Não acredito que os comunistas comem criancinhas ao pequeno-almoço, como era doutrinado no tempo do Estado novo. Mas também recuso a visão romântica do PCP que ainda domina uma certa intelectualidade lusa. Os tempos são de crise para os comunistas lusitanos: perderam a âncora soviética, restando-lhes os gloriosos exemplos que resistem à varridela da história (Cuba, China, Coreia do Norte); e perderam espaço eleitoral, vindo por aí abaixo nas sucessivas eleições. Sobrevivem. De cada vez que ficam a roçar os 10% dos votos é uma tremenda vitória eleitoral. Aliás, é apanágio dos comunistas: seja qual for o resultado que obtêm nas eleições, é sempre uma vitória. Um estranho caso de fair play eleitoral.
Nos antípodas do comunismo, acho contudo que os comunistas devem continuar a ser presença marcante. Há uma certa pedagogia na sua persistência na paisagem partidária. Há por aí muitos críticos que acusam o PCP de ser um caso perdido, parado na história, incapaz de se desprender do dogmatismo ideológico, em suma, um partido anacrónico. Criticam a peculiar concepção de democracia dos comunistas – a visão do que é democracia como modelo de organização da sociedade e a democracia interna do partido comunista.
Começo pelas críticas relacionadas com a democracia. Quem não é militante deste partido não se deve pronunciar sobre a qualidade da democracia interna. Esse é um problema que só diz respeito aos militantes. Se convivem com a atípica concepção de democracia interna, quem os pode censurar? Já subscrevo as críticas ao enviesamento dos comunistas quando empregam a palavra "democracia" como sistema político de que se dizem seguidores. Nem a teimosia de reinterpretarem à sua maneira os atropelos às liberdades que foram cometidos pelos sucessivos governos da sagrada União Soviética os impede de dar lições de democracia. Para eles, "a direita" não anda muito longe do "fascismo" (não acentuar a primeira sílaba, para pronunciar como os comunistas nos habituaram). É o atrevimento de quem se serve de um catecismo ideológico que não renega o totalitarismo. O passado é o legado que os marca. Não só o passado do altar soviético que sempre reverenciaram. Também os episódios de turbulência social e política em que foram protagonistas no Verão quente após a revolução que instaurou a democracia.
Já as críticas que acusam o PCP de anacronismo me parecem desacertadas. Não digo que o PCP esteja parado no tempo, agarrado à ortodoxia ideológica. Só não concordo que isso seja motivo de crítica. Deixá-los ser saudosistas dos idos gloriosos da União Soviética. Deixá-los confessar a admiração pelas maravilhosas democracias que existem em Cuba, na China, na Coreia do Norte. Há melhor confissão dos pergaminhos democráticos dos comunistas caseiros? Existe melhor testemunho do que teriam preparado caso algum dia chegassem ao poder, com o manto totalitário a estender-se na asfixia das liberdades fundamentais? Retomo a ideia: há uma certa pedagogia na existência do PCP.
(A propósito, apetece interrogar a camarada Odete, a figura maior do congresso do último fim-de-semana, quando num comovente discurso pressagiou a proximidade da falência do nefando capitalismo. Camarada Odete: e na adorada China, o capitalismo também tem os dias contados?)
Há dias escutei alguém a sentenciar, do alto da sua sabedoria: que a sobrevivência do PCP, que teima em conquistar deputados e câmaras municipais, é sinal da pequenez da portugalidade. Percebo a tentação de quem assim raciocina: que é como quem diz, ainda há muita gente que aceitaria regressar a uma ditadura. Mas não concordo com a mesquinhez de quem revela tamanha ausência de fair play democrático ao causticar os eleitores do PCP. São os mesmos que têm o despautério de insinuar que o povo é ignaro quando cauciona o triunfo eleitoral de um partido que não preenche os seus gostos pessoais.
O PCP é uma peça de arqueologia política. Que deve ser preservada, para avivar a memória histórica do que foi o comunismo. Tal como não devem ser proibidos os partidos da extrema-direita, no pessoal desacordo com o sectarismo da Constituição que temos. Uns e outros são importante caução a quem entender a democracia como o regime possível, o regime onde, pelo menos, a tolerância e a liberdade de expressão não são cerceadas com o beneplácito do poder e da lei. Esta é a utilidade dos comunistas, como se fossem peças de um museu que, através da sua observação, muito ensinam.
Uma interrogação final: o camarada do "partido irmão" de Cuba, aquele que excitou os congressistas com a oferenda de um retrato dos irmãos Castro, viajou de Cuba em classe executiva?
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