Passa um filme na televisão. Sobre espiões e serviços secretos, romanceando (ou talvez não) a frieza dos serviços secretos, na constante agressão dos vectores do Estado de direito. O filme narra as aventuras de um espião duplo, habituado a espiar para os Estados Unidos e para a (na altura) União Soviética. Ao fim de muitos anos de perseverança e de um deslize fatal, o seu papel dúbio foi descoberto. Ficou sob ponto de mira. Queriam apanhá-lo em pleno delito, conspirando contra a própria pátria, quando estivesse a entregar segredos ao inimigo. Para ser acusado do pior dos crimes: traição à pátria.
Documentos cifrados provavam a traição suprema do agente duplo. Revelara à KGB a identidade de dois espiões soviéticos infiltrados a soldo dos Estados Unidos. Mortos a sangue frio, os Estados Unidos perderam duas importantes toupeiras dentro do labiríntico KGB, o que não podia ser perdoado ao traidor. Foi então que dei comigo a pensar na inutilidade dos serviços secretos que andam por aí às escondidas, num bas fond que renega os princípios que alicerçam o Estado de direito.
Dizem, os que transigem com serviços secretos, que é no "superior interesse nacional" (ou qualquer fórmula estafada de idêntico calibre) que existe a espionagem com o carimbo do Estado. Os países têm que se espiar uns aos outros, mesmo quando são aliados para todo o sempre, para conhecerem os segredos da casa alheia. Para prevenirem que a própria casa seja arrombada. Esta é uma actividade de elevado risco. Na parafernália da espionagem, quem pode garantir que os seus segredos não foram descobertos por outro serviço secreto? Dizem que a contra-espionagem é tão importante como a espionagem. Tão importante é atacar como defender-se da espionagem dos outros. Só que o complexo mundo da espionagem não se compadece com certezas. A existência de espiões que fazem jogo duplo aumenta os riscos do insucesso. Muitas vezes, o inimigo é um dos "nossos". Quando damos conta que dormimos com o inimigo, já os estragos estão feitos e os segredos deixaram de o ser.
Sei que há países mais poderosos, mais ricos, onde os serviços secretos são mais profissionais. Nem esses países escapam ao vitupério dos espiões duplos. São os mais apetecíveis, por serem os mais poderosos, por serem os que garantem um prémio maior caso os segredos sejam desvendados. Mesmo os países mais pelintras se dão ao luxo de possuírem um arremedo de serviços secretos, nem que seja para ostentarem com orgulho a medalha que é a simples existência de serviços secretos. Que os haja em terras enlameadas em ditaduras não deslustra – é timbre das ditas. Existirem serviços secretos nos países que se gabam de estarem na vanguarda civilizacional, por serem democracias, é inexplicável. Os seus líderes e os gurus que promovem o modelo andam a pregar as respectivas virtudes e, afinal, lá num esconso lugar habitam os serviços secretos que desconhecem os princípios que regem o Estado de direito.
As actividades dos espiões a soldo dos serviços secretos são inqualificáveis. Espiolham, são intrusos em casa alheia, esmeram-se em fazer o oposto do que os progenitores lhes terão ensinado em tenra idade – não vasculhar a intimidade alheia. A espionagem é um voyeurismo com a chancela da autoridade. Aliás, um utensílio que reforça a autoridade. A autoridade é a pior voyeur de todos os voyeurs. Os maus exemplos chegam de onde não deviam chegar – isto na óptica dos que permanecem enfeitiçados pela existência do Estado. As autoridades a braços com o estigma do mau exemplo é um cenário balsâmico para mim: o espelho da desautorização do Estado, confirmando o adágio "não olhes ao que faço, olha para o que eu digo". O Estado, enfim, deseduca pelo punho dos serviços secretos.
Se há tanta espionagem e contra-espionagem, uma teia labiríntica de espiões que nunca se sabe se também ajudam a espiar quem lhes paga o salário, porventura faria sentido os países porem-se todos de acordo para banir os serviços secretos. Tal como a concórdia que proibiu minas anti-pessoais, a lógica faria nascer uma convenção que suprimisse os serviços secretos. Ficaria mais limpo, o mundo. E todos nós, inocentes peões no tabuleiro dos inconfessáveis interesses dos países, mais protegidos contra atropelos em nome de putativos "interesses nacionais".
Sou só eu a sonhar, ingénuo.
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