Os tempos modernos são uma sucessão vertiginosa de modismos. Efémeros modismos. Uma revoada que aporta ao cais onde são experimentadas as modas do momento. Na maior parte das vezes, os modismos que vingam são os que vêm embrulhados no adocicado papel da surpresa. É que a criatividade esgota-se na nuvem que resguarda os ventos da imaginação. De cada vez que surgem ventos que sopram uma aragem inusitada, os gurus das novas modas ficam excitados e impingem a excitação aos acríticos seguidores.
Vale para as artes, como vale para a moda, até para excitações colectivas que fabricam um exército de seguidores de personalidades que desaguam na paisagem política. Por hoje, umas reflexões sobre um modismo caseiro no panorama da música moderna. Uma vaga de bandas e artistas que, dizem-nos os promotores em estações de rádio, são uma refrescante vaga no panorama musical. Saem do anonimato e emprenham os ouvidos com um insólito rock and roll, ou música de intervenção religiosa na modalidade "cantautor", trazendo a "palavra do senhor" com as vestes da música que nunca se pensaria estar a jeito da disseminação evangélica. Artistas e bandas que começaram a carreira a dar concertos em templos evangélicos, o acto que se segue ao culto. Um após o outro, desprendem-se do anonimato dos templos evangélicos e tomam conta de um quinhão da antena radiofónica e da divulgação na imprensa da especialidade.
Alguns exemplos para a apreciação dos desconhecedores que estejam curiosos. A coqueluche: os Pontos Negros. A gravitar no sucesso desta banda, João Coração, Tiago Guillul, Samuel Uria – correndo o risco de cometer uma injustiça ao ignorar outros nomes na calha para o futuro sucesso. Nos gostos musicais vinga a subjectividade. Como a liberdade de opinião. No que se segue, há o risco de pisar o calo aos admiradores do género bíblico-musical. A menos que resvalem para a cegueira dogmática, aprovem a liberdade de opinião e a diferença de padrões estéticos de quem não se revê no estilo.
Tenho que admitir, para começar, um preconceito. Por um imperativo de honestidade intelectual. O agnosticismo é o obstáculo maior à degustação do rock and roll bíblico. Uma música não é apenas a melodia; as palavras – poemas ou não – que lhe dão uma vestimenta contam, e muito. Naqueles artistas há, em doses variáveis, a disseminação da palavra divina, uma retórica tingida pela moralidade religiosa. Não quero que esta pessoal objecção seja entendida como um clamor para vedar os canais radiofónicos a artistas que trazem a mensagem evangélica através da música. Nem quero que estas palavras, este preconceito, sejam entendidos como uma pessoal obstinação dirigida contra a igreja evangélica. Apenas não me enamorei pelo género, ao contrário de muitos divulgadores que, usando a antena radiofónica e as páginas de jornais, dizem maravilhas daqueles artistas e passam-nos à exaustão, desfazem-se em textos pródigos em elogios.
Interrogo-me: a generosidade dos feitores da moda da moderna música é sintomática de conversão religiosa? Andarão eles pelos templos evangélicos, e decerto não apenas em demanda por novos génios que dedilham as guitarras enquanto entoam loas à metafísica aspergida pelos pastores? Outro tipo de interrogação: o que sinaliza a insólita ingerência da retórica evangélica num género musical que tem sido largamente insensível, até hostil, ao fenómeno religioso? Porventura os horizontes mais abertos da variante evangélica, pelo menos quando se comparam com a anquilosada e tacanha postura da dominante igreja católica, queiram significar algo. Na igreja católica, os ensaios de "modernização" musical resultam em lamentáveis exercícios. Tão anti-estéticos que nunca tiveram o privilégio de chegar à divulgação radiofónica. Na igreja evangélica, a abertura ao modernismo do rock and roll tingido pela retórica bíblica não será um oportuno acto de marketing? Só para atrair os mais jovens aos templos, pois no final vêm os concertos como rebuçado que adoça o culto.
Tenho bom remédio: não consumir o género. Posso retomar o pessoal acto de higiene intelectual. Cercear a entrada de tal música nos ouvidos – a auto-censura que obriga a mudar de canal quando os pessoais ódios de estimação (o primeiro-ministro, o líder do Bloco de Esquerda, o presidente de um clube a contas com a justiça) tomam conta da televisão.
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