Um velho a vasculhar no lixo. Remexe, indiferente a quem passa. As pessoas da afluência – ou, sabe-se lá, nem tanto – descem a rua, passam pelo amontoado de lixo e, elas também, indiferentes ao velho andrajoso em demanda pelas profundezas dos detritos. Diria, o velho como se estivesse sozinho no mundo, metendo os braços no meio do lixo, revolvendo os desperdícios da classe média por saber que da actividade há-de levar sortida vantagem.
Tirava cartões, sem receio de meter as mãos na imundície que fermenta um depósito de bactérias onde nidificam as doenças dos desvalidos. Adivinhei o velho na sua deambulação rotineira pelo lixo espalhado pela cidade. O que já não tinha serventia para a classe média, o que simbolizava a sua servidão, era para aquele velho esbanjamento agradecido. Agasalhos e calçado já sem aproveitamento para a gente empenhada na sociedade da afluência, ou apenas objectos decorativos que alegravam o sítio onde o velho morava. Vasculhava, um após outro, os verdes receptáculos do lixo urbano. Metodicamente. Anestesiado diante do odor fétido do amontoado de desperdícios.
No aluvião de plásticos, papeis, cartões, papel de embrulho, restos das refeições das famílias, haveria sempre uma preciosidade para o velho. Retirou um rádio, velho como ele, das profundezas do lixo. Esfregou a sujidade com uma manga. Olhou o aparelho, primeiro com desconfiança. Como se não entendesse como pode um aparelho daqueles encontrar o seu túmulo no lixo. Quase de certeza não estaria a funcionar, suspeitei pela pose desconfiada do velho. Arriscou uma tentativa. Ecoou um ruído surdo, mas audível, o ruído que os rádios fazem quando não estão sintonizados. O aparelho sobrevivera à humidade e à humilhação de ter convivido não se sabe quanto tempo com o resto dos desperdícios. Quando não era desperdício.
Nem assim retirou o ar carregado, o rosto fechado dentro das rugas acentuadas. Nem sequer quando, noutro sítio onde o lixo se armazenava, caótico como lixo, encontrou um par de sapatos. Uns sapatos que experimentou. Um par de sapatos talvez um número acima do tamanho dos seus pés. Mas os sapatos pareciam estar quase novos. Dois pares de peúgas, agora que o inverno se acerca e os pés agradecem agasalho para derrotar o frio e a humidade, dois pares de peúgas a solução para dar serventia aos sapatos. Não se desfez das rotas e encardidas sapatilhas que calçava. Acomodou os sapatos num saco de serapilheira, como se fosse o pai natal de si próprio. E nem então esboçou um sorriso, o mesmo rosto carrancudo, o mesmo rosto inexpressivo.
Acenou com a cabeça em tom reprovador. Sinalizando a incompreensão pelo fausto, a seu ver uma incompreensível exibição de fausto. Um rádio operacional. Um par de sapatos de homem, diria, de executivo. Pouco mais do que estreados. Não sei se o homem estava informado do andamento do mundo. Não sei se alguma vez a palavra "crise" tinha emprenhado os seus ouvidos, como emprenha aos que julgamos maior discernimento com a cautela da embriaguez de informação. Provavelmente o acenar de cabeça viesse substituído por uma expressão de perplexidade, tivesse o velho travado conhecimento com os infortúnios do mundo.
Que importam as crises, quando a abundância é apenas suturada ao pé da errância do velho homem entre os restos da nossa afluência? Naquela altura, não consegui sentir comiseração pelo velho mendigo do lixo alheio. Naquela altura, senti as lágrimas interiores vertidas pela obscena, afluente sociedade quando se convenciona que a crise tomou conta do horizonte. Essa sim, é uma dor obscena.
Uma súbita lucidez apoderou-se através da tela oferecida aos meus olhos: o homem tisnado pela velhice a lutar contra a imundície do restolho burguês, sabedor que de tanto porfiar dali haveria de retirar proveito. Só lhe escapava isto: por que insondáveis mistérios uma alma se desprendera de um rádio ainda em funcionamento, porque insondáveis mistérios outra alma não quisera usar um par de sapatos quase novo? Haveria razões. Do grotesco desperdício às mais íntimas razões, com o selo emocional, que levam as pessoas a enviar para o lixo o que outros, sem serem homens errantes remexendo desperdícios, achariam serventia.
Curvado no seu mundo-arquipélago, ao velho não interessavam especulações. Só um agradecimento, um anónimo agradecimento aos autores de preciosos desperdícios. Eram a sua fábrica de reservada felicidade.
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