14.4.09

Na cidade, as pessoas desconfiavam-se


Já não sabiam o que era simpatia. Não havia lugar à afabilidade. Só rostos fechados, as mandíbulas bem cerradas como se fossem o garrote que ampara a raiva incontida. Irrompia a frieza no relacionamento, até com quem era conhecido, até com as pessoas algo queridas – e quanto mais com o numeroso exército de desconhecidos. Dir-se-ia que as pessoas se gelificavam, imersas numa insensibilidade que era refúgio contra os sobressaltos vindos dos outros.


Cultivava-se a desconfiança. Havia sempre um olhar de soslaio para o que os outros diziam ou faziam. Era o temor das traições alheias que nutria uma maré cheia de desconfiança. O trato era agreste, as palavras desagradáveis quando dirigidas a desconhecidos, ou a conhecidos que ainda não tinham entrado nos umbrais do reconhecimento necessário. Era como se os outros fossem espinhos cravados na garganta de onde espumavam as rudes palavras, os gestos desabridos, o comportamento tão gélido como toda a vastidão antárctica. Parecia que as pessoas tinham desprendido de sorrir. De resto, sorrir era um verbo esquecido.


O solstício da grande cidade vinha tingido com a plúmbea tonalidade da antipatia. Por mais que uma certa pedagogia oficial semeasse os puros instintos, os sentimentos emproados à nobre condição, era como se as pessoas andassem sintonizadas por bússola diferente. Um coro que ecoava, persistente, mas que esbarrava na irredutível surdez das pessoas. Os incansáveis peregrinos dos nobres sentimentos, na sua vã esperança de trazer de regresso à humana condição o numeroso exército de gente descortês, começavam a debater-se com o seu próprio cansaço. Uma travessia num árido deserto, incapazes de dobrarem a indiferença das pessoas. A insensibilidade que as trazia para um patamar diferente de humanidade – ou a humanidade a reinventar-se sob a batuta do tempo que se fazia diferente. Esses peregrinos, a demitirem-se da condição que a si chamaram, exaustos.


E mesmo quando havia simpatia, mesmo quando diante estava alguém a exalar uma lhaneza contagiante, desconfiava-se. Haveria segundas intenções. Ou uma falsa simpatia, apenas uma afabilidade oportunista, a intenção de mercar coisas a embalsamar a artificial simpatia, a artificial cordialidade. Já ninguém acreditava que houvesse os supostos nobres sentimentos em estado puro. Quando irrompiam, irrompiam adulterados. As pessoas já não contavam pela essência que eram, só pelo interesse que delas adejava.


Alguma crítica nisto? Não. Apenas o desassombro de atestar o que desfilava diante dos olhos. Os tempos que mudam são a simetria dos diferentes zénites que marcam o compasso das vidas. Somos piores agora do éramos dantes? Somos piores, na grande cidade onde tudo se consome nas empedernidas almas, do que são os aldeãos? Não. Somos o que somos, pautados pelas vicissitudes, porventura tisnados pelas amarguras de outrora, pelos vários cadafalsos onde tombámos, sem vontade para mais inquietações. Será a ausente cortesia um alcantilado castelo onde se encontra o refúgio da amargura.


Ou será tudo isto um vasto campo onde floresce apenas a amargura. O perfume que exala desses campos é um perfume inodoro, a inspiração para a asséptica forma de ser onde as pessoas não passam de autómatos. De novo: só uma verificação do que os olhos vêem. As melodias que acompanham o troar dos tempos modernos são um lancinante grito, como se apenas houvesse rudes guitarras a berrarem um som industrial, o desapiedado testemunho das almas que foram ao congelador e se recusam a sair do congelado estado. Já foi tempo para os líricos cantos, as idílicas paisagens pontuadas por rostos cansativamente sorridentes, gente militantemente confiável, a cortesia no trato, a miragem da bondade quando os desconhecidos se relacionam. Já foi, esse tempo.


São as cores que mudaram, as melodias em mutação, a frieza da grande cidade como caução para novos estados de alma. Para novas condutas pessoais. Reescreve-se a moldura onde existe gente. Sem arrependimento.

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