24.4.09

A transcendência das coisas banais


Quando alguém se leva sempre muito a sério, e muito a sério todas as incumbências entre mãos, há o risco de tratar com digna solenidade coisas que não passam de banalidades. É quando se misturam os azimutes e tudo, tudo até na sua insignificância, vem possuído de uma circunspecção que não se compadece com tratamentos levianos. São os que confundem a seriedade da função com o despropósito do engrandecimento das coisas banais.


Tudo se levita numa espuma só ao alcance das muito importantes coisas. Será por defeito de feitio, pois perfumam a existência com a irritante aura de perfeccionismo que os parece elevar ao altar onde só entidades divinas têm lugar. Ou, apenas, porque não se desprendem da mesquinhez em que vivem mergulhadas, sempre fazendo de si uma imagem de importância acima do contexto.


Por acaso não ando pelos antípodas deste comportamento. A desorganização mental deixa-me incomodado. Todavia, tanto me irritam os militantes das distracções, das genuínas e das que se soerguem com o rótulo do oportunismo, como os que esbofeteiam nos demais putativa aura perfeccionista. Fazem as coisas todas bem, muito bem. Tresanda, de tanto alindarem os seus actos com pinceladas que ostentam uma fortaleza inexpugnável ao erro. Eu diria: extra-terrestres, alijados da contestável natureza humana dos que erram, nem que seja por grosseiro erro de perspectiva, ou por banal negligência, e acabam a trautear a melodia da essência humana. Da imperfeita natureza humana.


Esta gente deve fazer da vida um festim, todos os dias consagrados à bestial solenidade de uma qualquer irrelevância. Nisso os invejo, que conseguem descobri um móbil qualquer, por mais impensável que se assemelhe, só para darem guarida à sumptuosidade de uns nadas. E sinto comiseração. Pelo tanto tempo desperdiçado a organizarem mentalmente a agenda onde anotam o infindável rol de tarefas para que tudo, sem falhas ou gralhas de comportamento, venha à luz do dia colorido com uma paleta de garridas cores onde apenas cabem as cambiantes da perfeição.


Não deixa de ser risível. O esforço para adulterar a insignificância das coisas insignificantes, fazendo delas o seu contraste, como se fossem feitos notáveis que a humanidade aplaude em uníssono. Nas sinecuras que trazem o nobilitante lastro da responsabilidade pelos demais, a gravidade dos actos enfatua-se. Agiganta-se, que de decidirem em nome de muitos alimenta-se a esponjosa espessura da tremenda importância dos actos menores.


Divertem-me, estes personagens que se projectam no espelho e conseguem ver um retrato que é toda uma estaleca admirável. O espelho é o mestre das ilusões todas, na imagem projectada que amplifica toda uma pequenez que irradia, ou apenas esconde, inconfessáveis frustrações, ou ambições que nunca conseguiram passar do onírico. Fico, embevecido, a contemplar a pose envaidecida, e a grave pose que o momento reclama, ao laborarem num tremendo equívoco. A melodia entra em desacerto, pois não é preciso grande discernimento para notar que o cerimonial, cheio dos salamaleques e tratos de polé que a seita gosta de a si chamar, é uma fátua fogueira. Uma fogueira onde se consomem as vaidadezinhas pessoais, daquela gente que reclama para si uma importância que não encontra eco do outro lado, onde não há ninguém para os escutar ou sequer darem conta da sua existência.


Porventura, a transcendência de tudo é a caução da irrelevância do mesmo. Que transcendência, a das coisas banais! Tão transcendentes que, a certo passo, já nem sequer as coisas sérias, as que mesmo importam, têm espessura para entrarem no Olimpo da transcendência. Sobra uma fumarola que expele vestígios, a refracção do nada a que tudo é reduzido pelos que urgem em dar transcendência a todas as insignificâncias.

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