Alquimistas do passado, ansiais por uma salvífica arma que vos devolva o tempo arquivado. Debatam-se, esgotando o único tempo que têm para saborear, testando fórmulas todas gastas até que descubram que dos tempos idos não há regresso possível. Quando alguém vos diz que ouviu falar numa arma que liquida as saudades do tempo que se ausentou, contristados refugiam-se nas masmorras onde preparam a alquimia dos saberes que mantêm a chama viva das saudades.
Eu, que tenho é saudades do tempo que ainda hei-de descobrir, do que me refugio é dos laivos de saudades que irrompem à flor da pele. Posso estar enganado, mas acho que as saudades são um disfarce do presente. É minha alquimia outra tarefa, distinta da dos feiticeiros que se embrulham no manto das saudades: descobrir a prometida arma que mata as saudades. Não no sentido corrente da expressão, pois ficou convencionado que "matar saudades" é fazer uma incursão nas memórias que apascentam a nostalgia do passado, só para compensar o presente onde campeiam as amarguras. Matar as saudades, literalmente, trajar as armas que disparam os projécteis que ferem de morte as saudades.
No império do livre arbítrio, só resta respeitar as alquimias do passado por onde muitos vegetam. Como disse, as únicas saudades que noto em mim são as do tempo futuro. Não renego o tempo por que já passei, nem as recordações que estalam, dolorosas, no quarto do pensamento. Nem menos as recordações que são quadros onde repousam adoráveis paisagens. Nem estou interessado em fazer a contabilidade da existência, só para saber se nos pratos da balança pesam mais as recordações que interessam reter ou as que são remetidas ao precipício do esquecimento. O que alimentam as saudades, senão uma miragem? Pelos dedos das saudades, somos esboços de nós mesmos, retemperados pela ilusão do que ficou emoldurado lá atrás. E que já não tem regresso.
Não, não são as saudades a alquimia que ansiais. Não é pelo adocicado travo das saudades que trazem do já empoeirado tempo os episódios, as pessoas, as palavras que apenas dão sentido a um lastro de vida. O mergulho nas saudades vem tisnado com a nostalgia. As suas águas não passam de uma miragem. Por mais adocicada que a boca fique ao cabo do exercício das saudades, no fim do trajecto sobra apenas o tempo presente. O contraste gritante, deixando nas saudades um fio de amargura, indelével.
É por isso que devia haver uma arma para matar as saudades. Não para matar saudades; a sublime diferença está no "as" que intercala "matar" e "saudades". É que as saudades fazem toda uma diferença. Entre a duradoura prisão num tempo ausente, do qual a única certeza que há é a da sua irrepetível textura. E a ilusão do tempo que existe, e do que ainda está por conhecer, pelo durável e espesso manto das saudades que são um desperdício do tempo, do único tempo pelo qual as mãos hão-de passar. É por isso que as saudades são uma traição do tempo que haveremos de conhecer. Pois elas são uma faca que se insinua nesse tempo, de cada vez que revolvem nos tempos idos e subtraem consistência ao tempo presente, ao tempo vindouro.
A arma, se existisse, matava à partida qualquer arremedo nostálgico. Seria como um alarme a soar de cada vez que as saudades ecoassem, covardes do tempo com consistência. Nem que fosse uma cósmica arma, ou ela também produto de uma alquimia em contramão com a alquimia dos saberes que esmeram a inútil saudade. Só haveria, então, lugar a uma forma de saudade: a do tempo ainda por conhecer. Por ser imperativa a elegia do tempo, de sempre escasso tempo que a existência tem pela frente até que a morte, de uma vez por todas, liquide vida e saudades de um golpe só.
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