Vai um grande pé-de-vento por causa de uma votação na Assembleia da República que podia ter terminado com a derrota dos socialistas em maioria absoluta, se cerca de trinta deputados da oposição não tivessem apressado o fim-de-semana prolongado. Agora, cada pormenor do episódio é dissecado pela comunicação social: que o número de ausentes não bate certo com o número de deputados que votaram; que certos deputados assinaram o ponto e deram à sola antes de votarem o que havia para votar na ordem de trabalhos; até já houve quem vasculhasse nos arquivos do parlamento, descobrindo que suas excelências têm o hábito enraizado de começar a semana mais tarde e antecipar o seu final.
De repente, toda a gente se atirou aos deputados. No rol de acusações, há uma que prende a minha atenção: o absentismo dos parlamentares é inadmissível porque são os representantes políticos dos cidadãos, o que deles exige uma especial responsabilidade. Devem dar o exemplo – o bom exemplo, supõe-se. As atenções da populaça recaem sobre os senhores deputados. Não têm direito ao deslize. Não têm direito a faltar aos trabalhos da assembleia da república. Concluem: quando são os deputados que dão o mau exemplo, que esperar da populaça senão a mesma mediocridade?
Este é um raciocínio atraente. Escorrega, porém, para um populismo simplório. No fim de contas, é um problema de pescadinha de rabo na boca. Os deputados representam "o povo". Se o absentismo, ou pelo menos a preguiça para o trabalho, fazem parte da idiossincrasia indígena, quem fica chocado com o elevado absentismo dos deputados? Quem se sente chocado com a impressão de que os deputados têm escassa predisposição para o trabalho ou é hipócrita ou sofre de miopia mental. Exigir aos parlamentares mais do que se exige ao cidadão anónimo é uma perversão da igualdade por tantos sagrada. Eu punha as coisas noutros termos: entre a gente anónima, cultivam-se expedientes para não se ir trabalhar, ou para amortecer um dia de trabalho intrometendo o ócio nas horas laborais. Não é por acaso que andamos pelos fundilhos do ranking europeu da produtividade do trabalho. À sua maneira, até nisto os deputados são representantes do "povo" que os elege.
Um exemplo para provar a injustiça de que os deputados são vítimas. Quantas vezes sindicatos disto ou daquilo marcam greves antes ou a seguir a um feriado que já estava encostado a um fim-de-semana prolongado? Como tenho o mau hábito de não acreditar em coincidências, tenho a impressão que estas greves são semeadas no calendário a dedo. Os grevistas sempre poderão ter um fim-de-semana muito prolongado, o que equivale a uma mini semana de trabalho. Alguém denuncia esta esperteza saloia? Pelo contrário: os jornalistas andam pela rua, de microfone empunhado à frente do "povo" que é o primeiro sacrificado com estas greves obscenas, e é o próprio "povo" que aplaude a greve. O mesmo "povo" que vai para os cafés e para os transportes públicos atirar-se furiosamente aos deputados que fazem a trouxa mais cedo. Eis como nem todos apanham pela mesma medida. O que dá uma noção dos padrões subvertidos de justiça deste "povo".
Já que se fala em greves, outra interrogação: os deputados podem fazer greve? Imagine-se o burburinho se um dia os deputados, de uma ponta à outra da paisagem partidária, se pusessem de acordo e faltassem ao parlamento, em greve. Seriam crucificados pelo "povo" sedento de justiça – e o "povo" adora ser justiceiro dos que afiança serem mais fortes. Só não entendo o seguinte contra-senso: nas eleições seguintes, o dedicado "povo" vai às urnas escolher a "corja" de deputados que se segue. O "povo" gosta de escolher medíocres que passam a figurar, em pouco tempo, como seus particulares ódios de estimação. Ou o "povo" é optimista, ou vive mergulhado na profunda ignorância, repetindo uma e outra vez a deposição do voto que, mais tarde, leva à fustigação dos que escolheu. Por que vota o "povo", então?
Tenho pena dos deputados. A sua árdua vida não é reconhecida pelo "povo" ignaro. E ainda se expõem à língua viperina de um profundamente ignorante "povo". Eles têm a sua vidinha, como qualquer mortal. E, como qualquer mortal que tenta convencer o chefe a deixá-lo sair mais cedo do trabalho porque vai de fim-de-semana prolongado, quem pode censurar os deputados por anteciparem um fim-de-semana comprido?
Eu acho que os deputados deviam criar um sindicato.
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