16.4.09

Esta justiça obscena


Quando a justiça é a sua própria negação, já pouco sobra em que acreditar. Quando a justiça aparece presa aos tentáculos do formalismo, ela é cega – no que de pior a metáfora pode conter. É quando se dá conta que os magistrados e os juristas são prisioneiros de quadros mentais muito rígidos. Os últimos, quando fazem leis que não se conseguem flexibilizar sob pena de lavrarem resultados obnóxios. Os primeiros porque, enquanto responsáveis pela aplicação da lei, fogem da latitude que o papel de aplicadores da lei lhes garante e assinam sentenças absurdas.


Vem isto a propósito do desfecho do processo da queda da ponte de Entre-os-Rios. Os familiares das vítimas queriam apurar responsabilidades. Estão no seu direito. Houve vidas ceifadas por incúria de alguém, que devia andar atento ao estado da ponte e, em vez disso, massajou a negligência. É o problema da responsabilidade do Estado. É demasiado abstracta. Aprendemos nos bancos da escola que "o Estado somos todos nós", mas na hora H nós todos não somos ninguém, ninguém identificável.


É a soberba do Estado. Ao fim de anos de idas a tribunal, ninguém é responsável pela queda da ponte de Entre-os-Rios. Nem sequer o Estado, que afinal não é tão salvífico e generoso como os seus aduladores consagram. Chega ao fim o processo e os familiares das vítimas são convidados a suportar dupla penalização: nem há responsáveis pela morte dos entes queridos e, para cúmulo do disparate, ainda são obrigados a pagar as custas judiciais. Meio milhão de euros, uma bagatela.


Eis os sinais enviados por este maravilhoso tribunal. Quem mandou àquelas pessoas serem familiares das outras que, naquela funesta noite, caíram às águas lamacentas do Douro? Até se pode ser mais cruel: por que andavam aquelas pessoas a passear naquele funesto dia, que estava um dia tão invernoso? Quem as mandou estar naquele dia e àquela hora em cima da ponte que estava por pinças? Foi um terrível golpe de azar. Parece que a manutenção da ponte em condições (um encargo do Estado) é um detalhe irrelevante. Acaba o processo e há três juízes que conseguiram perceber que não há gente que deva ser chamada à pedra pela catástrofe que se abateu sobre as pessoas vitimadas e pela dor suportada pelos seus familiares. Não é adorável a justiça com esta venda nos olhos?


Nunca fez tanto sentido dizer que a justiça é cega, como é simbolizado pela deusa Themis a segurar na balança onde se pesam as decisões justas. Aqui foi a cegueira que impediu de se fazer justiça. Não discuto os pormenores da ilibação do Estado, porque não li a sentença. Ainda assim, é-me difícil entender como pode uma catástrofe destas saldar-se pela inexistência de responsáveis – sejam eles de carne e osso, seja a responsabilidade endossada ao Estado. O que acho insuportável são os mesquinhos caminhos da justiça que apresenta a factura de meio milhão de euros aos familiares das vítimas, pois não conseguiram vencer o processo que tinham movido.


Às pessoas que viram partir de maneira trágica os seus familiares, engolidos pelas águas tumultuosas do Douro, saiu o tiro pela culatra. Numa terra decente, este patético Estado nem se devia defender do processo movido contra si. Limitava-se a reconhecer a culpa e a pagar a indemnização aos familiares. Mas esta não é uma terra decente. Não é um Estado decente, nem é, como se propala, "uma pessoa de bem". Esta é uma justiça que envergonha. É nauseabundo pensar que houve uma qualquer criatura que deu instruções a um advogado para apresentar defesa contra o processo movido pelos familiares das vítimas.


O pior estava reservado para muito tempo depois – pois, como é habitual, a justiça anda a passo de caracol. Mandam as regras: os derrotados em tribunal suportam as custas judiciais. Que são sempre muito elevadas, talvez em proporção da elevada qualidade da justiça que se pratica nos tribunais. Num ápice, em vez da indemnização a que teriam direito, os familiares das vítimas vão ter que desembolsar meio milhão de euros para os cofres do Estado. Tudo isto é de uma obscenidade que nem merece adjectivo qualificativo. É grotesco. Sinto vergonha por ter nascido nesta terra. E por causa do direito que, às mãos destes juízes, se faz torto.

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