse o diagnóstico de uma maleita que ao início se insinuara, quase imperceptível. A páginas tantas, uma doença irreparável, crónica, uma dor perene mas não insuportável. Era como se tivesse ido por um caminho de onde não havia regresso. No limiar do precipício, as opções só dolorosas.


O sobressalto constante ecoava da insatisfação interior. Alimentava um pessimismo indeclinável; tudo parecia sombrio, até as cores radiosas vinham embrulhadas numa tumultuosa neblina carregada de tons plúmbeos. Encerrado na prisão pessoal, era incapaz de distinguir as coisas belas em oferenda do mundo em redor. Todos os dias zangado com o mundo, porque acordava zangado consigo. Não culpava o exterior a si, todavia. Ao menos, o discernimento para julgar os males pessoais, na recusa em atribuir ao exterior a si a culpa pelas amarguras que o consumiam.


A prisão em que vivia encerrado era como um torniquete que cerceava o sangue. Impedindo-o de chegar aos pontos vitais que então seriam caução para visitar outros horizontes, horizontes agora proibidos, ou apenas desconhecidos pelo impedimento do cárcere onde se deitara. Uma insólita condenação que não partira de fora de si. A condenação era uma fustigação pessoal. Uma viuvez interior que o deixava em permanente acabrunhamento. Entregue a uma melancolia imensa. Refugiado num isolamento que julgava terapêutico, a fuga necessária dos males alheios que tanto o atormentavam. Em raros momentos de discernimento, a noção de que os males alheios eram uma plácida gota de água ao pé do pessoal oceano de contrariedades que no mareava.


Era uma estranha prisão, a que encontrara como refúgio. Uma paradoxal privação de liberdade. Voluntariamente dedicado a um retiro, como se houvesse um castigo providencial a cumprir. Uma prisão monástica onde tratava de adiar o rebentamento do espartilho que o remetia à pequenez admitida. Sentia uma tremenda impotência. A incapacidade para trepar as paredes do pessoal cárcere e irromper pelas janelas em demanda das cores esplendorosas que os solarengos dias tinham para oferecer.


Mergulhado no autismo que parecia ser refrescante, dividia-se em dois hemisférios. Ora refugiado na prisão interior que era necessário esconderijo dos outros, a expressão da timidez irremediável. Ora percebendo o cansaço do pessoal aprisionamento, implorando a implosão das masmorras que o acantonavam a um singelo pedaço de si. Já nem sabia o que eram os momentos de lucidez: se a singular e reconfortante placidez da prisão interior, se a tempestade cerebral que, a espaços, sussurrava a mudança de agulha, o esboroamento do cárcere a que se havia voluntariamente remetido. Nestes dias de ambição libertária, sentia a amargura do tempo desperdiçado, o tempo que se havia consumido na pessoal masmorra de si. Metodicamente, escondia-se da ambição libertária para não adensar a interior doença que o consumia.


Era uma força indómita, como se estivesse ali a manietá-lo. A doença maior, crónica, já nem seria admiti-lo; seria entregar-se ao emudecimento do eu cerceado pelas altas ameias do castelo onde se aprisionara. Já desencantado com tudo, a começar pela sua existência, nem se lembrava do lugar onde tinha guardado a chave que encerrava a porta do ergástulo de si.