4.12.08

O préstimo de uma boa polémica


A saudável mania de polemizar. A inquietação intelectual que desvenda o desassossego da monotonia, quando muitos concordam em pensar da mesma maneira. É nessa altura que irrompe um incontrolável desejo de divergir, o metódico impulso de quebrar o enfermo consenso que é um espartilho da inteligência. Perturbam-me as consensualidades necessárias. Mais ainda quando com elas romper significa carregar o opróbrio do acantonamento, o lugar onde tombam as trovoadas dos que pulsam o cansativo pensamento judicioso.


É indomável a vontade de ser o agente provocador. Detesto discussões terminadas. E detesto ainda mais quando, numa discussão, alguém fica com a impressão que a coroou empunhando a harpa triunfal, esmagando o adversário, humilhando-o sob o peso da derrota. É que a verdade não existe. Ou, se existe, é apenas uma verdade circunscrita às fronteiras do nosso ser. Dos contrafortes das verdades que esbarram uma na outra nasce a frutuosa discussão. Por vezes, a polémica intensa quando os argumentos são trocados à mesma velocidade com que se desembainham as pessoais tempestades intelectuais.


Quando entro numa polémica não o faço para comprazimento pessoal, na demanda de um triunfo sobre quem entra no pleito. Não é para dobrar a minha razão sobre a razão do outro, vergando-a ao nada. As discussões que me apetecem são com as pessoas que gravitam em órbitas diferentes. Tenho dois propósitos. Provocar quem partilha comigo a polémica, fazê-lo questionar os seus próprios alicerces. E permitir que a outra pessoa me confronte com as minhas fundações. Se não fosse um lugar-comum, chamava aqui à colação o princípio socrático: "só sei que nada sei". As discussões apetecíveis são aquelas que nos revolvem pelas entranhas através das interpelações que viram do avesso os pessoais pressupostos. O questionamento permanente.


Só que nem sempre as polémicas se saldam pelo efeito desejado. Raras vezes, para ser franco. Ou porque quem se situa do lado contrário da barricada distorce factos, servindo-se da retórica falaciosa, num contorcionismo que expõe a fragilidade de quem encaixa mal os alicerces mexidos. Tantos os que confundem a pureza da discussão, mesmo quando entra numa apaixonante polémica, com a fátua grandeza de arrematar o pleito com estrondosa vitória. Nessa altura, só conta encaminhar a discussão para o terreno conveniente onde tudo se facilita para aclamar o triunfo cheio de galhardia. Tácticas soturnas, manobras desleais, a irritação que sobe de intensidade, por vezes a razão que se molda à razão da força – e a polémica perde os seus rudimentos.


É quando a discussão parece entrar no fétido território da luta entre políticos, como se houvesse um combate de emproados galos que querem, a qualquer custo, fazer vingar a sua crista cheia de elegância intelectual. Nessas polémicas não me apanham. Que elas só têm soberba, os seus intérpretes enleados no lodaçal dos falsos argumentos, actores que se tornam mestres em truques dignos de um qualquer mangas-de-alpaca. Perece, então, a polémica. Arrefecida no gélido entusiasmo dos que se excitam com o doce trinar da vitória que já se perfila. Não é demissão diante da derrota que se anuncia. É virar as costas a um combate inútil. Nesta coreografia a descompasso, já só sobra um diálogo de surdos. Já só resta o enternecimento ao testemunhar o ar altivo de quem se julga entronizado na sua suprema razão, espezinhada a razão do outro, desfeita numa inócua concha sem conteúdo.


O chamamento das polémicas vem ao de cima quando sinto o frémito de indagar as minhas próprias certezas. Ou de interrogar alguém possuído por indesmentíveis imperativos categóricos. Diante destes, o truque de aparecer como um ingénuo predisposto à catequização. Fazer o ar inocente dos imberbes, dos que julgam saber apenas que nada sabem. Aqueles que, aos olhos dos disseminadores de verdades incontestáveis, são o terreno apetecível para mais doutrinação, para outra rés que deixa de andar tresmalhada. Desses sacerdotes que proclamam imperativos categóricos gosto de ser vítima. É quando frutificam as polémicas mais promissoras. Que, todavia, em breve se desfazem em nada. Os imperativos categóricos aspergidos pelos doutrinadores de verdades várias não aceitam refutação. São alérgicos à enxurrada de interrogações, incapazes para domar o questionamento dos pessoais, ideológicos pressupostos. Detestam ser importunados por agentes provocadores.


As polémicas são um néctar precioso. Uma filigrana que se despedaça ao menor abalo das convicções.


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