29.4.09

Da sobranceria


Somos titulares do juízo dos outros. Quantas vezes para açambarcar a superioridade quando asseguramos que os outros, os que passam pela crua pena do nosso juízo, são de fraca têmpera ou reprovam no teste da competência.


O mal está na frequência com que somos o crivo por onde passam os que se põem a jeito do nosso critério. É um exercício que se repete, dias a fio, meses e anos sem cessar. Um escrutínio irrecusável. Para os cépticos o ajuizamento dos dias correntes vem pintado com cores sombrias. Sobressai a inépcia, o calibre defeituoso dos que passam pelo filtro da crítica impiedosa. É um exercício pungente. As mais das vezes, o diagnóstico é a mediocridade rasteira. Aos desenganados do mundo e das suas coisas, o tempo das ilusões ficou retido nas memórias onde havia vestígios de ingenuidade, um lirismo próprio da tenra idade e da inexperiência.


Pesar qualidades e defeitos alheios é um cadafalso. O juízo é exterior a si. São sempre outros que passam pela exigente lupa que decifra um diagnóstico. Raras vezes os próprios julgadores se submetem ao exercício. Nuns casos, porventura por se saberem feitos da mesma massa dos que usaram para destilar a azeda crítica. Noutros casos, convencem-se que pairam acima de todas as suspeitas, adejando com a sua superior aura sobre os demais. Estariam, por assim dizer, à margem dos demais. Ungidos por dotes só ao alcance dos escolhidos.


Arremetem com a sobranceria que os distingue, a sobranceria que carrega o lastro da sua intelectual superioridade. Escapam de espelhos, não vão acusar imagem desagradável do que são, desapossando-os da íntegra capacidade de serem julgadores dos demais. Quando se diz "fulano é de uma mediocridade atroz", estaremos numa espessura diferente dessa mediocridade? Ou quando se atesta que "sicrano é de uma incompetência singular", por que nos convencemos que essa incompetência não é nosso atributo também? Com que autoridade nos elevamos aos píncaros sabe-se lá do quê e peroramos acerca dos atributos, ou da falta deles, dos que se prestam à figura de actores diante da plateia onde o lápis afiado se ensaia para a cruel crítica?


O pior dos males é a irrecusável atracção pelo julgamento dos outros, de preferência dos que passeiam a sua lamentável existência. Uma deriva de soberba vaidade; quem aponta o dedo às criaturas lamentáveis é porque se acha possuído por uma têmpera diferente. Todavia, quem o certifica? Talvez não passe de auto-convencimento. O que desfaz a autoridade intelectual em pedaços. Andamos todos nisto. A desautorização dos outros, pela pena do julgamento da nossa autoria, é a confissão da nossa própria desautorização, do pequenino lugar onde estamos acantonados.


Há o lado contrário da sanha crítica. O silêncio depurativo, pois quem se refugia no julgamento dos outros terá temor de olhar para dentro de si, incapaz de usar consigo a indulgência que recusa nos outros. Uns dizem, cansados do excessivo tom crítico que desagua nos outros: se não teimássemos em selar com supostos juízos superiores o que são, o que dizem, o que fazem os outros, estaríamos no rasto da maioridade. Por mais atraente que seja a pedagogia da anti-crítica compulsiva, ela esbarra numa prioridade maior: pode-se reprimir a livre expressão, que umas vezes desemboca em crítica, só porque estamos na mesma nau onde navegam os que criticamos?


Caímos, com frequência, na crítica fácil e, em ocasiões, feroz. Quando olhamos por detrás do ombro e relemos o julgamento dos outros, às vezes sobra o ressentimento pessoal que aduba a seguinte interrogação: somos diferentes da têmpera dos que criticamos? Oxalá pudéssemos sair do interior de nós e apreciar, do exterior, o que nos consome. Seríamos mais criteriosos nos alvos? Seríamos congruentes com a essencialidade do que somos: a desautorização de nós é flagrante quando apontamos a artilharia contra alguém quando pelo nosso interior corre o mesmo tipo de seiva de que não gostamos nos que passam pelo nosso crivo.


Seja como for, alinhavam-se irrecusáveis perguntas: o indivíduo é mesmo de fraca jaez? Imerso na sua profunda ignorância, a ignorância sublime dos que se julgam de inteligência superior aos demais? De maus fígados? Todas as palavras que diz, uma colecção de mentiras? Um hino à mediocridade, à imagem do resto? A quem me refiro?

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