9.4.09

Podemos acreditar na justiça quando há juízes que se fazem políticos?


O problema não está só nos advogados. O problema da justiça – que anda com o nome enlameado junto do público – está além dos advogados, atinge a magistratura. Não quero correr o risco de confundir a árvore com a floresta. Às vezes é elevado o preço que se paga quando a mão escorrega, fácil, para as generalizações. Arrisco, ainda assim. O que me inquieta é que haja juízes que amanhã são políticos e depois de amanhã estão de regresso a magistratura.


Os esteios deviam ser intocáveis. Ia a dizer, esteios do sistema político, mas são alicerces que se enraízam mais fundo, bem além do sistema político. Diria, matriz do funcionamento da sociedade. Nos bancos das escolas e das universidades ensina-se que o maior legado da revolução francesa de 1789 foi a separação de poderes. Metaforize-se: cada macaco no seu galho; parlamento, governo e juízes são senhores das leis, da governação e da administração da justiça, respectivamente, sem interferências recíprocas. Por estes dias de crise da democracia representativa, com a espessura adicional da crise de lideranças porque os lugares apetecíveis foram parar às mãos de figuras menores, é mais urgente enfatizar a independência da justiça. À falta de confiança nos políticos, ao menos que sobre, como refúgio, a confiança nos juízes e na sua independência.


O mal é que nem neste esteio se pode confiar. Vêm de trás episódios de cumplicidades mal explicadas entre juízes e políticos, que depois alimentam decisões judiciais duvidosas que favorecem políticos. Recentemente, recrudesceram os relatos de intimidades sombrias entre gente da política e magistrados. É uma procuradora contra a criminalidade económica que tem relações familiares com gente ligada ao partido do governo. Ou um juiz que foi secretário de Estado de um governo do PS e que entretanto encontrou vantajosa sinecura num organismo europeu que coordena as autoridades judiciais dos países da União Europeia (Europol). Nas suas próprias palavras, este juiz terá dado uma "palavrinha" ao magistrado responsável por uma investigação de corrupção que chamusca a imagem de sua excelência o grande líder da ditosa pátria. Estas "palavrinhas" não são uma forma de pressão, ou pelo menos um condicionamento da liberdade do juiz que as escutou?


Não é minha intenção diminuir a cidadania dos juízes. Têm direito às suas preferências políticas, como lhes são legítimos quaisquer credos ideológicos. E também não me repugna a ideia de haver magistrados com ambições políticas, fazendo carreira e abocanhando cargos com responsabilidade política. Negar tudo isto aos juízes seria diminuir a cidadania a que têm direito em paridade com qualquer cidadão. Todavia, deve haver reciprocidade de responsabilidades. Se os juízes são, por estatuto ditado por lei (ou pela Constituição, não tenho a certeza), irresponsáveis, esse estatuto especial tem especiais consequências. São irresponsáveis porque não lhes pode ser imputada responsabilidade por erros de decisão quando assinam sentenças. Só assim têm margem de manobra para ditarem, sem constrangimentos, as sentenças que deles se esperam.


O que me confunde não são os desvios de juízes para a política. É o contrário: magistrados que puseram o pé na política e depois regressam à magistratura. Vêm infectados e a sua independência já não é a de outrora. Merece cabimento o adágio "à mulher de César não basta ser séria, também tem que o parecer". Repito: nada contra as ambições políticas de senhores juízes que se fartam da rotina dos julgamentos e querem contribuir para a governação da nação. Que se decidam: se querem passar a fronteira, não lhes devia ser permitido recuar. De outro modo, é a separação de poderes que fica hipotecada.


O exemplo do director da Europol que andou por aí em conversas de pé de orelha com o seu colega que investiga factos que supostamente envolvem o primeiro-ministro em actos de corrupção é sintomático. Avesso às proibições, até aceitava aqui uma excepção. Se os juízes com ambições políticas não têm a dignidade para não regressar à magistratura quando deixam de ser políticos, que isso lhes fosse vedado por lei. Se já nem a justiça é credível, sobretudo quando há políticos a cair nas malhas da justiça, em quem vamos acreditar? As togas depostas reforçam a sensação de descrédito.

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