"Foi por isso que criámos as condições para que baixassem os juros com a habitação (…)", José Sócrates, ao que parece o primeiro-ministro que vamos ter que aguentar até 2013, na mensagem de natal difundida pela televisão.
Como o posso evitar? Bem me esforço por ignorar a sua presença. Há que convir: é difícil. O homem é uma praga que enxameia os ecrãs da televisão nos noticiários – e aqui, confesso, o mal é meu, embrenhado numa dependência de noticiários, compulsivo consumidor de informação que sou. Não há noticiário em que não apareça. Uma, duas, três, quatro vezes. Para que ninguém se esqueça que está entregue nas suas prodigiosas mãos. É então que a muito bem oleada máquina da propaganda se faz sentir. De tanto entrar pelos olhos e ouvidos dentro – acreditará a máquina de propaganda – acabaremos por nos render às maravilhas da personagem. Nem que seja pelo cansaço.
Da minha parte, é o enjoo que fala mais alto. Até pode ser excessiva a análise, mas tenho para mim que não houve pior primeiro-ministro desde que a democracia foi instaurada – descontando Vasco Gonçalves e Santana Lopes, porque ninguém pode ser pior que Santana Lopes. Estou cansado do actual timoneiro da pátria, cansado da deificação que o rodeia, cansado da mediocridade que aparece magicamente transformada em grandiosidade, cansado do culto de personalidade que faz parte da estratégia da propaganda. E, sobretudo, moído pela desvergonha cozinhada pela máquina de propaganda que lhe compõe a imagem, passando mensagens que são uma mentira pegada – ou a manifestação da maior das ignorâncias.
Ontem não vi – nunca o faria – a mensagem de natal lida pelo portentoso primeiro-ministro. Mais tarde, travei conhecimento com o conteúdo ao passar os olhos pelas notícias. A frase que dá o mote a este texto prendeu a minha atenção. Por deformação profissional, talvez. Quando a personagem diz que "criaram as condições para que baixassem os juros com a habitação", ou mente despudoradamente ou exibe toda a sua ignorância. Por um momento, sonhei que a personagem regressara aos bancos da universidade e, para minha desdita, era meu aluno. Aprendia comigo os fundamentos da União Europeia. Se num exame escrevesse uma frase que, por outras palavras, dissesse aquilo que ontem comunicou às massas, podia-lhe assegurar (e com um prazer indescritível) reprovação redonda.
O que contém aquela frase assassina que terá levado no engodo muita gente que assistia, naturalmente embevecida, à venda de banha da cobra? Primeiro, utiliza o verbo "criar" no plural. Olhando ao resto do discurso, e colocando a frase no contexto, o senhor estava-se a referir ao governo que dirige de forma exemplar. Ele quer que os concidadãos acreditem que foi o seu fantástico governo, decerto guiado pela sua presciente acção, que ordenou a diminuição das taxas de juro.
Todos os meus alunos – até aqueles que chumbaram – teriam o prazer de fazer a rectificação: é o Banco Central Europeu que fixa as taxas de juro nos países que têm o euro como moeda. E o Banco Central Europeu beneficia de independência política. Haveria alguém de ensinar ao apedeuta primeiro-ministro que "independência política" significa isto: o pessoal do Banco Central Europeu não pode, nem quer, receber instruções dos governos dos países. Um especialista da matéria podia ser convidado por um órgão da comunicação social para convencer os incréus (e avivar a memória, ou iluminar o obscuro conhecimento, do primeiro-ministro): já foram tantos os episódios em que o Banco Central Europeu bateu o pé ao poder político, recusando fazer aquilo que era insinuado nas pressões exercidas por gente que governava os países da União Europeia.
Depois deste esclarecimento, manteria o apedeuta primeiro-ministro a bombástica e mentirosa frase? Claro, estamos em vésperas de eleições. Vale tudo, por definição. Até mentiras, sobretudo aquelas mentiras que chegam de mansinho e ecoam inverdades que a maioria da audiência é incapaz de detectar. São as mentiras que passam por verdades, as muito convenientes mentiras, as mentiras que favorecem a imagem de quem assim mente. Quem as toma por verdades termina por aplaudir o mentiroso. Logro atrás de logro – com a inestimável ajuda da desastrada oposição "à direita" – assim se faz o caminho que me vai levar a suportar o apedeuta por mais quatro anos.
E, francamente, não sei o que me há-de deixar mais inquieto: se diagnosticar aquela frase como sintoma de ignorância, ou como exalação de uma, mais uma, mentira despudorada. Cá para mim, é as duas coisas ao mesmo tempo.
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