24.12.08

Pai natal cleptomaníaco


(Mensagem natalícia às criancinhas, do desmancha-prazeres natalício)


Petizes: já repararam na mania que muita gente consagrou recentemente? A mania de colocar nas varandas e nas janelas bonecos fazendo as vezes de um anafado pai natal, como se estivesse a trepar às varandas das casas. Podíamos falar da opção estética, não fosse dar-se o caso de estar convencionado que a cada um cabe a sua estética, matéria volátil que convém não discutir – proclamam os ideólogos do pensamento acertado. Ou não: podemo-nos aventurar contra a maré dominante e interrogar o mau gosto de enfeitar as varandas com o grotesco boneco, retratando o imaginário que vos encanta – e ilude – petizes, por esta altura.


Eu não sei se a tenra idade é a caução para o engodo a que vos remetem na época natalícia. É outra convenção – e as convenções, vão-se habituando, não se questionam para não ser perturbada a ordem estabelecida. Do imaginário em que vocês navegam faz parte a ideia de que o pai natal desce a chaminé pela calada da noite e, quando acordam pela manhã, lá estão amontoados os presentes que são a sagração do, por muitos contestado, execrável consumismo.


Vejam o rol de equívocos que fazem desfilar pelas vossas cabeças ainda em formação. Primeiro, a maioria das criancinhas vive nas grandes cidades, acantonada em condomínios que partilham a mesma chaminé. Como pode o pai natal descer pela chaminé e depositar as prendas que vocês ansiosamente esperam, se a chaminé é uma parte comum do prédio onde moram? Segundo equívoco: uma incongruência que vocês deviam denunciar aos progenitores e professores que na escola contribuem para o consagrado imaginário natalício. Afinal, o pai natal desce pela chaminé ou penetra nas vossas casas pela varanda, como é revelado pelos caricatos bonecos que enfeitam muitas varandas e janelas? Terceiro equívoco: as histórias de natal contribuem para a fantasia da época – e, vão-se habituando, as fantasias são isso mesmo, ilusões que se esboroam na azeda decepção assim que cai a cortina que as encobria. Ao contrário dessas histórias, vocês não precisam de esperar pelo amanhecer para descobrirem as prendas que calharam em sorte. É logo pela noite, depois de a família fazer o contrário dos conselhos dos nutricionistas ao cabo de uma maratona gastronómica.


Retomo a anti-estética dos bonecos em forma de pai natal a trepar às varandas. Sinal dos tempos, porventura: não tendo cabimento enfiar a figura nas chaminés que pertencem à pluralidade que habita o condomínio, mudam-se os hábitos. O pai natal agora entra nas casas pela janela que está mais à mão. Continuo sem perceber a adulteração fermentada pelo imaginário natalício. Já dantes não percebia por que motivo o pai natal se escondia de todos e descia pela fuligem das chaminés. Mais perplexo ficava ao saber que o pai natal terminava a labuta com a farda impecável, sem o menor sinal da fuligem acumulada nas entranhas das chaminés. A reescrita da fábula do natal não desfaz os equívocos: desde a tenra idade aprendem que as visitas entram nas vossas casas pela porta, depois de se fazerem anunciar soando a campainha da entrada. Já alguma vez uma visita entrou à socapa pela janela?


O que me traz à desilusão que vos anuncio: o pai natal devia ser como as pessoas normais e teria que se anunciar batendo à porta de cada residência. Como alterou os hábitos e agora entra às escondidas estroncando uma janela, o pai natal é um meliante como outro qualquer que entre na residência alheia para furtar objectos. Para atenuar o vosso choque pela revelação, concedo na diferença: o pai natal deixa prendas, o ladrão comum sai das casas roubadas com um pecúlio que empobrece as vítimas do crime.


Se vocês tivessem direito a sindicato, propunha que reivindicassem uma alteração do imaginário do natal. Deviam exigir ao pai natal que não trepasse às varandas, pois os meliantes comuns podem usar o precedente para escapar à prisão. E exigir que o pai natal deixasse as prendas na vossa presença. Mais: ele só devia abandonar o lar visitado depois de vocês desembrulharem todos os presentes. Dessa forma, podiam confrontar o pai natal com os agradecimentos e os protestos, consoante o agrado ou a decepção pela generosidade do balofo barbudo.


Quando forem crescidos, vão ser educados para a defesa dos direitos dos consumidores. Ora, o natal é uma indústria como outra qualquer. Se os serviços prestados pelo pai natal deixam um travo amargo, a DECO devia estar à mão de semear para acolher os vossos protestos. Para, no ano seguinte, a visita do pai natal ser mais do agrado dos petizes, os grandes consumidores do natal.


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