Dizem que a esquerda radical, a muito chique e caviar extrema-esquerda, não tem vocação para ser governo. Dizem que nas suas veias corre sangue contestatário, anti-sistema. Talvez estejam errados no diagnóstico. E, talvez quem sabe, a extrema-esquerda que reúne tantas simpatias entre uma certa burguesia urbana bem pensante já tenha começado a governar mesmo sem ser governo. Dessa sublime tentação já não se consegue safar, o Bloco de Esquerda (BE).
A profunda crise pôs a conjuntura mesmo a jeito para a consumação do poder, ainda que efémero, da esquerda caviar. Depois da ladainha insistente que denunciava os apóstolos da crise, ou seja, os capitalistas da pior espécie, lá levaram a água ao seu moinho. Conseguiram seduzir os socialistas que, por uns instantes, emprestaram o leme do poder. Interlúdio: porventura não estarão capacitados para perceber que foram os idiotas úteis a cair no regaço dos socialistas liderados pelo "engenheiro", que assim se cola, com esperteza saloia, a uma causa fracturante que sempre foi património genético da esquerda chique, canibalizando-a. Veremos, quando for o momento dos cálculos eleitorais, se a ingenuidade da extrema-esquerda caviar não é a morte do artista. Veremos se o BE não caiu na esparrela e, anestesiado pelo néon do poder, assinou por baixo a renovação da maioria absoluta dos que lá estão.
A revolução fiscal anunciada é isso mesmo, uma revolução. Sob o pretexto da corrupção, do enriquecimento ilícito e do modismo do momento (a perseguição aos ricos), por fim vingou a diluição do sigilo bancário (ou, parafraseando sua excelência o presidente da república, "sigílio"). As nossas contas podem ser espiolhadas por um qualquer funcionário do fisco que esteja para aí virado. Não me consolo, como se parecem consolar os que aplaudiram a medida, com a inocência como pressuposto para o não incómodo com a possibilidade de alguém vasculhar as minhas contas bancárias. Dizem esses, ingénuos a meu ver, que a melhor garantia da nossa inocência é permitir que os que alinham na ilegalidade sejam perseguidos desta forma.
Agradeço a condescendência, mas prescindo dela quando a consequência é um sistema de permanente vigilância. E de permanente suspeição. Sim, que daqui em diante todos, e sem excepção, somos potenciais alvos da fúria inspectiva do fisco. Andaremos a desconfiar todos uns dos outros, mesmo se quase todos não passamos de pelintras. A vida está, definitivamente, mais difícil para os ricos. Já nem falo dos que enriquecem por portas travessas, que esses terão poucas hipóteses de passar no apertado crivo do fisco, com os bancos coercivamente forçados a serem colaboracionistas. Não sendo inédita a defesa dos ricos por aqui, já não surpreendo se afirmar a preocupação pelos que enriquecem por meios legítimos. (Tenho uma dúvida, contudo: para a esquerda caviar haverá semelhante conceito – "enriquecimento lícito"?)
Apesar do Avô Cantigas, servindo-se da aura de senador jurídico do mais fino recorte que por aqui temos, sentenciar que esta absurda e intrusiva legislação (sou eu que o digo) não é um entorse ao Estado de direito, teremos a certeza disso se o Estado, ao abrir um processo que exige o levantamento do sigilo bancário, quase retira os direitos de defesa às pessoas acusadas? Nem vale a pena mencionar o ónus de prova a recair nos ombros do contribuinte acusado, que isso já é prática corrente no fisco e quase toda a gente o considera natural (a começar pelo presidente da república, o tal que, supostamente, é de "direita"). Se subitamente enriquecer e o fisco suspeitar da origem do enriquecimento, eu é que tenho que provar como enriqueci se eu é que sou acusado? Não me digam que isto é digno de um Estado de direito.
O Nanny state em que vivemos tem um comparsa a preceito: o Big Brother state. Todas as coisas más têm, contudo, o seu lado positivo. Eu proponho que se abra um concurso de ideias para a próxima intrusão legislativa assinada por quem nos monitoriza com tanto afecto. Assim como assim, já vigia os impostos que nos rouba, o dinheiro que depositamos nos bancos, o que podemos comer e beber, se e onde podemos fumar, o exercício físico que devemos fazer (na esteira do grande líder e dos seus espampanantes jogging de ocasião no estrangeiro) e sabe-se lá mais o quê. O que mais virá por aí? Quantas horas podemos ter os candeeiros acesos; o que podemos comprar no supermercado; por onde podemos, e a que horas, levar o muito poluente automóvel; quantas vezes, e em que posições (e, já agora, como quem) podemos ter sexo? E o mais que se possa imaginar. O mundo, então, será perfeito, imaculado, asséptico. Mas um lugar perigoso para se viver, um lugar perfeitamente irrespirável.
Sobra a interrogação final: terá sabido bem, à extrema-esquerda caviar, o lauto manjar do poder? Será que se vão habituar, ao poder?
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