As adoráveis idiossincrasias. De todos os povos. O lusitano povo tem, entre muitas, o hábito de reservar as tarefas até ao último momento. As coisas vão sendo adiadas, pois ainda há tempo de sobra até chegar o prazo agendado para as cumprir. Para que havemos de desembaraçar as tarefas no tempo extemporâneo? Quando o tempo passa e a tarefa sobra para a última hora, sobeja uma azáfama que traz consigo a incrível pressão. Há quem diga que só assim consegue viver, sob os holofotes da pressão – como se fosse imperativo ter um revólver apontado à cabeça para fruir a exigível produtividade.
É assim com os tempos de antena. O que caracteriza o Dezembro? Para além do que está convencionado (festividades natalícias, um ano velho dobrado pelo novo ano), uma revoada de tempos de antena de mil e uma associações e sindicatos e sabe-se-lá-mais-o-quê com direito aos minutos que a lei aclama como direito de expressão através do "serviço público" de televisão. Têm o ano todo para colocar o tempo de antena. Passam os meses uns atrás dos outros e nunca é oportuno mostrar a mensagem que identifica a associação ou a reivindicação que é timbre do sindicato. Só em Dezembro, o último mês do ano, para aproveitar a prerrogativa gerada pela generosidade da anacrónica lei. Quando o ano já não tem mais meses para oferecer e antes que a dobra do calendário extinga o direito a aparecer na televisão naqueles escassos minutos.
Por esses tempos de antena passam exemplares fantásticos do imaginário indígena. Personagens catitas, personagens dantescos, gente com péssima dicção, figuras supostamente bom postas, a fatiota que usam nos casamentos tirada do armário para a televisiva aparição, tão bem apessoados. Tempos de antena fabricados como se ainda estivéssemos nos anos setenta – e não me refiro a sindicatos que exalam a iconografia soviética, num saudosismo que não conseguem reprimir –, tal o amadorismo cénico. De permeio com tempos de antena que se socorrem das maravilhas da tecnologia, que vivemos numa era de democratização também da tecnologia.
Há nestes tempos de antena muitos casos de "cinco minutos de fama". Para muitos dos anónimos dirigentes de uma desconhecida associação que representa os interesses mais inauditos, este é o zénite de uma vida (descontando o instante em que foram entronizados, ou se fizeram entronizar, no comando da associação). Subiram a pulso na escada da vida. O degrau mais alto, a aparição na pública televisão no espaço dedicado ao tempo de antena. São sempre os últimos a dar conta da pose ridícula, que esse é juízo a que só os outros, os telespectadores acidentais, conseguem ter acesso. O narcisismo trata do auto-diagnóstico: são eles que fazem a ovação mais audível e demorada ao pessoal desempenho à frente das câmaras da televisão que os deram a conhecer à audiência que supõem numerosa.
Os tempos de antena já foram satirizados por humoristas. Ser espectador de alguns tempos de antena é um exercício de surrealismo. Não é de estranhar que os tempos de antena em profusão pré-natalícia sejam matéria-prima abundante e gratuita para humoristas. Fonte para criação de personagens nas suas criações humorísticas. Há nestes tempos de antena um ingrediente terapêutico: são um programa de humor espontâneo.
É por isso que às vezes estaciono diante da televisão, no aperitivo para o cortejo das desgraças que desfilam no noticiário, embevecido com os tempos de antena das anónimas associações que se sucedem. Na maior parte dos casos, nem retenho o interesse sectorial nem a mensagem difundida. A atenção está presa nas personagens que se passeiam à frente da câmara, na peça de oratória grave – porque em todos os casos o mundo resume-se à pequenez dos interesses que aparecem ali representados pela anónima associação a quem coube em sorte o dia da visitação ao tempo de antena. Ou é coincidência, ou de cada vez que me entrego aos tempos de antena deparo com aberrações que se julgam artistas da televisão, mestres de uma oratória ininteligível, uma dicção sofrível que não deixa entender metade do que dizem, senhoras com penteados que são pesadelos com o peso dos quilos de laca que são a armadura dos penteados, senhores, uns mais velhos outros mais novos a querem imitar os primeiros, passeando gravatas com cores berrantes.
Há quem sugira a liquidação dos tempos de antena que a generosa lei garante a toda e qualquer associação e sindicato e sabe-se-lá-mais-o-quê. Discordo. Nestes tempos de antena encerra-se um precioso laboratório das idiossincrasias nativas. Manda a antropologia que não se desperdice a preciosidade. E quem pode recusar um programa de humor espontâneo?
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