Chamar-lhes-ia pedagogos do fatalismo. Gente que se tem a si mesma em elevada consideração. Acredito sinceramente que estes engenheiros sociais, diria, estes autênticos arquitectos que desenham a nova esquadria do homem aconselhável, se extasiam mais com os feitos que esboçam nas suas muito iluminadas cabeças do que com as putativas vantagens para as pessoas em que mandam.
A citação que dá corpo ao título deste texto foi retirada do auto-panegírico que consta da informação sobre o cartão único. Aquele milagroso cartão que agrupa os dados de identificação pessoal, de contribuinte, da segurança social, da carta de condução, de saúde e – pasme-se – até convida os utentes a arquivarem no chip informações sobre contas bancárias. Porventura para tornar mais ágil a diluição do sigilo bancário que veio com uma improvável chancela que uniu, num coro contemplativo, os socialistas do governo, a extrema-esquerda caviar e o presidente da república. Ora dizer-se que isto constitui um "certificado de cidadania", e ainda por cima leva com o adjectivo "autêntico", é de quem faz de si uma imagem bem maior do que a real.
Para começar, gostava de perguntar aos tais notáveis engenheiros sociais se conhecem certificados de cidadania. Andamos habituados, na arenga política, a que os agentes esbofeteiem uns nos outros as suas superiores credenciais democráticas. Como se a discussão política se resumisse a saber quem é mais democrata, ou quem fica diminuído no debate por causa das menores credenciais democráticas. Parece que a moda se enraizou de tal maneira que até a cidadania carece de certificados. E quem os passa? As diligentes autoridades. Tudo indica que sem os atestados garantidos pelo zeloso Estado andaríamos arredados da cidadania. Mal da cidadania quando há gente que assim pensa. O pior de tudo é que esta retórica se insinua e ganha raízes. A populaça, desconhecedora da verdadeira essência da cidadania, vai na conversa. Satisfeitos, empunham o cartão único, orgulhosos por serem cidadãos "autênticos".
Segunda interrogação: por acaso há certificados de cidadania mais autênticos e outros despojados dessa autenticidade? Devíamos ficar preocupados com o passado, isto é, o a.C. – que aqui seria "antes do cartão" –, pois os notáveis pensadores que idealizaram o cartão do cidadão admitem que dantes não éramos "autênticos" cidadãos. Não sei se interessa pedir responsabilidades ao passado, ou apurar os danos que suportámos por nos dizerem que já tínhamos cidadania plena quando afinal agora se descobre que só através do miraculoso cartão único é que passamos a gozar de uma cidadania "autêntica".
Se isto fosse uma interpelação aos pensadores do cartão único, pediria desculpa pelo incómodo de uma terceira interrogação, que seria a seguinte: por que nos asseguram que a tal "cidadania autêntica" vem ungida através dos bons serviços do cartão único? Podem adoçar a boca das massas com um cartão que condensa a informação que, dantes, exigia a apresentação de cinco cartões diferentes. A populaça pode ir no engodo, pois se têm à sua disposição um meio para cortar na burocracia devia agradecer, e demoradamente, a estes notáveis engenheiros sociais que tanto lhe facilitam a vida.
Só que há um porém a tornar a estrada sinuosa e traiçoeira. A possibilidade de cruzamento de dados informáticos aumenta as probabilidades de termos a privacidade devassada por um qualquer funcionário público. A simples possibilidade de isso ocorrer é tão grave que se sobrepõe a todas as maravilhosas vantagens do cartão único. Isto já bastava para suspeitar das intenções de quem concebeu o cartão único, até porque estes socialistas esmeram-se em medidas que inventariam mil e um controlos sobre a vida pessoal. Pode ser desconfiança metódica, mas ela vem alimentada por quem produz tantas medidas que são uma lança intrusiva na privacidade das pessoas.
O mais incompreensível é terem o desplante de entender o cartão único como um "autêntico certificado de cidadania". É lamentável que esta gente não tenha noções mínimas de cidadania. Da cidadania como é teorizada, a cidadania moderna que ultrapassa o espartilho do Estado. Ao assegurarem que a cidadania depende de cartões com a chancela das autoridades, têm uma visão paroquial de cidadania. O pior é que os cidadãos convencidos do mérito desta cidadania acabam, sem o perceberem, por nidificar numa cidadania diminuída. Proponho: uma reciclagem dos mentores destas coisas. Frequentem numa universidade qualquer uma disciplina, e só esta, que trate do contemporâneo entendimento de cidadania. No fim do curso perceberiam que a cidadania, a cidadania plena, ultrapassa, e em muito, as garantias dadas pelo Estado.
A bazófia tem destas armadilhas. A auto-contemplação tolda o discernimento.
2 comentários:
carta de conduçao...no cartao unico..nao,nao!!no cartao nao esta incluida a carta de conduçao,nunca ira estar,imagine-se que a carta era apreendida,la ficava apreendida a nossa identidade...e informaçoes bancarias so sao colocados no bloco de notas que compoe uma das partes do chip do cartao...se o seu titular o entender...pior que isso e o cartao multibanco,que possui visivelmente informaçoes bancarias.
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