10.4.09

Os prantos


De que química são feitas as lágrimas? Quantos quilos de tristeza carregam singelas lágrimas que se desprendem dos olhos e aparam os poros do rosto? São as lágrimas um testemunho silencioso das penitências indesejadas? Haverá um dia, um dia só, em que não haja lágrimas derramadas neste mundo?


As pessoais consumições insinuam-se tantas vezes na sua torpeza. São o leito onde acamam as angústias que se riem, com cinismo, dos esboços de felicidade que esbarram nas aleatórias esquinas onde mora o desassossego. Calham à sorte – ou, dir-se-ia, em azar –, devastando as mansas planícies onde a existência se arrebatara. São punhais frios no contraste com a carne quente, a carne dilacerada pelos punhais traiçoeiros. Uma dor insuportável que, de tanto doer, deixa de fazer sentido. A certa altura, os adoradores da tristeza intransigente parecem viciados em dor, anestesiados por ela.


Sobram os prantos. São rios, lagos, oceanos – quem sabe? Onde se revolvem todas as lágrimas vertidas, todos os dias, por todas as desassossegadas almas do mundo. Uma torrente caudalosa que passeia a amargura sentida, os passos trocados da vida, os amores desencontrados, as perdas, a morte. Tingida por cores imensas, a pontuar a incomensurabilidade de sentimentos que têm entre si um denominador comum: sofridas vidas que desaguam em prantos imparáveis. As lágrimas incontidas que a couraça interior, por mais opaca que se afigure, não consegue reprimir.


Nas lágrimas derramadas há o sabor da melancolia dos outros. Ou da nossa, quando calha em sorte serem nossas as lágrimas. Estranhamente, há nas lágrimas um consolo interior. Pelas lágrimas destilam as mágoas que oprimem por dentro. É como se desatassem um doloroso espartilho que asfixia por dentro. As lágrimas são balsâmicas. É como se lavassem as amarguras que se levitam em pessoais consumições. Pudessem as lágrimas decantar os vestígios da melancolia; seriam remédios, a cura para o manancial de tristeza que teimasse em irromper, incontrolável. Só que as depurativas lágrimas não ocultam o que as trouxe. As lágrimas não afastam os pesares da existência.


No sal das lágrimas, o anti-gosto da existência. Ou talvez não. Pois não é verdade que precisamos da antítese do que procuramos para termos a certeza que degustamos o seu sabor? As lágrimas são o laboratório onde se prepara a alquimia da fortuna. Atestam o contrário da plácida existência que é ambição pessoal. No seu sacrário, as lágrimas vertidas embotam as angústias que foram seu fermento. A beleza do mundo está na contemplação dos contrastes, a virulenta valsa dos opostos, ir ao sopé da montanha só para deixar cair o corpo numa frenética queda livre precipício abaixo. Como podemos assegurar que gostamos de algo se jamais experimentámos o seu contrário?


Então as lágrimas são o atestado do céu bonançoso que é a ambição maior. São a caução de que houve, e voltará a haver, dias solarengos – se os dias solarengos forem a metáfora para a existência completa. É pelos desvios de outrora, e por aqueles que terão lugar doravante, onde todas as apoquentações tiveram seu trono, que descerra a acalmia dos dias vindouros. Será quando a memória das lágrimas ensina a degustar com toda a intensidade os instantes que merecem ser emoldurados nas recordações com sabor. Os prantos de outrora não o deixam esquecer: que não há perdão pelo desaproveitamento das alegrias. Elas devem ser arrebanhadas, sorvidas com sofreguidão, sem receio que se esgotem na dobra do escasso tempo. Se há lição nas lágrimas já vertidas, é que os arrependimentos apenas nutrem lágrimas quando trovejam, impiedosos, pelo interior do corpo.


Oxalá alguns prantos. Os que nunca neles nadaram nunca saberão o que é nidificar no seu oposto.

1 comentário:

Anónimo disse...

ainda sonho com esse dia