A ortodoxia não é um exclusivo dos comunistas lusitanos. É visita assídua da igreja católica, presa às amarras de um conservadorismo que mostra como a igreja é um anacronismo destes dias. Só que às vezes o vento muda de quadrante e sopra com sabor a surpresa. Um vento que irrompe contra a monotonia instalada, uma lacuna na ortodoxia dominante. Um laivo de heterodoxia, portanto.
O bispo do Porto decidiu inovar e meteu no You Tube a tradicional alocução natalícia. Eis a igreja, vinda das catacumbas dos costumes, rendida às novas tecnologias. O bispo terá indagado os hábitos dos fiéis – e dos menos fiéis e de outros que andam tresmalhados deste rebanho – e percebeu que as redes sociais, a famosa Web 2.0, são um poderoso meio de difusão. Ora, como a igreja católica está em crise – e como poderia escapar ao manto da crise? – o estado de necessidade obriga a mudar de hábitos. Por uma vez, alguém da hierarquia eclesiástica parece entender para que lado roda o mundo, em vez de teimarem em fazer o mundo rodar para o lado que tanto gostariam. O bispo do Porto admite-o: o You Tube é "um instrumento da nova evangelização".
Este é um pequeno passo para a igreja sair das masmorras do tempo, libertando-se dos dogmas da inércia temporal. Tem muito terreno pela frente para a tarefa ser consumada – isto na suposição de que está nas intenções da igreja a reconciliação com os tempos que vivemos, o que não consigo afiançar ser sua genuína intenção. Já temos padres que parecem tudo menos padres, sem a sotaina escura e o cabeção que desde tempos imemoriais eram indumentária distintiva. Padres de calças de ganga, modernaços. Padres vivaços que se especializaram na fusão de dois catecismos aparentemente contraditórios – o de Cristo e o do Marx. Mas são padres irrelevantes na hierarquia. Não são eles que arquitectam a linha oficial da igreja. Na sua irrelevância, são dissidentes autorizados mas inexpressivos a esbarrar no dique que impede a actualização da igreja. Pois é disso que se trata: colocar a igreja a par com o relógio que marca o compasso do tempo.
Passei a vista pela mensagem do senhor bispo (na notícia; não a fui ver ao You Tube). Há um excerto que gostei: "quero deixar a todos uma palavra de encorajamento, porque é destas coisas que parecem pequenas, mas onde nós investimos toda a boa vontade, que nascem a prazo, e às vezes nem sequem a muito longo prazo, as melhores soluções, as mais humanas e também as mais divinas". Passo por cima da referência divina, que o ateísmo a isso obriga. O que me interessa? Que as soluções nascem a prazo, estas pequenas medidas – tudo no contexto da crise profunda que se anuncia nos seus efeitos devastadores para o futuro que está para chegar. Até aqui, um sinal da heterodoxia. Pois a igreja anda enamorada pelas teses que desfilam a certeza fora do tempo de esquerdismos vários e analistas contra a corrente, em uníssono sugerindo o regresso a Keynes como parte do pacote das "novas medidas" para encerrar a crise no seu túmulo. O bispo do Porto deixa, nas entrelinhas da sua alocução, sinais de que Keynes não é "nova medida" nem a panaceia que alguns, com crendice misturada com esotérica presciência, julgam ser a única solução.
Não chegam estas pequenas ilhas que iludem o anacronismo que corrói a igreja católica. Quem traça a doutrina da igreja tem que perceber os sinais do mundo. A começar, o respeito pelo livre arbítrio das pessoas, em particular dos crentes que são a prioridade da igreja. A não intromissão na consciência das pessoas, para diluir o feudalismo intelectual na relação entre a igreja e os crentes, tamanha a dependência a que os crentes são conduzidos. E, porque não, aceitar a natureza humana, já que por muito que se pregue a abstracção da fé ela não pode nada contra o rigor da biologia: por muito que custe aos castos sacerdotes condenados à abstinência de sexo, os prazeres carnais pertencem à natureza humana. Deve a igreja aceitar, ao menos, a não intromissão na intimidade de cada pessoa, deixando-as entregues ao livre arbítrio e os devaneios carnais de variada espécie. Como deve aceitar que a sexualidade não rima com procriação, o que seria suficiente para renegar a patética doutrina que repudia os métodos contraceptivos. Já agora, como sinal de que está acordada para o tempo que passa diante dos seus olhos, mudar de posição quanto aos preservativos já não como método contraceptivo mas como meio de prevenção contra a epidemia da SIDA.
Mas: o que interessa ao ateu os caminhos por onde anda a igreja católica?
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