27.4.09

A deificação dos “capitães de Abril”


Obrigado, que nos sacudiram da vetusta ditadura. Prestaram o seu serviço. Daí a fazer-se crer que temos uma eterna dívida de gratidão (ou uma dívida de gratidão eterna?) é exagerado. Lembro-me, ainda adolescente, de ter salvado uma criança do afogamento numa piscina. É a primeira vez que o revelo. Não fiz o que se esperava que fizesse? Para quê eternizar proezas, transformá-las em dívidas de gratidão e não recusar aos heróis perenes mordomias e intermináveis homenagens? Assim se fabricam deuses com pés de barro.


Todos os anos, a celebração da revolução de Abril transforma-se numa ladainha. Já lá vão trinta e cinco anos e parece que os fantasmas da ditadura permanecem vivos, como se fossem diabos traiçoeiros à espera da primeira oportunidade para asfixiarem as liberdades que o 25 de Abril trouxe. Percebe-se: o imaginário colectivo precisa de algo que cimente a lealdade das gentes ao regime. Afinal de contas, é o regime vigente.


Não estou a discutir a qualidade do regime (e podê-lo-ia fazer sem apanhar com uma crucificação devida aos hereges?). Não tenho dúvidas que este regime, com as suas numerosas imperfeições, é preferível à ditadura do Estado Novo. A qualquer ditadura. Se mais não fosse, pelas liberdades. À distância de trinta e cinco anos, e sem ameaças sérias vindas da extrema-direita, são superiores ao meu entendimento as celebrações muito sérias e os indestrutíveis receios de derivas totalitárias de direita. Pois que da esquerda não são temidas as mesmas derivas totalitárias, num viés incompreensível.


A iconoclastia típica das celebrações de "Abril" recupera do armário os militares que foram seus autores. A esta distância, e com a atracção pelo totalitarismo de extrema-esquerda que vários desses militares mostraram entretanto, tenho-os como a nova brigada do reumático do regime. Estão numa paradoxal posição. O regime não se cansa de os elogiar, de lhes consagrar tratos de polé, todos os anos desmultiplicando-se em mil e um agradecimentos. Só que esses militares, muitos deles, desgostosos por a democracia não ter descambado para uma ditadura do proletariado ou coisa parecida, não se cansam de mostrar a sua decepção e protestam contra o regime. Dizem, muitos deles, que "Abril" foi atraiçoado.


Pelo meio desta relação de amor-ódio, os que habitualmente se desfazem em encómios não aprendem com a ingratidão e a pose arrogante dos capitães de Abril e renovam as homenagens. Os capitães repetem a desilusão, mas agradecem as genuflexões anuais sempre que o calendário pára no vigésimo quinto dia de Abril. É quando aparecem naquela pose muito importante, de quem é penhor dos eternos agradecimentos de toda uma população que os deve elevar aos píncaros por lhe ter devolvido as liberdades reprimidas pela ditadura. Dir-se-ia que gostariam que o tempo tivesse parado por alturas da revolução de Abril. Só para enquistarem os feitos, emoldurando-se a si mesmos na galeria dos imprescindíveis a quem são devidas perenes homenagens.


As proezas são efémeras. Mesmo quando vêm debruadas a ouro nos anais da história, quando os seus feitores insistem no fausto da pose e exigem respeito, dedicação e, caso necessário, diárias homenagens. Querem-se ultrapassar à história e pôr-se a jeito de uma canonização qualquer. Já é lugar-comum convencionar-se que todos devemos eterno agradecimento aos capitães de Abril. Tenho o problema dos imperativos categóricos definidos por uma qualquer voz colectiva sussurrada pelos porta-vozes que assim se destacam da turba. Por outro lado, há perguntas inevitáveis: até quando seremos obrigados a prestar-lhes faustosa homenagem? Por quantas gerações? Até ao fim da história?


Da mesma forma que estamos estruturalmente presos a uma salazarenta maneira de ser, o regime não se desprende das fraldas enquanto se mantiverem os fantasmas do passado que alimentam os louvores aos capitães de Abril. É sinal de infantilidade do regime. Ou uma tentativa desesperada, de certos sectores mais radicais, de manter no regime os traços anacrónicos que o enfeitaram no período do fervor revolucionário. A devoção aos capitães de Abril, apenas um sucedâneo de canonização. Se as proezas têm o traço da efemeridade, já não devo nada aos capitães de Abril. Tal como a criança que salvei do afogamento na piscina não me deve nada: limitámo-nos a cumprir um dever.

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