O ano está senescente e presta-se a balanços. Podia destacar numerosos acontecimentos, uns pela positiva, outros como expressão do que de mais lamentável o ano senescente trouxe. Quase ao calhas, como das primeiras coisas que veio à lembrança, calhou o programa "novas oportunidades".
Terá sido uma invenção da casta de pedagogos que medra pelo ministério da educação, contagiando com o seu entusiasmo experimentalista um primeiro-ministro com percurso académico pejado de dúvidas? Ou, ao contrário, uma súbita iluminação que clareou a mente sempre muito à frente do timoneiro da pátria, que terá encomendado aos vanguardistas pedagogos do ministério um programa destinado à muita gente que tinha os estudos pendurados? É um desperdício de capacidades, ter esse exército de valorosa gente que, por motivos insondáveis, interrompeu o percurso escolar.
Se a pirâmide demográfica anuncia tempestades para o sector do ensino, nada como reinventar a pólvora: facilitam-se as coisas à numerosa gente que ainda não tinha terminado o ensino secundário, que assim fica com um pé à porta das universidades. Como complemento, inventou-se o programa "mais de 23". Quem tiver idade superior a vinte e três anos e alguma experiência profissional nem precisa dos estudos secundários concluídos. Prestam-se a provas que testam os seus (básicos) conhecimentos e passam a fazer o tirocínio para doutores.
Há dias li uma história que é o retrato acabado das consequências das "novas oportunidades". Um desportista de alta competição andava longe de terminar o ensino secundário. Nem sequer com as muitas regalias do estatuto de alta competição lá chegou. Até que percebeu como a sua vida podia mudar. Primeiro acto: tirar partido das "novas oportunidades" e, num abrir e fechar de olhos, tinha em mãos o certificado do décimo segundo ano de escolaridade. Segundo acto: percebeu que o estatuto de desportista de eleição o punha ao abrigo de um contingente especial no acesso à universidade. Não tinha que passar pelo crivo das médias de acesso à universidade, que isso fica para o comum dos mortais. Há um ano só tinha o nono ano de escolaridade. Hoje é estudante de medicina.
Já houve quem, nas páginas dos jornais, se mostrasse perplexo. Estará o rapaz capacitado para ser médico, olhando à ascensão vertiginosa que o levou, de uma penada só, do nono ano para os bancos de uma faculdade de medicina? E se um dia mais tarde calhar em sorte sermos tratados por este médico – foi a interrogação repetida à exaustão. Vejo o outro prisma do assunto: terá o rapaz pedalada para aguentar o curso de medicina? Não andará ali a ocupar o lugar de alguém que teria mais capacidade para a função?
Ao longo dos últimos anos têm-se multiplicado os episódios de ilusão estatística alimentados pelos notáveis pedagogos do ministério da educação. Só para não passarmos vergonha nas comparações com os parceiros europeus, mudam-se as regras e cauciona-se um mar de facilidades que garante o sucesso aos estudantes. As consequências são perversas. Primeiro, as criancinhas que depois se fazem adolescentes treinam-se no facilitismo metódico que não é a melhor preparação para serem parte integrante da selva profissional. Segundo, neste contexto de facilidades o papel dos professores é desvalorizado. De uma forma ou de outra, todos obtêm aprovação. Nem sequer se distingue o mérito, pois pode acontecer que um aluno esforçado venha a estar nas mesmas condições do cábula que aproveita a oportunidade das "novas oportunidades". Por que se esforçam os que têm brio se a compensação é a mesma dos que aproveitam o embuste governamental? Terceiro, temo que a banalização se instale também nas universidades. Os maus hábitos que vêm de trás descompensam os alunos para as exigências a que o ensino universitário estava habituado. O processo de Bolonha já arrepiou algum caminho, não cultivando a exigência de outrora. Hoje, não se avaliam conhecimentos; avaliam-se competências – só para baixar a fasquia da exigência e não maçar muito os estudantes.
Há medidas que são o espelho dos seus fautores. São conhecidas as curvas sinuosas do percurso académico do timoneiro da pátria. Como é público o curriculum da senhora que manda no ministério da educação, uma escalada meteórica com cinco anos a separar a entrada na universidade da conclusão de um doutoramento. Estes são os méritos da democratização: se tiveram acesso a tantas facilidades, faz sentido estendê-las à populaça. Nem que seja para premiar a mediocridade que, numa cultura de exigência, jamais passaria disso mesmo, mediocridade não premiada. E qual é a surpresa? Os mandantes da actualidade, lídimos representantes da mediocridade.
Odeio ser catastrofista. Mas diante disto só consigo balbuciar, em jeito de interrogação, se isto não é o princípio do fim.
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