30.9.09
Acreditadores
29.9.09
Escravatura no Douro?
28.9.09
Um tosco analista de eleições
24.9.09
A igreja católica dos muitos paradoxos (ou de como a vida terrena é inútil)
23.9.09
O horrível sotaque
22.9.09
A grotesca desgraça e nós: espectadores como se fôssemos abutres
21.9.09
Lembras-te do futuro?
20.9.09
18.9.09
ABC do libertário
17.9.09
As irritantes virtudes
16.9.09
Estaline?
O elogio dos candidatos
15.9.09
Por diante, os dias despejados de nuvens
14.9.09
Esta raiva inútil
12.9.09
Epitáfio
segredam o silêncio do teu sossego.
Por fim.
Nesses olhos cerrados
já não há vestígios dos padecimentos inglórios
nem os sobressaltos de um ocaso indigno.
Agora restas tu
e as memórias resguardadas bem no fundo,
de onde ninguém as pode embargar.
E nem que sopre um vento frio,
um vento que enregela até o sangue fervente,
nem que se escutem preces que desaguam num lamento,
nem que digam que a majestosa árvore que eras
foi arrancada pela raiz;
Nada,
nada disso
pode contra toda a ternura que irradiavas;
nada disso
há-de convencer que deixaste de ser a majestosa árvore.
Nos olhos cerrados
resguardas a tua placidez.
Por fim,
a merecida serenidade.
Foi nos olhos cerrados que te escondeste,
enfim,
das traições em que a existência te fez tropeçar.
Vezes de mais.
Há nos teus olhos cerrados uma lição inteira:
como se fosse um renascimento
ainda que sinta que arrancaram um pedaço de mim.
A árvore majestosa,
centrípeta e matricial,
que continuarás a ser
- pois as memórias são intemporais –
fermentou as raízes lá no fundo,
de onde força alguma as consegue remover.
Legando um manto tão fértil
de onde recolho o manancial da vida.
Não:
os teus olhos cerrados
não são um adeus.
São um livro aberto,
o oráculo tão nítido
do porvir que deixaste a sussurrar na serenidade
dos teus olhos cerrados.
11.9.09
A pandemia da gripe é amiga da igreja?
Andam por aí umas teorias da conspiração. Avisam os incautos (todos nós, à excepção dos visionários que destaparam o cobertor da teoria conspirativa) que esta gripe é uma maquinação dos interesses da indústria farmacêutica que tem medicamentos para a curar. E nós, que vamos sendo instruídos no maléfico poder que os capitalistas têm (ainda hoje aprendi com uma aluna, que escreveu numa tese de licenciatura que o grande capital se alimenta da pobreza), devemos desconfiar dos rebuçados que as empresas farmacêuticas apresentam como cura. Para uma doença que, garantem-nos, terá sido inventada só para que os medicamentos tivessem serventia.
(Isto faz-me lembrar outra deliciosa teoria conspirativa. Há quem assegure a pés juntos que os anti-vírus que instalamos nos computadores são da autoria de génios da informática que, por sua vez, são os inventores dos monstruosos vírus que se espalham pela rede, contaminando os computadores que estejam desprotegidos. A isto chamo o síndrome da pescadinha de rabo na boca: o inventor da cura é o mesmo que espalhou o mal. Só para a cura ser vendida a peso de ouro. Talvez seja ingénuo, mas não me convenço que a estupidez humana atinja tamanhas proporções. Nem no pior capitalismo suicidário.)
A gripe que anda por aí ameaça, agora que o Outono está para chegar. Um responsável do governo previu que mais de dez por cento da população vai ser infectada. A massa cinzenta arregimenta-se à volta de planos de contingência. A prevenção é, mais do que nunca, a prioridade. As pessoas devem ser informadas, alarmadas se preciso for, para comportamentos que reduzam as possibilidades de contágio. Mil e uma ideias têm proliferado. Por exemplo, a hierarquia eclesiástica aconselhou os frequentadores de missas a evitarem a saudação eucarística que envolvia contacto físico, torcendo um hábito sedimentado. Há reportagens nas televisões sobre hábitos de higiene que evitam o contágio da doença. Lá para os países nórdicos, desaconselha-se o cumprimento entre as pessoas sempre que trocarem um aperto de mão ou se oscularem no rosto.
A gripe, que já era má por ter conquistado o lugar de pandemia, ainda por cima exige a alteração dos hábitos sociais. Não que isso seja mau – estar parado no tempo é que é mau (menos para os conservadores). Se já muitos denunciam a frieza nas relações humanas com o distanciamento que se cultiva entre as pessoas, agora o fenómeno vai crescer de intensidade. É que se estamos habituados a saudar as pessoas com um aperto de mão ou com dois beijos (ou apenas um, na versão chique e social-democrata), a troca de afectos vai ser desaconselhada mercê da hedionda gripe. Quando a pandemia já só for uma nota de rodapé, se calhar não vamos readquirir os velhos hábitos. Já só cumprimentaremos os outros com um aceno de mão, ou com o vago uso de fórmulas verbais – o que hoje reservamos a quem não conhecemos de lado nenhum. No rescaldo da gripe, estaremos todos mais frios uns com os outros, menos humanos.
Desconfio que a igreja tem esfregado as mãos de contentamento. Se as pessoas ficarem assustadas com este alarmismo, vão rever outros hábitos tão censurados pela igreja católica. Por exemplo, o sexo com estranhos (as deploráveis – pela igreja – "relações esporádicas ou fortuitas"). Quem se arrisca à troca de fluidos com um desconhecido? Já havia a SIDA a pairar como cutelo na (regresso ao jargão católico) "promiscuidade". Os preservativos (por acaso freneticamente combatidos pela mesma entidade) resolviam os riscos de contágio dessa terrível doença. Com a gripe pandémica, o potencial de contágio por causa da dita "promiscuidade" intensifica-se. Sobretudo se os mortais entregues ao prazer carnal forem adeptos de certas "depravações" (e retomo a linguagem católica).
Se eu fosse um cultor de teorias da conspiração, diria que foram agentes infiltrados da igreja que desenvolveram em laboratório o vírus da gripe A e depois o espalharam metodicamente pelo mundo fora. Se os padres já se dispõem a alterar um hábito consagrado nas missas (o abraço, o cumprimento, ou o beijinho "na paz de Cristo"), dir-se-ia tratar-se de uma táctica só para amedrontar crentes e não crentes (sobretudo aqueles). E assegurar que a libertinagem sexual nunca foi tão desaconselhada. Saibam as hormonas responder ao repto da "razão", pois.
E assim a igreja esposou a gripe A, sua aliada da retrógrada moral sexual que insiste em difundir. Haja uma fervilhante criatividade a fermentar as teorias da conspiração, e tudo se torna possível e provável.
10.9.09
O cão multado (por estacionamento proibido) e outras excentricidades
Foi na Austrália: a dona levou o canídeo a passear e, antes de entrar numa loja, deixou-o preso no exterior. Acontece que a senhora, porventura distraída, "estacionou" o cão num lugar proibido – reza a notícia. Vieram dois polícias zelosos e passaram uma multa ao animal. A multa foi afixada na trela do cão. Assim como assim – terão raciocinado os agentes da autoridade – o bicho estava num lugar onde não se podia parar. Não consta que o canídeo tivesse sido agressivo ao ver um dos homens fardados a depositar a multa na trela. O cão não mordeu nos polícias.
Esta história é deliciosa. Um monumento à absurda condição humana. Tanto quanto sei, o que se estaciona são automóveis e outros veículos motorizados ou não – mas veículos e não animais. Nunca me foi dado a conhecer que os cães eram agentes envolvidos no código da estrada. Não têm bilhete de identidade, nem cartão de contribuinte, ou rendimentos próprios. Li a notícia e fiquei mais perplexo com o destino da multa: o cão tem morada própria? Os agentes da autoridade anotaram no bloco de apontamentos o número da licença do animal, para depois endossarem a responsabilidade a quem ali "estacionou" o cão? Admito que estivessem muito atarefados, os zelosos agentes fiscalizadores do trânsito de pessoas e, sabe-se agora, de animais irracionais também. De outro modo, teriam esperado à sombra de uma frondosa árvore até que a dona recolhesse o cão do "estacionamento" proibido.
Cá está um exemplo de cumprimento escrupuloso das regras – o que nuns sítios existe por defeito, noutros abunda em excesso. Se ali ninguém podia parar por haver um sinal de estacionamento proibido, ninguém é mesmo ninguém. Caso contrário, os animais irracionais que pacientemente esperassem pelos donos tinham uma regalia. E como neste mundo moderno todas as desigualdades são intoleráveis, aos senhores agentes não interessava saber se aquele espaço estava ocupado por um cão, um automóvel, uma trotineta, um skate ou uma roulotte.
No domínio da bioética, há quem proponha a atribuição de direitos iguais aos hominídeos e aos animais (e, devo dizê-lo, concordo com a ideia). Admito que esta notícia é um bálsamo, um paradoxal bálsamo, para os seus particulares interesses. Um animal, tal como um humano, pode ser destinatário de uma multa. A igualdade de direitos entre seres racionais e seres irracionais já esteve mais longe. Só é desagradável porque culminou com a desconfortável cominação sobre o canídeo.
Não me custa imaginar que os zelosos polícias australianos devem ter aprendido pela mesma cartilha daquele ministro de cá, o da administração interna (o maior cromo deste governo, como é que ele se chama? Já me lembrei: Rui Pereira). Aquela pose de estadista, muito grave, reflectida nos fardamentos que exibam a autoridade de quem representa o detentor do poder sobre os súbditos. Continuando com o exercício imaginativo: se o agente que passou as multas fosse um Rui Pereira dos antípodas, e se fosse convidado a explicar o bizarro acto de multar um cão por estacionamento proibido, teríamos direito a um discurso muito articulado, típico dos tipos que aprenderam a manha toda numa universidade de direito, com muita sofística de permeio com a convicção de quem de uma patranha faz uma verdade irrefutável. Diria o Rui Pereira dos antípodas: a proibição é total e absoluta; atinge pessoas e coisas (e aqui socorria-se da arcaica fórmula das leis que qualifica os animais como coisas). Atiro eu daqui: e extra-terrestres, também?
Não sei se, quando chegaram aos respectivos lares, os agentes da autoridade, decerto de peito inchado por terem passado outra multa de estacionamento, não tinham à espera as respectivas consortes. Elas tinham confeccionado um manjar à base de ração para canídeos.
Uns minutos depois, deparei com uma ideia apresentada na campanha eleitoral pela Frente Ecológica e Humanismo (PEH) (a coligação entre o Movimento Partido da Terra e o Partido Humanista): a "moção de censura popular". Um referendo convocado por petição popular, no máximo duas vezes em cada legislatura, para submeter à consideração dos eleitores a demissão dos titulares dos órgãos de soberania. As utopias não custam nada – estão pelo preço da uva mijona. Admito simpatia pelo espírito da ideia (mais responsabilidade para os eleitos e mais poder efectivo nas mãos dos eleitores – a primeira como consequência, a segunda como causa). Mas existe uma improbabilidade retumbante: só na Austrália é que já possível multar animais irracionais por estacionamento proibido.
8.9.09
As ruínas
O desordenado amontoado de pedras exposto ao vento agreste. As silvas que avançam sem freio, misturando-se com as ruínas lassas. Uma amálgama de pedras despojadas e ferros retorcidos e enferrujados. Como se os ferros fundissem com as pedras despedaçadas, num quadro homogéneo. Outrora, aquele lugar fora um hino de prosperidade. Agora sopra uma melodia suave, os violinos confundindo-se com o silvo do vento que arremete no sopé da serra.
Há naquele lugar um paradoxal efeito – uma paisagem arrepiante, de uma feiura atroz ao início, que todavia esconde uma beleza convocada pela demorada atenção. As ruínas acasteladas, ou o postal avivando a decadência do lugar. Diz quem lá passa com frequência que os elementos da natureza deixam as suas marcas. As pedras tombam, acomodam-se numa caótica ordenação. Arrastam outras pedras que resistiam à monotonia do tempo parado. Só que o tempo não está parado. Investe contra as ruínas, que com o tempo em mutação se tornam ruínas das ruínas que já eram. E, todavia, nota-se uma inusitada beleza embebida naquela decadência. As imagens a povoarem a imaginação, que se tecia nos seus labirínticos corredores: se os olhos se detinham diante das ruínas, é porque, antes de o serem, naquele sítio fervilhou gente e uma intensa actividade.
Era só os olhos fecharem-se. Para sentir o bulício daquele lugar ermo – até nessa altura, ermo. A azáfama dos trabalhadores, o estridente barulho da maquinaria em plena jornada industrial. Os camiões que enchiam de poeira os caminhos pedregosos que subiam pela serra até avistarem o planalto dominado pelo que agora são apenas umas ruínas – apenas. Ao abrir dos olhos, as imagens que tinham passado no imaginário como se fossem o sonho de um tempo ausente, regressariam ao decadente, desértico lugar que ali se tornara. Um desfiladeiro das memórias resgatadas do nada. Ou um convite para mergulhar em livros, nos livros cheios de fotografias que trouxessem um fragmento da industrial imponência que aquele lugar fora.
Os diferentes rostos que a modernidade amealha trouxeram a decadência ao lugar. Uma curva descendente, no notório declínio que ditou o encerramento das instalações. Primeiro, o abandono – das gentes, por míngua de procura para o que ali se fabricava. A debandada de quem ali laborava sinalizava o desinteresse das gentes pela coisa mercada. Depois do abandono, o deserto que tomou conta da convivência das pedras desabitadas, já deixadas, inertes, à sua perfeita inutilidade.
Os olhos demoravam-se na contemplação das ruínas quando uma interrogação se insinuou: o abandono não trouxe a destruição do lugar? Não ficariam vestígios de uma decadência, uma insalubre imagem da estatura de outrora que os tempos modernos deixaram de patrocinar. Não haveria lugar à nostalgia incendiada pela simples existência do lugar encaminhado para as ruínas de si mesmo. Oxalá tivesse havido coragem, ou apenas rasgo, para pontuar o abandono com a devastação das edificações que deixariam de ser um desordenado amontoado de pedras fundidas com os ferros retorcidos e ferrugentos. Durante dias, só teria permanecido uma teimosa nuvem de pó a emoldurar os restos das pedras à espera da lenta derrocada. Não houve mister para encontrar tamanha coragem, ou apenas rasgo. Ninguém ousou mandar máquinas para que aquele lugar ficasse em nada.
As ruínas são o museu singular, espontâneo, da prosperidade de outrora. Perdurava a grandeza das ruínas. Não das pedras sem sentido que escoravam as paredes que se iam desnudando com a sucessão de invernias sempre severas. Era como se as pedras tombassem e com elas se esvaísse mais um vestígio da opulência que houvera naquele lugar. Enquanto durassem as ruínas, sobrava uma memória. Mesmo memória para quem, por acidente da juventude, nunca conhecera aquele lugar na sua vibrante laboração.
As ruínas são uma coreografia encenada sob a batuta das clepsidras que nunca param a função. Uma representação, apenas. O que aquele lugar é não são as ruínas em que ficou. Permanece vivo pelo fulgor bebido nas memórias – as visuais, de quem as viveu; e as fotográficas, de quem as legou para a posteridade. As ruínas não são a decadência convencionada. São apenas um museu, porventura em morte lenta, das coisas feitas quando ali havia um tempo próprio.
7.9.09
Bloco de notas
Afinal de contas, sem razão o cepticismo militante. É só abrir os olhos e ver em redor uma terra debruada a ouro e as carradas de honestidade que transpiram de certos protagonistas. Como são penhores de credibilidade. Meto a viola no saco e começo a exibir um cintilante optimismo. Dá gosto, esta terra. Louvados sejam os protagonistas que ornamentam com a sua existência os dias que nascem sempre com uma miríade de cores, refrescantes, perfumados com as miosótis e as buganvílias que brotam dos seus luminosos dedos.
Passam imagens de uma reunião partidária – do partido que se confunde com o Estado. Fico comovido com o ar extasiado dos militantes e simpatizantes que olham, tão embevecidos, para o grande líder enquanto o grande líder perora verdades. Vê-se, no querido líder, as qualidades de um estadista à prova de desconfiança. Nota-se a firmeza das palavras, a convicção da doutrina que alguém emprestou ao seu discurso. As palavras-chave que arrebatam a adesão de multidões: modernidade, igualdade, justiça social.
A mesma reunião partidária: o discurso do crânio de serviço, o homem que, ao que dizem, tem uma estaleca intelectual inversamente proporcional ao tamanho do corpo. Uma oratória – como direi? – auto-encomiástica. Folgamos em saber que há por aquelas bandas uma bebedeira de auto-estima. O homem debitava, assertivo, os feitos que se devem creditar ao governo do momento. Continuei a escutar com atenção e delícia as palavras do Dr. Vitorino. Num ápice descobri que nos andam a enganar, esses economistas mafiosos, com a historieta da crise sem precedentes. Números e estatísticas provam que, ó surpresa, estamos bem. Ou atravessámos a crise na leveza do ar, enquanto a crise consumia as carcaças dos outros países todos – de todos aqueles países que não tiveram em sorte uma gesta de governantes tão ínclita como esta que é vangloriada por um dos ideólogos da seita. (Que tenha havido distorção das estatísticas? Irrelevante. O povo move-se pelas mensagens de confiança, não pela crueza das estatísticas. É como dizem: uma mentira contada à exaustão depressa se converte em verdade. A que é conveniente, mas só isso, conveniente.)
Prossigo na mesma área política. O patriarca, que já foi duas vezes presidente da república e quis sê-lo outra vez, sentenciou: não vê cenário mais dantesco que uma vitória eleitoral da "direita" (mas o que é a "direita"?). No dia seguinte foi a vez do autarca de Lisboa dar para o peditório do terrorismo intelectual: não votar no PS é votar na direita. Eu gosto de ler estas sábias palavras, impregnadas de tolerância. Gosto. É um postal ilustrado das credenciais democráticas desta gente. Eu propunha que se determinasse a vitória antecipada do PS (e por goleada), ou se acabasse com as eleições, pois nas eleições sempre há gente que, incompreensivelmente, prefere votar noutros partidos (ó gente ingrata, ou ignara).
O oásis que somos, mercê dos prestimosos serviços e inigualável destreza dos socialistas, é fértil. Há dias o ministro dos negócios estrangeiros (o homem que nunca tem posição sobre nada) foi a Tripoli prestar vassalagem ao ditador líbio, que festejava quarenta anos de exemplar governação. Não sei onde li, mas faz sentido rebaptizar o ministério dos negócios estrangeiros: aquilo é um ministério de negócios no estrangeiro. Feitos por gente especializada em dobrar a espinha.
Num semanário de referência, uma fotografia deliciosa: Pinho, o ex-ministro que se enterrou por causa de uns chifres extemporâneos, foi com a consorte a um concerto de Tony Carreira. Para uma das figuras emergentes do jet set indígena, há algo de sintomático no evento diligentemente fotografado pelos paparazzi de revistas cor-de-rosa que agora não largam a bainha do desastrado ex-ministro. Só não sabia que o jet set indígena faz fila nos bastidores para chegar à conversa com um ícone da música pimba. Também gostei de saber: que o jet set ouve insistentemente música pimba. Um jet set pimba, pois – sopa no mel. (Ou, se calhar, Pinho não é tão jet set como delirantemente se imagina).
É belo estar neste lugar. Com estes protagonistas, tão zelosos do seu amadorismo. É belo: uma terapêutica para o riso.
4.9.09
Repreensão dos instintos
Os passos, só o barulho dos passos no silêncio da madrugada. Nesse silêncio escutam-se apenas as dores interiores, as veias incendiadas pelo arrependimento das palavras ditas, de uma inteira maneira de ser. Caminham, os pés. Erram pelos caminhos que se tecem, aleatórios. É o profundo pensamento que os conduz, como se fossem os dedos meticulosos metidos num tear a dedilhar os fios que se tecem num caótico tapete. E vogam, os pensamentos. Desalinhados, sobrepondo-se numa desorganizada sucessão.
É tremenda a confusão que troveja no pensamento. Por vezes o corpo estremece, electrizado pelo relampejante acosso da consciência. A consciência; a dolorosa chamada à terra, ou uma culpa enfim domada. Pois há na consciência que aterra uma paradoxal sensação: ora a mordomia de uma aterragem suave que acalma o fervente turbilhão que inflamou os instintos; ora a negação dos instintos, que renega a espontânea forma de ser, um borrão sobre o que se possa pensar ser a essência do ser. Atado a esta encruzilhada, oxalá o pensamento não mergulhasse na sua profundidade. Lá, onde se torna insuportavelmente doloroso.
Ao falarem as águas lânguidas da consciência, soltam-se as amarras da lucidez. Ou do que se julga ser a lucidez. Impõe-se a repreensão dos instintos que foram caução de gestos improváveis, ou de palavras que deixaram em alguém um travo amargo, ou da estranha sensação de desprazimento com o ser que se é. Da repreensão dos instintos, mas não da repressão dos instintos. Mal das águas remansosas da consciência se fossem sempre a compressão dos instintos. É que os instintos desdobram-se na sua esquizofrenia. O mesmo instinto pode infligir dor e pode ser a inesperada porta que se entreabre, a súbita saída encontrada no nada para um labirinto demencial.
Tudo isto se faz em silêncio. O turbilhão do indomável pensamento exige o silêncio do mergulho nas águas profundas onde mora o patrono da lucidez. É ele que vai temperar a fervura das águas que se revolvem numa correnteza bravia. Do silêncio, dir-se-ia que é o medicamento que acalma as consumições fermentadas no leite coalhado que é o arrependimento.
Não custa destapar as algemas do arrependimento. O que custa é ver o que está a montante e a jusante do arrependimento. A montante, a ferocidade dos instintos que se soltam na sua selvática, porventura genuína cadência. Deixando um rasto de equívocos, palavras que não deviam ter sido ditas, uma inteira forma de ser que parece profundamente errada. Depois o tempo acerta contas com o arrependimento, quando a aflitiva consciência faz as vezes do paredão da barragem que retém as tempestuosas águas que ali se espraiam num vagaroso leito onde as águas enfim repousam. A jusante, para além do paredão da barragem, depois do abrupto lancil onde se despejam os excessos dos imoderados instintos, estremece uma culpa.
É neste fluxo de opostos que macera a existência. Retalhada entre o algo e o seu contrário. Num constante deambular entre o ser o seu inverso, quando no silêncio da lucidez que aterra grita a negação do que fora dito ou feito, às vezes a negação do ser que se é. Não sei o que mais custa: se admitir a negação de tudo isto, ou as dores que admiti-lo causa. O corpo entrega-se a esta mortificação. Nas palavras de Fernando Pessoa, "feliz do homem que pode pensar profundamente, mas sentir tão profundamente é uma maldição. Como descrevê-la? Horror sobre horror."
Das alturas onde nasce o rio despenham-se as águas na sua ferocidade. Tropeçam nos penedos que se atravancam no caminho. Essas águas fulminam-se no cimento dos instintos, a pureza do ser nem que dessa pureza sobrem todas as angústias mais tarde domadas no silêncio da madrugada. E também não sei o que sou: se as águas transparentes que tragam o caminho pedregoso, todos os turbilhões que se sucedem com alguma selvática intensidade, ou o lado a jusante da barragem quando a repreensão dos instintos desastrados destapou o alçapão do arrependimento.
3.9.09
A paternalista autoridade exibe-se e o cidadão aplaude
Na praia, corria a notícia: ia um pandemónio no cais onde se apanham as barcaças que sulcam a ria até ao areal. Fila de gente muito para além do habitual. A polícia marítima marcara para aquele dia uma "acção de fiscalização". Os agentes da autoridade estavam no cais a contar as pessoas que embarcavam. Impediam a sobrelotação das barcaças. Ao meu lado, um cidadão – o protótipo do "cidadão consciente" – aplaudia à distância a operação policial. Assertivo, atirou para o resto da família: "pois eu cá acho muito bem; é para o bem de todos nós".
Subiu-me pela pele a alergia do costume quando sinto exibições gratuitas de autoridade. Quando a autoridade passa das marcas e escorrega para o autoritarismo. Fico mais inquieto quando vejo ao meu lado "cidadãos exemplares" que ovacionam o paternalista braço das autoridades que se esmaga sobre todos nós, como se fosse um beijo de Cassandra. Há gente que não cresceu, mostrando os laços avivados de uma espécie de eterna adolescência: querem a carta de alforria, mas quando sentem que a maré vem contra convocam o auxílio paternalista de uma suprema autoridade. Neste caso, as autoridades existem – pensam os adoradores das autoridades de pulso firme – para prevenir grandes males. E para os reprimir, caso seja necessário.
Ao fim da manhã, quando o sol já ameaçava a saúde da epiderme, regressámos a terra. Do outro lado da ria, confirmei o bulício. A fila que se alongava pelo cais flutuante, subindo a escadaria até à rua, dobrando a esquina pela esquerda. As pessoas impacientes, sussurrando impropérios aos agentes pela demora a que não estavam acostumados. Entre o bordo do cais e as barcaças que nele atracavam, agentes da polícia marítima com cara de poucos amigos, ar tenso e, sem exagero, marcial. Faziam a contagem de quem saía das embarcações. E eram eles que substituíam os comandantes das embarcações na contagem dos passageiros que iam a bordo na curta viagem até à praia. Com gestos militares, voz de comando a que a turba tinha que obedecer sem esboçar a mínima objecção, tal era o ar ameaçador dos agentes em gratuita exibição de autoridade.
Se ali estivesse o "exemplar cidadão" que fora ocasional vizinho na praia, adivinho-o a destilar astutas lições de moral sobre a demora necessária suportada pelos veraneantes que se faziam à praia a horas impróprias (no entender de dermatologistas). Com aquele ar de nazi travestido de socialista, com o dedo erguido a defender as diligentes autoridades que só querem o nosso bem. E que, por tanto quererem o bem comum, ostentam autoridade para a prevenção de males maiores. Ensinaria aos relapsos, o "exemplar cidadão", que a imprevidência geral exige o punho de ferro das autoridades. Os veraneantes em demorada espera, no pino do sol que se fazia tórrido, aconselhados pelo "exemplar cidadão" a não serem comodistas. Um pouco de inteligência; como disse o "exemplar cidadão" na praia, de dedo erguido para sublinhar a assertividade das suas verdades, "é para depois as pessoas não se queixarem". Depois, supõe-se, é quando o mal tivesse acontecido.
Se ali estivesse o "exemplar cidadão" a dizer tudo isto, eu dir-lhe-ia que confio mais nos comandantes das pequenas embarcações do que nos zelosos agentes que passeavam a autoridade da farda (ou que passeavam, de farda, a autoridade – não cheguei a perceber qual das duas era). Os males acontecem, estejam as paternalistas autoridades de olhos bem abertos, ou estejam elas com a atenção desviada para os errados locais. Prefiro confiar na aleatoriedade das coisas do que na abusiva presença das autoridades convencidas que saldam as hipóteses de acidentes com uma fugaz, mas intrusiva, "acção de fiscalização".
Dispenso estas autoridades que se querem insinuar no seu paternalismo inevitável. Um paternalismo sufocante, como se fosse uma jaula que nos limita os passos. Mas o mal é meu, que confio demais no valor da liberdade. E não sei o que é pior: se ver os untuosos agentes da autoridade a cavalgarem num autoritarismo ainda mais perigoso por ter a caução da democracia; se "exemplares cidadãos" que esbracejam ensurdecedoras palmas quando são testemunhas destas "acções de fiscalização". Estes "exemplares cidadãos" são tiranetes em potência. Dêem-lhes uma farda e temos pela frente pequenos Estalines.