3.4.09

A ambivalência das palavras: os liberais de esquerda


"At last I am free. I can hardly see in front of me.", Robert Wyatt, Shipbuilding.


Por estes dias de febril entusiasmo com o noviço presidente dos Estados Unidos, parece indeclinável o dever de viragem à esquerda. Vejo a excitação de alguns, que sempre os conheci em franjas pouco esquerdistas (sem o radicalismo das esquerdas extremadas), tecendo loas a Obama todos os dias. Vejo-os a baterem no peito em jeito de arrependimento pela crença de outrora nos mercados, desenganados agora que a brutal, impiedosa crise veio – consta – desmentir os intelectuais liberais.


Há uma apologia intensa do presidente dos Estados Unidos. E a crise veio mesmo a calhar. É nas crises que vem à superfície a verdadeira têmpera dos homens. É pelo meio das crises que nascem os verdadeiros líderes, aqueles que se distinguem no oceano de vulgaridades e oferecem soluções capazes e competentes. Os crentes de Obama juntam a crendice com a urgência em sepultar a crise e embrulham-se numa espécie de metafísica, tamanha a adoração acrítica pelo presidente dos Estados Unidos. Nos jornais, artigos de fundo sobre a viragem "à esquerda", a falência dos mercados, a reinvenção do capitalismo, o Estado ressuscitado. Pensamento único em todo o seu esplendor. O argumento decisivo é a conversão, ou pelo menos o arrependimento, de figuras gradas do execrado "neo-liberalismo". (E o que é o "neo-liberalismo", alguém me explica?)


Há dias li uma destas peças com atenção, autêntica genuflexão da jornalista diante da presciência de Obama; dir-se-ia, quase uma hagiografia antes do tempo (pois que o homem só agora tomou conta do cargo e as provas ainda as há-de, ou não, saldar). Teresa de Sousa, que não andava pelas franjas da esquerda onde habita Obama – ou, pelo menos, os seus adoradores deste lado do Atlântico – ditou a análise: a viragem à esquerda é a síntese de uma crise de liderança (o efeito Bush, um efeito repulsivo) e da desorientação geral mergulhada nas profundezas desta crise singular. A jornalista do Público assegurou que os "liberais" estão na moda.


Este rótulo causa-me confusão. Admito que a tradição política dos Estados Unidos comporta as suas diferenças. Nesse país, um "liberal" (as aspas fazem todo o sentido aqui, como tratarei de argumentar) está nos antípodas dos conservadores. Só que a específica tradição política dos Estados Unidos não chega para suplantar as ideologias (e seu significado) que precedem a sedimentação dessa tradição. O liberalismo, o genuíno, vem de Adam Smith e foi prolongado no século XX pelos teorizadores da escola austríaca (Von Mises e Hayek). Estes são os legítimos herdeiros da tradição liberal fundada por Smith. E mesmo que os arautos da desgraça, os que associam todos os males do mundo ao "neo-liberalismo", conotem aqueles economistas com o "neo-liberalismo", só a miopia ou o desconhecimento do seu pensamento permitem o diagnóstico enviesado.


Dizer que há gente de esquerda que é liberal é, para mim, uma contradição de termos. Uma aleivosia só explicável pela adulteração dos conceitos. Ou pela ambiguidade das palavras (assim como assim, há quem se recuse a chamar comunismo ao comunismo; era socialismo, dizem, piedosos). É tão paradoxal associar "esquerda" e "liberalismo" como pensar em atuns nas águas doces de rios. Um liberal – dos genuínos, sem subversões modernistas – é adepto do Estado mínimo. Hostiliza as intervenções estatais na economia, as que metem o bedelho nos mercados, distorcendo-os. À esquerda, o que mais vejo é gente a clamar por mais Estado. Na ordem do dia está um clamor por mais regulação: os mercados, esses diabretes sem freio, máximos culpados pelo calamitoso estado da economia imersa na crise, devem ser domesticados pela salvífica, milagrosa e sempre eficiente intervenção do Estado. Gostava que me explicassem como pode um esquerdista ser liberal (a não ser que o seja muito entre aspas)?


Fujo a sete pés de teorias da conspiração. Mas não consigo deixar de interrogar se não há aqui uma insidiosa campanha para esvaziar o liberalismo de adeptos. Colam-lhe um renovado rótulo – o tal, indefinido e conveniente "neo-liberalismo" – pespegam-lhe todas as sarnas que há no mundo e refazem-se a si mesmos como cultores de um liberalismo reinventado. Eis a "esquerda" (alguma esquerda) em take-over do liberalismo. Folga-se em saber, ao menos, que reconhecem com atraso as virtudes do capitalismo.


Será por acaso que as esquerdas nutrem alguma complacência com o lamentável estalinismo dos soviéticos tempos?

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