17.4.09

A sacerdotisa


Faltam-lhe os paramentos. Falta-lhe o sexo certo para poder ser o cura das almas tresmalhadas que o deixariam de ser se se deixassem guiar pela sua presciente sabedoria. É toda uma aparência de bondade. De uma simplicidade desarmante. Aquela candura que alicia. Tudo à primeira vista. Incansável a destilar lições de moral, que a sacerdotisa está bem lá em cima, num inacessível pedestal.


Discorre certezas. Daquelas que vêm com o perfume dos imperativos categóricos. Fica perplexa quando nota a ousadia dos que são dissidentes das verdades acertadas. Ai de quem perfure a tranquila moralidade sancionada pela sacerdotisa. É quando as falinhas mansas se transfiguram e deixam à mostra a perfídia, bem nutrida por uma inteligência que procura cercar os que trovejam inconveniências, sitiando-os na sua insignificância.


É então que cai a máscara e a sacerdotisa mostra do que é feita. É então que destila um cinismo impiedoso – tão impiedoso quanto contraditório com a sinecura sacerdotal que chama a si. A bondade esboroa-se na insidiosa desconfiança. É como se nela houvesse dois hemisférios em constante luta. Aquele que corresponde à imagem propalada por vezes sucumbe perante o hemisfério dos instintos, onde afinal reside a sua verdadeira essência. O outro hemisfério é só uma encenação onde orquestra a falaz imagem de si.


Eu tenho uma desconfiança metódica daquela gente que se acha detentora de monopólios do que quer que seja. Quando toca aos monopólios da ética, há uma imagem que povoa o pensamento: a da gente que exala "olhem para o que digo, não para o que eu faço". A sacerdotisa acha-se arauto da moral, penhora da ética, juíza suprema dos comportamentos alheios. Não lhe passa pela cabeça ser sujeita aos juízos dos outros, pois os outros estão todos e sempre um degrau abaixo da sua incomensurável sabedoria, nutriente da sobranceria e da erudição que se ostenta. Por sinal, o paredão da sua barragem intelectual abre brechas de vez em quando. Por onde se escapam vestígios de incoerência, por onde escorrem as metódicas insuficiências que denunciam a falácia da sua elevada erudição. Então a desorientada sacerdotisa socorre-se da arrogância como esteio da sabedoria e dos pergaminhos que ostenta.


Este injusto e muito imperfeito mundo não tem capacidade para lhe prestar justiça. O império da masculinidade é o preceito para uma religiosidade assimétrica, penalizadora das mulheres. O que porventura explica outro sacerdócio que persegue: o feminismo militante. Aliás, andam atrelados os dois sacerdócios. O da religiosidade progressista, pelas convenções estabelecidas que se alimentam de um arcaico conservadorismo. E o sacerdócio do feminismo persistente, pois se vingassem as teses das militantes do feminismo exacerbado (e já não vão impondo a sua vontade?) um dia teríamos sacerdotisas a celebrar eucaristias. O sonho supremo da sacerdotisa?


Por fim, poderia envergar sotaina. Engano-me: a base da pirâmide eclesiástica seria depreciativa de personagem de tão distinto calibre. De bispo para cima. Até para premiar a persistência das militâncias, o vanguardismo acima de qualquer suspeita. Não está ao alcance de qualquer um. Aos que andam três passos à frente do tempo corrente, o merecimento das comendas. A da sacerdotisa seria um bispado qualquer, com direito às genuflexões obrigatórias da coorte em redor. A caução necessária para ensinar a moral acertada, ajuizar sem contemplações os atrevidos em contramão do manual de ética com a sua chancela. Enfim, o mundo deixaria de ser uma injusta e imperfeita construção. É para isso que servem os cientistas sociais que chamam a si uma quixotesca missão: serem os arquitectos do novo mundo novo, mudado a preceito pelo traço fino esboçado a régua e esquadro lá nos seus alcantilados estiradores.


Ó sacerdotisa loquaz: por onde andas é de onde eu me quero ausentar. Mas uma coisa te agradeço: és uma referência do alto do teu dogmatismo. Uma referência por antítese.

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