12.12.08

Prisioneiro em si


Debatia-se. Lutava contra as suas teimosias internas. Na maior parte do tempo, descontente com o que dizia, o que fazia. Angustiado pelas masmorras internas que o aprisionavam a um eu que o desprazia. Fazia planos para matar o eu que sempre conhecera. Planos sempre adiados, esbarrando na permanente incapacidade para se libertar das pessoais masmorras que o amordaçavam.


Andava pelas ruas, cruzava-se com os imensos rostos anónimos, olhava para as árvores julgando nelas encontrar a inspiração ausente. Partilhava pensamentos com as águas revoltas do oceano. E nem a inspiração dos poetas, nem isso chegava para descobrir o segredo que demandava. Esbarrava sempre no mesmo rosto, nos mesmos trejeitos, nas palavras que se repetiam em fórmulas exaustivas. Entregava-se a uma rotina cansativa. Tudo isto reconhecia, como se fosse o diagnóstico de uma maleita que ao início se insinuara, quase imperceptível. A páginas tantas, uma doença irreparável, crónica, uma dor perene mas não insuportável. Era como se tivesse ido por um caminho de onde não havia regresso. No limiar do precipício, as opções só dolorosas.


O sobressalto constante ecoava da insatisfação interior. Alimentava um pessimismo indeclinável; tudo parecia sombrio, até as cores radiosas vinham embrulhadas numa tumultuosa neblina carregada de tons plúmbeos. Encerrado na prisão pessoal, era incapaz de distinguir as coisas belas em oferenda do mundo em redor. Todos os dias zangado com o mundo, porque acordava zangado consigo. Não culpava o exterior a si, todavia. Ao menos, o discernimento para julgar os males pessoais, na recusa em atribuir ao exterior a si a culpa pelas amarguras que o consumiam.


A prisão em que vivia encerrado era como um torniquete que cerceava o sangue. Impedindo-o de chegar aos pontos vitais que então seriam caução para visitar outros horizontes, horizontes agora proibidos, ou apenas desconhecidos pelo impedimento do cárcere onde se deitara. Uma insólita condenação que não partira de fora de si. A condenação era uma fustigação pessoal. Uma viuvez interior que o deixava em permanente acabrunhamento. Entregue a uma melancolia imensa. Refugiado num isolamento que julgava terapêutico, a fuga necessária dos males alheios que tanto o atormentavam. Em raros momentos de discernimento, a noção de que os males alheios eram uma plácida gota de água ao pé do pessoal oceano de contrariedades que no mareava.


Era uma estranha prisão, a que encontrara como refúgio. Uma paradoxal privação de liberdade. Voluntariamente dedicado a um retiro, como se houvesse um castigo providencial a cumprir. Uma prisão monástica onde tratava de adiar o rebentamento do espartilho que o remetia à pequenez admitida. Sentia uma tremenda impotência. A incapacidade para trepar as paredes do pessoal cárcere e irromper pelas janelas em demanda das cores esplendorosas que os solarengos dias tinham para oferecer.


Mergulhado no autismo que parecia ser refrescante, dividia-se em dois hemisférios. Ora refugiado na prisão interior que era necessário esconderijo dos outros, a expressão da timidez irremediável. Ora percebendo o cansaço do pessoal aprisionamento, implorando a implosão das masmorras que o acantonavam a um singelo pedaço de si. Já nem sabia o que eram os momentos de lucidez: se a singular e reconfortante placidez da prisão interior, se a tempestade cerebral que, a espaços, sussurrava a mudança de agulha, o esboroamento do cárcere a que se havia voluntariamente remetido. Nestes dias de ambição libertária, sentia a amargura do tempo desperdiçado, o tempo que se havia consumido na pessoal masmorra de si. Metodicamente, escondia-se da ambição libertária para não adensar a interior doença que o consumia.


Era uma força indómita, como se estivesse ali a manietá-lo. A doença maior, crónica, já nem seria admiti-lo; seria entregar-se ao emudecimento do eu cerceado pelas altas ameias do castelo onde se aprisionara. Já desencantado com tudo, a começar pela sua existência, nem se lembrava do lugar onde tinha guardado a chave que encerrava a porta do ergástulo de si.



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