19.12.08

Solenidade institucional, que coisa bela


Há quem tenha um enorme apego pelas instituições. Considera-as o cimento da vida em comunidade. Sem elas seríamos um somatório de vontades individuais, de desordenadas e caóticas vontades individuais. Das instituições, a mão mágica que transforma as vontades individuais com uma certa apetência para o egoísmo – acreditam os cultores da bondade das instituições. São elas que temperam os egoísmos, dir-se-ia, convencem os indivíduos a declinarem o egoísmo ante as virtudes de viver em comunidade.


Há uma rima necessária: instituições com solenidade. Quando as instituições são esteios da oficialização da autoridade que se sobrepõe aos cidadãos, a solenidade de certos momentos é irrecusável. Convencionou-se que esses solenes momentos são, eles mesmos, cimento da lealdade dos cidadãos à comunidade a que pertencem. Ontem foi um desses dias, com a habitual visita de cortesia de uma comitiva do parlamento ao palácio onde reside o presidente da república. Os solenes momentos exigem pose grave e palavras de circunstância – ainda que sejam palavras embebidas na vacuidade do seu significado, mas a pose grave e de Estado trata de lhes dar um sentido, por figurado que seja.


A comitiva da assembleia da república foi a Belém desejar feliz ano novo ao presidente da dita (república). Este retribuiu os votos, estendendo-os aos representados no parlamento – o povo em geral. Por uma vez, algum laicismo vingou entre a penumbra do catolicismo omnipresente. Pois o presidente da república discorreu oratória que apenas contemplou votos para o ano novo, esquecendo-se de reservar um par de palavras para a quadra natalícia que ainda está mais próxima. Foi avisando que 2009 será um ano preenchido por dificuldades. Desejou "boa saúde e (…) um ano tão próspero quanto possível", pois "tudo é relativo nos tempos que correm".


Algum dia teria de concordar com o discurso – enfadonho, cada vez mais enfadonho – de sua excelência. Não sei se foi esquecimento, mas a ausência de votos de bom natal motivou pessoal simpatia com o presidente da república. Se há coisa que nunca entendi foi políticos a desejarem feliz natal aos súbditos. Qual é, pela boca dos políticos com responsabilidade, o significado daquela expressão? Muitas prendas no sapatinho, eles também empenhados na lógica do consumismo? Ou apenas aquilo que todos desejamos uns aos outros, por convenção "social", sem se saber ao certo o que contêm os votos que formulamos?


Aquele beija-mão institucional, zelosamente trazido pelas televisões para comprazimento do rebanho ordeiro, foi o retrato do cinzentismo militante em que esta terra está mergulhada. Os manuais do protocolo de Estado ensinam que o número um é o presidente da república e o número dois é o presidente da assembleia da república. Aqui, um parêntesis se impõe: isto da hierarquia do Estado é uma lengalenga sem sentido, uma bazófia para inglês ver. Pois se quem manda é o chefe de governo, por que se há-de insistir que o número um e o número dois são aquelas figuras? São as deficiências do sistema político no seu esplendor.


Cinzentismo: Cavaco e Gama em parelha. A ver quem triunfa no campeonato do tédio. Que não haja dúvidas: Jaime Gama é imbatível. Dizer que é dono de voz monocórdica peca por defeito. É voz xanax. Acredito que mesmo os que lutam com insónias terríveis não conseguem resistir à voz xanax do presidente da assembleia da república, logo de seguida caindo nos braços de Morfeu. Cavaco anda lá perto. Aposto que anda a ter lições com Gama. Com a idade, e a pose grave desde que entrou para o panteão dos presidentes da república, tem destilado uma oratória possuída por uma entoação que está cada vez mais parecida com a de Gama.


O que dizem no beija-mão que enaltece as instituições junto dos súbditos? Banalidades. O número um diz mata: "que 2009 seja um ano de tranquilidade institucional, que será positivo para enfrentar as dificuldades que temos pela frente". Ao que o número dois diz esfola: "é nos períodos difíceis que deve ser redobrado o sentido de solidariedade". Por isso é que um dia depois do beija-mão institucional o parlamento, o mesmo parlamento que prometeu juras de fidelidade ao inquilino de Belém, vai aprovar, sem mexer num vírgula, o Estatuto dos Açores que tinha sido reprovado pelo presidente da república.


É assim que gosto das coisas, embrulhadas na sua elevada hipocrisia. O beija-mão institucional, só para que o povaréu fique embevecido com o lugar sacrossanto das instituições. A solenidade das instituições é o tal cimento que semeia, entre o povaréu, o convencimento que tudo funciona como dever ser. Um cimento mal amanhado, contudo, que se esboroa logo no dia seguinte.


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