16.12.08

E arremessaram um par de sapatos a Bush


Está quase a sair de cena o por muitos proclamado pior presidente de sempre da história dos Estados Unidos. Agora que está nos actos finais é ainda mais vituperado, o coitado. Que fique registado: não vou cavalgar na onda bem pensante e assinar por baixo a sentença de que Bush foi o pior presidente da história dos Estados Unidos. Não conheço o suficiente da história daquele país para chegar a tal conclusão. Descontando isso, concordo que Bush foi o pior presidente dos Estados Unidos desde que me conheço a acompanhar – e de longe – a política daquele país.


Daí a enxovalhar a personagem, acho excessivo. O exercício a que se prestam os do costume tem um efeito contraproducente: de tanto se bater no desgraçado, de tanto o humilhar, a certa altura começa a irromper um sentimento de comiseração. Não que a comiseração seja apanágio recomendável para quem ela se destina. Mas há nesta piedade sobre o constantemente aviltado um paradoxal efeito. Por um lado, a compaixão tem, por uma vez, cores viçosas que parecem reabilitar, um pouco que seja, a personagem. Por outro lado, noto o pessoal incómodo em manifestar este sentimento por quem o não merece. É o desconforto provocado pela metódica perseguição dos anti-americanos primários, dos que arrumam à direita, com sobranceria, a patética maneira de fazer política.


O mais recente acto do vilipêndio de Bush: numa visita ao Iraque, estava Bush a preparar-se para falar numa conferência de imprensa e um jornalista iraquiano atirou-lhe com os dois sapatos, dirigindo-lhe um par de impropérios em árabe. Bush teve reflexos para se desviar dos sapatos, diminuindo os danos – pois decerto o enxovalho seria maior, e o prazer de um numeroso exército de detractores atingiria níveis orgásticos, se um dos sapatos só parasse no rosto do ainda por dias presidente dos Estados Unidos. O episódio está a fazer furor, como seria de esperar. Motivou o aplauso de muitos, o jornalista iraquiano já entronizado o herói do momento.


Até sou capaz de concordar que o ar patético de Bush e a sequência interminável de erros dos neoconservadores põem o ainda presidente dos Estados Unidos a jeito deste e de muitos outros actos de humilhação que se possam imaginar. Das duas, uma: ou a costela anárquica vem ao de cima e qualquer acto de desonra a qualquer líder de qualquer país merece aplauso, sem distinção de merecimento ou não; ou se toma a pose séria, a pose de Estado, e se reprovam todos os actos que insultam os líderes, ainda que no nosso íntimo haja o desejo inconfessável de atirar com sapatos, ovos podres, um nojento escarro sobre o político que coincide com o pessoal ódio de estimação.


Ora, o que me traz perplexo não é Bush ter quase sido atingido pelo par de sapatos do exaltado jornalista. É ver o entusiasmo dos metódicos desalinhados do bushismo e saber que se o boneco quase a ser atingido fosse um dos seus estariam, nesta altura, a escorrer excitados textos de reprovação do insulto. Ao que interessa: o comprazimento de ver Bush desviar-se dos sapatos para não ficar com um olho à Belenenses deve ser o mesmo se, por exemplo, naquele lugar e naquele momento fosse Chavéz, Zapatero, Brown, Lula da Silva ou, por que não dizê-lo, Obama, a baixar o corpo para escapar dos sapatos agressores.


Se pudesse chegar aos destinatários, endereçava o seguinte pedido aos militantes adversários de Bush, dos neoconservadores, dos Estados Unidos em geral: moderem-se, por favor. De tanto frenesim, de tanta perseguição, de tanto fazerem disso modo de vida – como se pouco mais houvesse de interessante neste mundo – quase têm o condão de me fazerem um adorador do país (o que está longe de acontecer), um admirador dos neoconservadores (uma heresia para o liberal clássico) e manifestar misericórdia em relação a Bush (o que me aborrece).


Gostava de saber se aqueles sapatos exalavam o odor fétido de uns pés arredios da higiene. Seria simbólico. Tanto da desastrada passagem de Bush pela Casa Branca, como dos exagerados que não poupam nas críticas, na ironia, na ofensa até e que, por o fazerem sem descanso, quase trazem Bush para o lugar da comiseração.


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