30.4.10

O preconceito do preconceito


In http://www.olhao.web.pt/Personalidades/AdrianoBaptista/cravo.gif
Era capaz de arranjar um cravo à lapela ao vigésimo quinto dia de Abril? E se confessasse a incapacidade para o fazer, apanhava logo com o rótulo anti-democrático (ou “fascista”, ou coisa que o valha)? E se alguém me olhasse de soslaio por não querer trajar cravo à lapela, quem seria o maior preconceituoso?
Admito a minha prenoção: talvez seja a embirração solene com tudo o que tenha odor a esquerda. A presunçosa cativação que as esquerdas fazem das celebrações do dia em que nos vimos livres da vetusta ditadura. Há símbolos que se ampliam para além da sua singularidade, ganham uma conotação que nos faz distanciar deles. Estava habituado a que só a malta das esquerdas enfeitasse o aprumado traje com cravos vermelhos em dia de festejos da revolução de Abril. Os de direita, contumazes no modismo floral. Cá vai a confissão: nunca usei cravo à lapela em dia algum.
Alguém pode jurar a pés juntos que não tem um preconceito – nem que seja um singelo preconceito para amostra? Às vezes, tiramos um tempo para repensar os pontos cardeais. É quando tudo fica em ebulição, à espera de saber por onde sai o pensamento quando se liberta do labirinto. Foi pena o vinte e cinco de Abril deste ano já ter passado. Nesse dia não vi televisão. Mas soube que nas já arcaicas celebrações da efeméride as novidades não se ausentaram: um punhado de deputados de “direita” ousaram dar utilização ao carnudo cravo vermelho, no que se fizeram acompanhar pelo presidente da república.
Só o soube pelas notícias em letra de jornal, no dia que se seguiu à efeméride. Dei comigo a interrogar os botões: “eras capaz de depositar cravo à lapela?” Aborrecia-me desfiar um pessoal preconceito por ter sabido que alguns deputados “de direita” tinham desfeito preconceitos em relação à revolucionária flor. Irritava-me ser assaltado por esta actividade sísmica do pensamento em desafio aos preconceitos por não me rever, nem ao longe, nas personagens que tinham mudado a agulha.
Levei a hipoteca do preconceito mais longe. Que interessa como nos olham, de fora para dentro, os que estão fora de nós? Que interessa que haja gente do lado detestável da barricada que arpoa o cravo aos seus interesses, como só eles pudessem envergá-lo em sinal identitário do lado certo da barricada? Nunca trouxe flor alguma pespegada ao vestuário. Outro preconceito? Naquela ebulição do pensamento desafiante fervia um abalo telúrico que se queria exprimir. A pergunta, tórrida como a lava de um vulcão reprimido, incendiava-se: “e se usasses um cravo no dia da revolução de Abril, temias que te olhassem como um (para ti) lamentável esquerdista?
Os preconceitos são apenas uma fina capa de verniz quando julgamos serem uma densa, intrincada rede que não conseguimos atravessar. São o produto de uma distracção. Ou um acaso das convicções, quando metemos pelos caminhos da servidão mental de quem arruma tudo em categorias herméticas, como se não houvesse lugares mais interessantes a visitar fora das categorias herméticas.
Convencido que pulverizara um preconceito, esbarrei numa implacável interrogação: e se a destruição de um preconceito faz nascer um preconceito de sinal contrário? E se forjamos a dissolução de um preconceito que o fora por tempo demorado só porque nos convencemos que há um chamamento interior a desmantelar esse preconceito? A dissolução de um preconceito é o magma que traz à superfície outro preconceito.
Destas masmorras não nos livramos. Vogamos entre preconceitos, empurrados de um lado para o outro pelo sopro dos ventos que de nós se apoderam. Os maiores preconceituosos, os que juram a pés juntos que não têm preconceito algum.

29.4.10

“As minhas cuecas (não) são cor-de-rosa”


In http://carpe-diem.typepad.com/photos/uncategorized/2008/04/18/empty_pockets_broke_destitute.jpg
A histeria nacional hasteada tão alto quanto a bandeira que, mandam os costumes, devemos defender até à morte. É que os “mercados”, essas malévolas entidades, estão a atacar a nossa dívida pública. Gritam quase todos, com o orgulho pátrio ferido: “isto é um ataque à soberania nacional” (essa vaca sagrada).
Por um instante, vou meter os remos na maré que compõe a entretela de mais uma teoria da conspiração. Diz-se, com a garantia das certezas pias, que os especuladores – mastins egoístas que enriquecem com o mal do povo – estão a atacar a nossa frágil dívida pública sem razão. Quase em estado de sítio, esboça-se o “bloco central”, esse miasma. Que banzé! Pouco falta para convencerem a turba que os cães raivosos que especulam e especulam e enriquecem pornograficamente nos estão a empurrar para o abismo. Para se alambazarem com a nossa queda no precipício. Outra vez: admita-se que esta teoria da conspiração não é teoria da conspiração. Não perdoaria os malfadados especuladores de cartola e fato tweed. Sobre eles, este labéu: à sua custa, a pior doença desta terra atiçada outra vez, o bloco central a soerguer-se. E Cavaco a exultar, a sua palavra preferida (“consenso”) em laboração frenética.
A ajudar à missa, depõem muitos sacerdotes de heterogénea origem com doses avantajadas de ofensa pátria e ideológica. Uma grande coligação contra os mercados. O truque para os apoucar é singelo. Os mercados estão loucos. É um ataque ao euro de gente que ainda não digeriu que dezasseis países tivessem escolhido a mesma moeda. É uma injustiça que estes abutres esvoacem sobre a dívida pública lusitana à espera que ela degenere em cadáver. Ouvimos à exaustão: nós não somos a Grécia, nós não somos a Grécia.
Não sei se é por ser liberal (portanto, a genética manda acreditar mais nos mercados do que nos políticos), ou se é por ser ingénuo, mas não embarco nesta tese conspirativa. Exaltamos o sentir pátrio quando nos fazem crer que a vaca sagrada da soberania está quase a ser hipotecada. Ai de quem furar o véu virginal da nossa soberania. Dantes eram exércitos estrangeiros que desciam a Europa para nos invadirem. As modernas invasões são insidiosas, não têm rosto nem rebentam com o estrépito de material bélico. As invasões que doem são as que se alimentam pela vontade dos terríficos especuladores sem rosto que ganham rios de dinheiro com um bluff que verga a espinha de países inteiros.
A ingenuidade que me consome pelas entranhas atira esta perplexidade para o ar: admitamos que não somos (ainda) a Grécia. E não podemos ser a próxima Grécia? Não farejam estes mastins a possibilidade de virmos a ser a próxima Grécia? Outro o prisma: se alguém que não tem onde cair morto nos pedisse um empréstimo, satisfazíamos o pedido sem nos acautelarmos – por exemplo, subindo a taxa de juro para compensar o risco mais elevado?
Quando um corpo está tomado por um vírus debilitante, as células fragilizadas ficam à mercê de outras doenças. As bactérias atacam os organismos fragilizados porque sabem que têm mais hipóteses de vingar. Esta metáfora não sugere que os especuladores são como abutres. Tenho outra leitura para o “ataque dos especuladores”: como o vírus ameaça alastrar a todo o corpo, o risco de doença aumentou. As agencias de rating limitaram-se a mostrar que trazemos cuecas cor-de-rosa, por mais que nos queiramos convencer que são de outra cor.
Está montada a histeria que arregimenta as facções à roda da sacrossanta bandeira das cores nacionais. Há muita gente a desviar os olhos da doença que conta. Só se já estivermos todos naquela barcaça onde de tanto se entoar uma mentira à exaustão, a certa altura ela passa a ter as cores da verdade. Só que umas cuecas cor-de-rosa são cuecas cor-de-rosa. Não nos queiram pôr daltónicos à força.

28.4.10

Um louvor ao touro


In http://images.mirror.co.uk/upl/m4/apr2010/5/2/jose-tomas-744120967.jpg
Só há prosa épica para toureiros? Escasseia a palavra nobilitante a glorificar o feito do touro. É o espelho de uma luta desigual. Nas arenas onde o touro se ajoelha no definhamento final, é isso que acontece mais vezes. Rareiam as vinganças do animal, quando se aproveita da distracção do toureiro e mete uma cornada que despedaça artérias vitais.
Passam pelos olhos fotografias de um toureiro colhido no México. Múltiplos takes, tirados por diferentes lentes. Os olhos dos fotógrafos muito atentos à coreografia sibilina. Eu diria, o solfejo de uma justiça divina (se disso houvesse). E apetece-me mergulhar num texto épico. De louvor ao bovino preto todo ensanguentado pelas bandarilhas já cravadas no dorso. Porventura há por aí humanistas e acenar em tom de reprovação: na dialéctica entre um homem e uma besta, temos que ficar sempre do lado do humano. Mais ainda quando ele fica à mercê da animalidade descontrolada e paga com o sofrimento estampado no corpo. A simples afloração de sentimentos humanos pelos que padecem de males diversos.
A hostilidade pessoal às touradas fermenta esta insensibilidade. Quero lá saber que me chamem nomes feios por desprezar o sacrossanto humanismo. Quero lá saber, sobretudo quando uns espécimes humanos deslizam para a mais grotesca das animalidades e a turba, talvez ainda mais animalesca, exulta. Admito sem temor: vejo com deleite as fotografias do toureiro na temerária aproximação ao touro cansado e, logo a seguir, o toureiro já sem a espada, a espada vomitada para longe pelo golpe traiçoeiro do touro enraivecido, a perna esquerda do artista a ser beijada pela haste do corno do bicho; outro take: o toureiro a voar, com um expressivo esgar de dor, a perna esquerda já a derramar abundante sangue na vestimenta cheia de lantejoulas; e ainda outra sequência: o matador já deposto no empoeirado solo da arena, uns ajudantes de volta dele a ampará-lo, todos eles conscientes da gravidade do ferimento.
Os olhos consomem aquelas fotografias. Mais que uma vez. Não há o menor rancor contra o animal diante das fotografias que consagram a vingança do touro. Já sei, por aí uns moralistas encanitados, outra vez de dedo em riste, a advertir com severidade: “a vingança é um sentimento aviltante”. E não são eles que afiançam que as bestas, em dose pura de irracionalidade, não têm sentimentos?
O matador esteve quase a ser o seu próprio algoz. Um golpe de asa do animal cerceou-lhe a espada treinada para seccionar a coronária vital do touro. Ao ir pelo ar, a espada ditou-lhe o destino. O aleatório destino que tratava de saber por onde iria entrar a afiada haste do touro, a espada em reviralho. Se há brutalidade naquelas fotografias, não é por o toureiro estar nas mãos do sortilégio de uma estocada. De uma estocada desta vez desferida por quem costuma ser a vítima. O palco e as suas circunstâncias aplacam a comiseração com o toureiro.
Não são os adoradores da moralidade que endeusam a justiça divina? Não são eles que olham para o lado e colocam os seus elevados padrões entre parêntesis quando a inocente vítima se rebela contra o algoz que empunha uma sangrenta espada de estulta superioridade? Deviam ser eles os primeiros a louvar a estocada do touro. A besta evitou que o toureiro fosse o seu carrasco. Adivinha-se o destino da besta que cometeu a ousadia de perfurar uma vital artéria do adestrador das bestas selvagens. Ao menos não foi ali, diante do público que devia estar exultante e, de repente, foi tomado pela apoplexia ao ver o toureiro a jazer no empoeirado solo da arena.

27.4.10

A biologia conta? (Opúsculo para irritar feministas)


In http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/2/2a/Igualtat_de_sexes.svg/180px-Igualtat_de_sexes.svg.png
Andava para aqui a ler umas coisas sobre cidadania quando esbarrei num capítulo sobre igualdade de género. Havia uma interrogação como ponto de partida: a cidadania moderna, sem preconceituosas desigualdades, tolera as desigualdades entre homens e mulheres que persistem para além do que já foi destruído pelas leis?
O resto do capítulo desfiava um relambório de autoras (invariavelmente no feminino) protestando contra a teimosa desigualdade que vitima as mulheres. Por mais que as leis queiram esbater as desigualdades, elas persistem – protestam as feministas. E já que se apregoa a igualdade à força, por decreto, lá para o fim do capítulo havia o contraditório. Os oponentes do feminismo não estavam ali na vez de zeladores da ancestral desigualdade de sexos. Tratavam de esboçar argumentos que desfaziam a febre feminista. Um argumento ficou na retina: podemos passar por cima da natureza? Como podemos forçar a igualdade se somos biologicamente desiguais?
Temos cromossomas diferentes. Nascemos com sexos diferentes. Mas não aceito desigualdades obtusas que são as sobras dos antepassados que se vangloriavam de “coisificar” a mulher. Eu não tenho culpa do que foi grotesco antes de mim. Nem estou para aqui de joelhos a suplicar a indulgência das feministas. As coisas são o que são. E, apesar não saber quem me irrita mais – se um marialva dos sete costados ou uma feminista de pelo eriçado –, não me tira o sono se o que vem a seguir merecer o labéu das feministas de serviço.
Lá vai disto: lia aquelas páginas onde se esgrimiam os argumentos tão politicamente correctos da seita feminista e os pálidos contra-argumentos que, ó heresia, nem deviam ser admitidos à estampa. Aquilo da biologia que diferencia os sexos entrava-me pelos olhos. Não há volta a dar: os cromossomas são mesmo diferentes; os sexos são diferentes (ou deixava de fazer sentido a palavra “heterossexual”); os homens, lamentavelmente, têm mais força física, logo, força bruta – e daí o lamento, pois os atropelos do passado em muito se deviam à supremacia física que os varões logo generalizavam num sinal de supremacia masculina generalizada. O que dirão as feministas acerca das competições desportivas que atribuem medalhas diferentes a homens e mulheres?
Ponto da situação antes de avançar: deploro os marialvas que ainda acreditam que são o “sexo forte”. Essa é uma competição absurda, sou-lhe indiferente. Que não me imponham a abjecção da “discriminação positiva”, senão passo para o lado das vítimas das desigualdades – e não quero. Mas não consigo deixar de ver as mulheres na sua diferença. Ao menos para me manter heterossexual (e não, não há aqui laivo de marialvismo).
Foi a natureza que tornou pródigas as fontes de diferença entre os homens e as mulheres. Os órgãos sexuais não são a expressão acabada desta diferença? Não os usamos? O falo, dominante, martelo pneumático que se incendeia de prazer, percutindo a vagina que se oferece numa passividade que o não é, mas passividade perante o frenético activismo fálico. É o sexo (no sentido de actividade) que perdura as desigualdades. E não me venham as mais inventivas com o livro do Kamasutra a provar que tudo depende das posições, que aquele binómio passividade/actividade pode ser virado às avessas. Uma gruta não é um ferrolho.
Havia um ponto de partida (as leituras que ando a fazer). Este é o ponto de chegada: o meu capital de sedução dissolvido em nada (como pode alguém distorcer assim o sexo?); e diagnósticos de indigência intelectual (quem faz a ponte entre o sexo e a biologia para defender as diferenças entre homens e mulheres é ignorante). É o preço a pagar quando se tem prazer em aborrecer as zelosas guardiãs do feminismo.

26.4.10

“Onde estavas no 35 de Abril?”


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjq8z_Vh6v7kMcld_c09VZ3ckcw2TF4ZPW5OCZw_fIn-3LHS_3UxbTA3k38zfzB6575E4QPsEBO_Pjseypw_i-uskV3nvMNgk0KOHjttdl7H88bV48rS1bZ7AuX54WWWKTlYZ-_2g/s400/2573715_rKqE6.jpg
O coronel (ou lá o que é) Vasco Lourenço sai da toca uma vez por ano, quando se festeja mais um aniversário da revolução de Abril. Quando abre a boca, costuma arrotar asneira. Desta vez veio proclamar que a democracia ainda não foi cumprida, que talvez estejamos a precisar de um novo vinte e cinco de Abril. Camarada Lourenço: vamos daí, puxa da agenda e marca a data para estarmos todos preparados. Já agora, esclarece os embrutecidos sem a destreza intelectual que te acompanha: qual ver ser o programa de festas? E ao que vens, camarada Lourenço, ao anunciar a urgência de uma nova revolução?
Não sei se será saudosismo do tempo em que carregavam G3 ao ombro. Ou nostalgia de braço dado com a adrenalina que os alvores da terceira idade já reprimem. Ao camarada Lourenço e outros que tais, apetece-lhes brincar às revoluções. A malta está insatisfeita com o andar da democracia. Se lhes perguntassem se isto está muito diferente dos hediondos tempos da ditadura salazarista e pós-salazarista diriam que não, que pouco se notam as diferenças. Todos temos direito à miopia que nos consome a lucidez. Revelá-la em público é um penoso arrastar dos ossos cansados que muito diz acerca da têmpera de quem o faz.
Eu gostava que o camarada Lourenço nos presenteasse com mais um pouco da sua elevada craveira intelectual. Do seu “pensamento”. Por que considera que esta democracia está tão doente que exige nova revolução.  E, se possível, o que devia ser feito para extirpar a doença que se apoderou da democracia. Se é daqueles que se indigna contra as manobras do primeiro-ministro e trupe para limitar a liberdade de informação, alguém explique ao camarada Lourenço que o sintoma é de doença mas que andamos longe de ver a democracia ameaçada. Se o camarada Lourenço é daqueles que destila azia de cada vez que há eleições e o povo, o ignorante e ingrato povo, vota demais em partidos “de direita”, é o camarada Lourenço que precisa de uma reciclagem de ideologia democrática.
Ver estes arautos da “verdade”, como chamam a si o papel de tutores do povo – como se ser de “esquerda” (de uma qualquer modalidade de esquerdas) fosse a garantia genética de defender os interesses do povo – faz de mim um tipo de direita. De uma direita qualquer. Desde que não seja de uma destas esquerdas que reivindicam o monopólio da verdade, a imperatividade de determinados categóricos, a perplexidade quando notam que há quem deles discorde. Diante de tamanha persporrência, perante o estado avançado das verdades categóricas e imperativas, nem vale a pena qualquer doutrinação ideológica para ser de direita. De uma direita qualquer. Talvez a revolução com que o camarada Lourenço sonha desaguasse numa semi-democracia (que para ele seria a democracia perfeita). Os partidos de direita, proibidos de existirem e de concorrerem a eleições. Por fim, o povo seria todo de esquerda. Pois não há outro destino possível: a genética manda que o povo seja de esquerda. De uma esquerda qualquer.
A cada um o seu particular significado do vinte e cinco de Abril. No fundo, há inúmeros vinte e cinco de Abris para celebrar. O meu é este: o vinte e seis de Abril que arrumou num túmulo as tentativas para regressarmos a vinte e quatro de Abril pela porta do cavalo e pela janela do lado esquerdo. É o vinte e seis de Abril que dá palco a aberrações como o camarada Lourenço. No anual cortejo de grotescas figuras reumáticas que ostentam o garbo de quem acha que sem elas não haveria democracia, fico dividido nas reacções interiores. Por um lado, fico contente que estas vetustas personagens possam protestar contra a democracia que lhes dá palco. Adianto eu: o regime é tão pouco democrático que se lhes coloca um microfone à lapela para que se possam livrar da diarreia mental uma vez por ano. Por outro lado, os festejos da democracia mereciam melhores intérpretes. Quando se consagra a demissão da ditadura e aparecem estas vetustas (e, até, patuscas) personagens, sinto-me acossado: sinto que esta democracia sofre de envelhecimento precoce.

23.4.10

Recontagem – segunda opinião


In http://www.knitwareblog.com/wp-content/uploads/2008/05/numbers.jpg
A tirana dos números, como lhe damos a volta? Os números trazem consigo as algemas da exactidão. Ao contrário, as palavras são um viveiro de subjectividade. As palavras – as mesmas palavras – enfeitam-se em sentidos diferentes através da arte da hermenêutica. Mas um número é um número, sem admitir malabarismos que torçam a sua leitura. Podemos não gostar do que os números nos contam. Conhecemos truque que leve ao desmentido dos números só porque aclaram o que nos é desconfortável?
Fazemos testes de controlo. As contas outra vez. Agora, cuidado redobrado, os olhos esbugalhados de atenção. Pode ser que à primeira tentativa tenha havido uma distracção pelo meio, a contagem traiçoeira dos muitos números que se atropelam no cavalete de onde são lidos e metidos dentro da máquina que faz as incontáveis operações por nós. Por sinal, na repetição os números que aparecem diante dos olhos, os números em jeito de conclusão, são invariáveis. Estará a máquina avariada? Se não estivéssemos à beira da apoplexia porque os números pincelam desagradáveis teses, não seríamos atraiçoados pela dúvida suicida. Fomos educados a não duvidar da perícia das máquinas (outra tirania dos números).
O melhor é pedir outra opinião. Outro par de olhos a inspeccionar os números teimosos. A desconfiança esconde descontentamento. Se fosse desconfiança, era da nossa incúria. Podem-lhe chamar: falta de fair play. Como se tivéssemos entrado num jogo e, arqueados pelo peso da derrota, teimássemos em recusar o desenlace. Ou olhássemos para o médico sentado do outro lado da escrivaninha, naquele consultório frio e impessoal, e desafiássemos o diagnóstico lancinante acreditando na sua ineptidão. Pedimos segunda opinião.
Os outros correm os números na nossa vez. Testam-nos, na sua imensa bondade, piedosos com o sobressalto que nos asfixia o raciocínio. O impasse é de tal ordem que tudo parece ter-se tornado inerte enquanto o segredo não deixasse de o ser. A pior das dores é a que se oculta no manto de ilusões que se ensaia. As alucinações são o engodo em que os números, na sua implacável exactidão, não caem. A pior das dores: dissolve a lucidez. A certa altura, sobeja uma tremenda confusão. O instrumento, o meio para chegar algures, passou a ser objecto de intrigante devoção.
Mas os números são os algozes que apenas admitem a asseada exactidão. São a antítese da mentira. Um inatingível castelo onde apenas repousa a negação da impostura. Denunciam os desonestos que manobram os números quando destilam as cores que sejam antipáticas. Assim que os números entram pelos olhos, já não há retrocesso. Nem que o arrependimento se simule nos erros de método, a reapreciação das contas mudando as regras só na fantasia de os números finais anunciarem o embelezamento de uma teoria que procura alicerces.
Na lógica dos números escorregam todos os que deles não gostam e, sem se conformarem, os querem torcer. Era como se um sete passasse a ter as arredondadas formas de um oito, ou pudéssemos ler no triangular três a opacidade de um zero. É por isto que não gosto de números. Eles são a imagem do céu que atravessa os dias na sua cansativa claridade. Fica tudo à mostra, a imaginação castrada na democrática revelação das coisas. As palavras, ao menos, desmembram-se na multiplicidade de tons que se compõem quando as nuvens derrotam a claridade do céu. As palavras são um archote que ensina mil e um caminhos que se põem à frente dos pés quando estes querem sair do labirinto.
E se aos números é vedada a recontagem – a herética recontagem –, às palavras todos os sentidos são possíveis, na planura das palavras literais ou nas entrelinhas descobertas pelo empenho da paciência. Os números proíbem a recontagem. As palavras compilam as infinitas recontagens.

22.4.10

O capitão da espada desembainhada


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhvYXZa4Wi0umaP2oTTTxTIxGO0igSumvLd_5WuvrJv1hJ_aKiKw99QBIdT7rdqbh30QcwBBcyKEihMwtNCjhcJJJEEhIQLfFwZ0isZHr0RnDvkrlH7CAJjG3Dd2LZ7iQAIJXuh/s400/iaido+2.bmp
Errava pelas ruas, fatiota aprumada do mais alto tenente mareante. Olhares altivos a quem passava convocavam ao respeito pela patente. Os passeantes, ignaros ou alienados, devotavam a irrelevância dos mortais ao capitão de mar e terra. Podia ser que o fosse, mas apenas quando a maresia se apoderava da paisagem em volta, o único farol visível na imensidão do oceano sulcado pelo navio.
O capitão compunha pestanas iradas. Nem a farda aprumada, a farda folclórica, ou o obtuso chapéu, eram chamamento para os transeuntes. À cintura, a espada revolvia-se, suplicava para ser desembainhada. Podia ser que o respeito aterrasse no lugar onde era reclamado. Então talvez todos olhassem para o garboso capitão, as unhas esmaltadas cravadas na base da espada, a pose ameaçadora. Seria tomado por demente; ninguém acreditaria na patente. O ar tresloucado com a espada dúctil era a aterradora circunstância de quem a estivesse testemunhar.
Andaria pelas ruas – imaginava o capitão desdenhado –, a ponta afiada da espada em piruetas que desenhavam as suas próprias circunferências no ar. Como se deixasse um rasto com as gritadas palavras de protesto na ponta da espada a sulcarem a transparência do ar. Lívidas, as pessoas à sua passagem. Ninguém esboçaria um insano, heróico acto de detenção do capitão embebido na sua interior fúria. Continuaria a ser tomado por demente. Nem o impecável fardamento onde reluziam medalhas de bravura em batalhas idas era convencimento da sua lucidez. Talvez as pessoas julgassem que o louco se escapara do hospício e, por um insondável mistério, se apoderara do fardamento militar. Outros, imersos numa teoria arrevesada enquanto se debatiam com o pânico, julgariam que a ensandecida personagem alugara fatiota carnavalesca e se enganara no calendário.
Só o capitão sabia que não estava à beira da demência. Os deuses que o acompanham estariam ausentes, a falta de lucidez a esbracejar onde só se conhecera sensatez. Por um instante de loucura, uma vida inteira quase a ser espoliada. Desatara a destruir a vegetação do jardim. Degolara um cisne que deslizava entre os nenúfares. Gritara, com uma voz cavernosa, uns bramidos ininteligíveis. Temerosas, duas velhinhas correram para longe, também elas soltando gritos estridentes de pavor. O capitão, em pose marcial, balançava a espada de um lado para o outro, levantando um silvo com o metal cortante a despedaçar o ar que se atravessava.
Não tinha guarnição para obedecer. Nos longínquos mares por onde o navio se demorava semanas a fio, só existia uma temerária, obediente tripulação. O capitão já não se lembrava o que era ir a terra. Quando o navio aportava, exilava-se no convés fazendo companhia a uma garrafa de brandy. Estava desabituado a ser um comum mortal. Uma pulsão suicida apoderou-se. Era a falta da veneração a que estava acostumado. A gentalha haveria de descobrir, nem que fosse pelos piores modos, que uma farda é uma farda porque merece respeito. São poucos os habilitados a trajar farda e a empunhar a ancestral espada, o catalisador da autoridade dos predestinados. Era impensável que a gentalha fosse insensível. Que se tornasse sensível pelos argumentos da força.
Continuava o caminho errante, afogueado, possuído pela visceral fúria que decantava pelas ruas da cidade – pelas ruas já desertas. O palco esvaziado. Olhou para todos os lados. Espreitou em esquinas só para saber se alguém, em temerária desconfiança, não espreitava os seus endemoninhados passos. Não havia vivalma. Prosseguiu ao acaso. Três passos à frente estava o cais, o retemperador mar por diante. Recolheu a espada e compôs os cabelos que se desgrenharam com o destempero. Subiu a escadaria do navio, onde estavam os subordinados de serviço a retorquir com a continência imperativa.
No dia seguinte, ao acordar, os lençóis eram um espremedor do seu suor. Inerte, com as costas amparadas na base da cama, a interrogar-se onde estaria a realidade.

21.4.10

Bem-vindos à realidade


In http://www.santoobama.com/images/santo.jpg
Santo Obama está quase a perder a coroa de santidade – se é que já não a perdeu, a atestar pela desilusão de muita gente que lá nos Estados Unidos (que é onde interessa medir se as pessoas gostam de quem as governa) afirma em relação ao presidente que ainda mal aqueceu o lugar. Os aduladores do messias lêem, a contragosto, a notícia. Ou talvez não: admita-se que até eles entraram em rota de colisão com a excruciante decepção. Também eles contavam que tudo mudasse – e para melhor. Ao menos comprazem-se que já não têm que aturar o imbecil Bush Júnior.
A realidade é uma merda, porém. É ela que tem culpa que o prometido messias tenha fracassado em várias esquinas da história. É aqui que apetece glosar quem alguma vez advertiu que as palavras vão no vento que sopra. Os especialistas das relações internacionais chamam-nos a atenção: temos que pôr os pés no chão. É o “realismo”. A política feita dentro da dos limites do possível. Quando chega o momento de aterrar das ilusões debruadas por palavras encantatórias, o possível está muito longe do desejável – e do que foi prometido.
Admito que Santo Obama continua a hipnotizar um numeroso séquito, sobretudo nos países que não têm voz sobre os assuntos da política dos Estados Unidos. Ao que consta, lendo aquela notícia, mais e mais gente vai passando para a barcaça que aloja os desiludidos, os que já dissolveram a coroa de santidade do agora simplesmente Obama. Talvez já tenham percebido que era um falso messias. Um mero produto de marketing político com a sorte adicional de ser o sucessor do desastrado Bush Júnior. A predisposição para acolher o “senhor que se seguia” explica o entusiasmo da multidão enfeitiçada. Nunca hei-de esquecer o périplo de dois excitados jornalistas lusitanos na noite dos festejos da vitória de Santo Obama. Até parecia que tinham votado nestas eleições. Ia jurar que os jornalistas deviam ser imparciais, mas porventura as regras do bom jornalismo já mudaram e eu ainda não dei conta.
Detesto ter a presunção de ser o dono de um qualquer oráculo. Para os adoradores da “verdade” (assim mesmo, grafada de propósito), isto: não me encho de contentamento ao ver como esmorecem, um atrás do outro, os outrora aduladores de Santo Obama. Uno-me na sua dor, pois as decepções alheias não são motivo de rejubilo. Se há prazer que retiro da notícia que faz saber que lá nos Estados Unidos cresce a desilusão com Santo Obama, é porque se iniciou o processo que vai reverter a beatificação da personagem. De resto, a minha sentida solidariedade com os desiludidos que, não sei se será sintomático, andam entretidos com outros temas e parece que se esqueceram que há um presidente negro, cool e muito modernaço nos States.
O deleite sublime é imaginar as reacções de desprazer dos outrora aduladores de Santo Obama de cada vez que anotam de uma decisão que contraria as promessas messiânicas. O seu silêncio é ensurdecedor, o protesto silencioso tornado audível mercê da omissão do panegírico constante que fazia tangente a uma hagiografia a destempo. E gosto de sentir que foi quebrado o consenso bem pensante, imposto por aqueles observadores atentos que entendiam inadmissível não ser cultor de Santo Obama. Desapareceram do mapa, mergulhados nas águas embaciadas do seu próprio silêncio. Por fim, não fica mal não gostar de Obama (sem a aura de santidade, como é óbvio).
Os vendilhões das promessas com o papel de embrulho messiânico esbarraram na desagradável realidade. É que os sonhos não têm cabimento na cruel realidade. Bem-vindos à realidade que tanto dói.

20.4.10

Saltimbancos de água


In http://publico.pt/
Da mais pura inveja. Aquela coreografia de corpos juvenis que se entregam a piruetas antes de desaparecerem na água. Não é difícil ver nos saltimbancos destemidos o alheamento de tudo, apenas a entrega nos lúdicos afazeres em que se entretêm. Daí a mais pura inveja. Por nada os pôr em sobressalto. Não sabem, não querem saber, que há jornais que se incendeiam todos os dias com as notícias pungentes oferecidas pelo mundo em andamento constante. Ou, também se podia assim compor, das notícias miseráveis que incendeiam o mundo, tornando-o ainda mais insuportável.
Aqueles adolescentes apenas se querem refrescar e treinar as circenses piruetas que alimentam a adrenalina. Não são estouvados. Passam horas nisto, um mergulho atrás do outro, umas braçadas na água tépida até porem os pés nas hastes de madeira que fazem as vezes de trampolins. Rivalizam, os rapazes, no mergulho mais demente. Experimentam toda a espécie de mergulhos, desde os que já outros inventaram para eles aos que eles próprios se gabam de serem inventores. Não lhes diz nada a voragem das crises que consomem bem-estar, ou as diatribes de políticos que se fazem passar por muito respeitáveis personagens, ou a excitação dos espectadores em arenas desportivas, ou coisas tão banais, e porém para eles tão irrelevantes, como a justiça, ou a ética, ou a decência, ou, a pior de todas, a razão.
Os cinco rapazes ensaiam uma coreografia que se intui sincronizada. À voz de comando de um deles – o que se faz por passar por maestro – saltam ao mesmo tempo para lugares contrários, em saltos desconexos. Não é uma sinfonia harmoniosa. Um grupo de gente ajuramentada nos caprichos da modalidade ditaria a avaliação medíocre do salto, com todos os cânones em desacerto na libertária exibição dos cinco rapazes. E, todavia, se há salto que merecia levar a palma nas olimpíadas da atonia era este. Uns saltando de frente para a água, outros de costas, alguns com braços estendidos, outros com o tronco dobrado sobre si, uns devorando a adrenalina de olhos abertos, outros com temor cerrando os olhos. Sem haver um único rapaz a repetir o salto do outro. Combinados para serem o retrato da diferença num gesto tão banal. Cinco diferenças uns dos outros.
A luz embaciada, porventura o belveder onde os olhos contemplam o dia no seu ocaso, é o pano de fundo para o tresloucado folguedo dos rapazes. À sua maneira, a consagração de um dia que foi só deles, como se não houvesse mais ninguém que importasse existir. Em fértil exaustão do corpo infatigável, o corpo que não se cansava do banho nas águas tépidas. A noite haveria de vir, ainda antes das sombras que escondem as formas dos corpos cederem o passo à penumbra na sua plenitude. Os rapazes ali, afogueados por um cansaço que não cansa, sem as ilusões de um mundo que não deixa de andar para trás.
À noite, os rapazes meteram-se por dentro do sonho dos mergulhos encenados em assíncronas coreografias. O seu Olimpo era o maior de todos: eram os estetas do hedonismo, os radares todos desligados, a bússola avariada que não deixava discernir os pontos cardeais. Naquela penumbra que deixava à mostra apenas os contornos dos corpos, habitava toda a essência do que importa. Os corpos esquálidos, tisnados pelo sol impiedoso, por eles escorrendo as gotas que embalsamavam a felicidade mais pura.
Se calhar, pelo meio da noite, quando ela já se fazia alta na madrugada silenciosa, encontrávamos os rapazes no interminável bailado dos mergulhos cabriolas. Sem se assustarem com a noite escura, ou as tempestades tropicais que desarranjavam os elementos com ventos e chuvas num pé de dança enfurecido. Apenas sobravam os mergulhos numa embriaguez de contentamento puro.  

19.4.10

Os ratos de sacristia e os pavões do anti-clericalismo embrulhados no mesmo caixote do lixo


In http://autobrasil.files.wordpress.com/2008/04/papamobile.jpg
O papa vem cá um dia destes. Alvoroço. E não é só entre os católicos, naturalmente excitados com o guru supremo da sua crença. Também andam alvoraçados os fieis do anti-clericalismo. O cavalo de batalha é o protesto contra a tolerância de ponto oferecids pelo governo aos funcionários públicos (viva, portanto, a igualdade) nos dias em que “sua santidade” andar por aí a anunciar a boa nova.
É curioso: fala-se tanto da guerra de civilizações, o fermento do conflito latente que mais nos preocupa; fala-se de um antagonismo provocado por crenças diferentes, maneiras diferentes de arquitectar uma civilização, quase sempre montadas (as civilizações) no estirador de entidades divinas diferentes. E esquecemo-nos que é dentro de nós, neste antagonismo entre católicos e anti-clericais, que germina o conflito. Deus por toda a parte. Para uns, porque existe e é dogmaticamente seguido. E para os outros, que do lado contrário da barricada insistem em negar a sua existência e movem uma guerrilha aos crentes.
Como ateu convicto, sinto uma ternura pelos católicos quando são atacados de forma aviltante pelos anti-clericais de serviço. Uma paradoxal ternura – e disso não passa. Não perdoo os abutres anti-clericais que alinham no mesmo tipo de irracional fundamentalismo em que nidificam muitos dos que acusam do alto da sua soberba intelectual. Se é que podíamos dizer que há uma causa (o que seria um contra-senso: o ateísmo não pode ser uma causa, é um modo de vida cingido à individualidade do ser), a excitação anti-clerical é o melhor aliado dos católicos. A imbecilidade de muitos sacerdotes anti-clericais é um convite à, pelo menos, simpatia com os católicos.
Não é que os católicos, acossados pelos detractores, reajam com menos imbecilidade. Por ocasião da generosidade governamental decretada para os dias de visita papal, os adversários criticaram a deferência e os católicos aplaudiram-na. É compreensível que os católicos se sintam recompensados. Não têm que meter um dia de férias para a homenagem do chefe da igreja a que pertencem. E, lá no seu íntimo, sentem que venceram uma batalha aos adversários. Os anti-clericais espumam raiva. Acham intolerável a tolerância de ponto. Acusam a capitulação do Estado e uma traição à Constituição, pois vem lá escrito que este é um Estado laico. De regresso ao lado oposto da barricada, os católicos empenham-se em oferecer um argumento risível em sua defesa: perguntam aos assanhados ateus se não aproveitam os feriados religiosos que estão espalhados pelo calendário. Como se um feriado se confundisse com uma tolerância de ponto.
Já não há paciência para estas guerras de alecrim e manjerona. Não me pronuncio sobre os argumentos que, em pose vitoriosa, os católicos esbracejam. Como ateu dos quatro costados, magoam-me os abstrusos ataques dos anti-clericais. Se ao menos entendessem que ir ou não trabalhar nos dias de visita papal é uma decisão individual, talvez não dessem para o peditório de uma polémica que só tem o condão de reforçar as trincheiras do catolicismo bafiento. Mas isso é pedir muito a esta seita habituada a frequentar os salões da maçonaria. São educados nas virtudes grupais, do indivíduo que sucumbe diante das prioridades do “interesse da sociedade” (essa abstracção). Não se lhes pode pedir que raciocinem como indivíduos, pois são educados para seguir a matilha.
A lamentável polémica que não passa de um epifenómeno teve o mérito de colocar sindicalistas, uma vez na vida, ao lado dos interesses dos empresários. Ficaram indignados com a oferta de tolerância de ponto, pois como a crise é teimosa não faz sentido desbaratar uns dias de trabalho só porque temos papa entre nós. Pode ser que o vulcão islandês, o vulcão de nome impronunciável, continue a vomitar lava e cinzas e impeça a visita de “sua santidade”. Para matar a polémica de vez, com um sentido agradecimento ao vulcão de nome impronunciável.

16.4.10

Palavras tabu, ou a hipocrisia dos actos


In http://www.evora.net/bpe/Linfo/images/3_escrever.jpg
Por dentro das palavras encantatórias, das palavras que falam através da escrita. Das palavras surdas no apelo da voz. Quantas vezes há um abismo entre as palavras que encenam a sua própria coreografia numa folha de papel e essas mesmas palavras guardadas no vácuo do silêncio? Logo elas, que deviam ser sussurradas docemente a quem as merece ouvir, ou gritadas de pulmões abertos pelo merecimento de quem as não chega a escutar.
Esboçam-se as palavras que embelezam sentimentos, as palavras que perfumam estados de espírito. Amontoam-se num harmonioso quadro. Tecem-se numa melodia fascinante. O amestrador das palavras está para elas como o domador da serpente enquanto toca a flauta que hipnotiza a sua dança maquinal. Na solidão das palavras que apenas se escrevem, toda a coragem do mundo, o peito aberto e os ouvidos surdos à reprovação de quem as ler. É um acto de isolamento. Do amestrador das palavras e do leitor. Ao que importa ao coreógrafo das palavras: na ausência de si durante a leitura das suas palavras por quem as lê.
Tudo se compõe no libertário acto da escrita. Não há algemas que cerceiam a composição. As ideias procedem na sua espontaneidade. A libertação é sublime porque no refúgio da escrita está o lugar onde todas as palavras, mesmo as proibidas, ou aquelas que provocam o desconforto de quem as lê, todas as palavras trepam as barreiras das proibições. Podem essas palavras conter-se na inércia da voz, a língua travada pelo pudor de as proferir diante de quem as merecia escutar. Por cima das ameias mais altas que fortalezas mentais possam erguer, as palavras que se espraiam numa folha de papel sobrepõem-se ao agrilhoamento interior. Uma pulsão libertária.
As palavras que só falam através da mudez da escrita escondem um envergonhado pudor. São aquelas palavras que se refugiam em tabus. A menos que alguém, estouvado ou provocador, arremeta contra a maré dominante e use as palavras-tabu a contragosto dos demais, aprisionamos a coragem nas intenções que esbarram na hipocrisia. Dizemo-las, essas e outras palavras, através do conforto da escrita anónima, o sacrário do isolamento onde não há lugar à reprovação de quem as escuta, ao seu esgar de transtorno.
E chega-se ao dilema fatal: a escrita libertária, a escrita que compõe as palavras tabu irrompendo contra a báscula implacável do pudor que as silencia, não é acto de coragem. É o perfume indelével da impostura. Essas palavras só são entoadas na mudez do papel onde se desalinham. Não são palavras ditas com o sabor da viva voz. Escondem as dores de parto na impessoalidade de um papel que deixa de ser uma folha branca por causa das desassisadas palavras ali confiscadas.
Há certas palavras, daquelas palavras que em nós se fazem palavras-tabu, que têm pessoas para as escutar. Refugiamo-nos na inércia do silêncio. Ou, talvez pior, só se destapa a coragem, a falaciosa coragem, de as coreografar através da escrita. Somos prisioneiros da palavra escrita e devedores da palavra dita. Neste dilema que sangra por dentro, quem as devia escutar é credor da nossa indulgência e penhor da nossa impostura. E não conta estarmos convencidos que há silêncios que entronizam a cumplicidade, esses silêncios valendo mais do que um milhar de palavras, simples ou arrevesadas, em pose poética ou em forma de prosa. Engolimos essas palavras num silêncio que nos atira para o precipício da insensibilidade. E não, não conta o fermento dessa sensibilidade levedado na poética que se congemina.
As palavras que são tabu: deixam de ser sentidas, ou deixa de fazer sentido desgastá-las de tanto as dizer?

15.4.10

Nitin Sawhney feat. Reena Bhardwaj, "Ek Jaan"

EN1


In http://www.prof2000.pt/users/avcultur/Aveidistrito/Boletim31/Imagens/page61a.jpg
Depois de um opíparo almoço perto do Mondego, hora de abalar de Coimbra. Havia um pedaço de tempo por ocupar se metesse pela auto-estrada e demorasse nem uma hora a chegar a casa. E se deixasse o sossego veloz da auto-estrada e metesse uma cunha às recordações, só para resgatar do baú das ditas a pouco saudosa “nacional um”?
Seria o retrato de um regresso ao passado por dentro do presente. Ou uma digressão às sobras do terceiro mundo que ainda há em nós. O carro ao caminho. Em velocidade aceitável e sem trânsito, os primeiros quilómetros. Começava a ficar surpreendido. E desconfiado. Ouvi e li relatos do pesadelo em que esta estrada se tornara, uma espécie de arruamento constante entre as muitas localidades atravessadas pela “nacional um” – as localidades entretanto expandidas ao longo da estrada, canibalizando-a.
Só foram dez minutos de estranho sossego e de velocidade inesperada. Depois aterraram os pesadelos que as palavras sábias já vieram descrever. Uma profusão de rotundas, semáforos para quem vem das estradas secundárias ganhar prioridade na entrada da “nacional um”, ou semáforos que se acendem mal o velocímetro pisa os cinquenta e um quilómetros por hora. Muitos camiões afugentados das auto-estradas pela exorbitância das portagens (contenção de custos oblige – ou a versão rodoviária do “isto é a crise”). Numerosos restaurantes de beira de estrada, desde os que ainda conservam o charme anacrónico, aos que regurgitam a ostentação de novo-riquismo, ao “Restaurante Zé”, simplesmente Zé, escondido nos arrabaldes da estrada, num plano inferior, sintomaticamente num plano inferior. Às vezes, quando o arvoredo denso quase coloniza as bermas da estrada, umas mulheres roliças e pouco vestidas aliciavam clientela com a sua pose sugestiva. À minha frente, um camião parou de repente, sem aviso, as hormonas do condutor excitadas pelo além prometido pela meretriz de borda de estrada que fazia paragem naquele marco quilométrico.
Na EN1 tudo acontece devagar. Os camiões arrastam o seu peso, delongam-se num passo de caracol que prolonga a fila de carros atrás. Não sei se exagero: para além dos inumeráveis semáforos e rotundas espalhados pela “nacional um” fora, são mais os pedaços de estrada marcados com traços contínuos do que as zonas de livre ultrapassagem. Os quilómetros escorrem, com lentidão. A distância que nunca mais passa encarniça a impaciência. Na EN1 os ponteiros do relógio andam atrasados, como se neles se condensasse um empoeirado retrato de antanho, de quando a estrada era rainha para quem se quisesse pôr de Porto a Lisboa. Ainda sou do tempo em que os curtos pedaços de auto-estrada iam de Lisboa a Vila Franca de Xira e depois só dos Carvalhos ao Porto. Um punhado de quilómetros que deixavam nos viajantes uma saudade do futuro que são os dias que hoje vivemos, nesta terra prolixa em auto-estradas. Um sítio de exageros, é o que somos.
Fartei-me da jornada pela datada “nacional um” quando cheguei a Oliveira de Azeméis. Já viajava há mais tempo do tempo que me leva a percorrer a veloz auto-estrada de Coimbra ao Porto. E como a impaciência recrudescia a cada quilometro exasperadamente lento por causa de mais uma rotunda, ou de um semáforo no meio de uma localidade que acantona a EN1 numa apertada congosta, ou de um camião TIR com certeza em excesso de carga a arrastar penosamente os rodados, fugi da EN1 quando uma placa, num azul vivaço, prometia a auto-estrada meia dúzia de quilómetros adiante.
Há quem se aventure na antiquada “nacional um” para poupar os tostões da portagem que os concessionários das auto-estradas cobram. Eu gostava de ter a mesma paciência de chinês e menos desamor ao dinheiro. E não sei se a patologia que me consome se confirma – a de sentir apenas saudades do futuro que está por vir.

14.4.10

Beijos


In http://images.clipartof.com
Está bem: por estes dias a imaginação não se atrofia para inventar o dia disto ou o dia daquilo, mais ainda o dia daqueloutro aspecto que tinha ficado no olvido. Ontem foi o dia mundial do beijo. Ou ando desatento e nunca tinha dado conta que o beijo também tinha direito a farra mundial, ou os zelotas da informação (os jornalistas) ainda não tinham reparado na efeméride marcada num qualquer almanaque, ou 2010 vai ficar nos anais por ter convocado o mundo inteiro a fazer, pela primeira vez, a sagração do beijo ao décimo terceiro dia do mês de Abril.
Palco para os especialistas. O beijo está bem e recomenda-se. Aliás, os especialistas (sexólogos, urologistas e psicólogos com especialidade no ramo) recomendam que pratiquemos o beijo amiudadas vezes. É só vantagens. Queima calorias, pois são muitos músculos que se mexem quando beijamos alguém. Faz bem à auto-estima, pois quando invadimos outra pessoa com um beijo e ele não é recusado, os galões da auto-estima enfatuam-se a um altura impressionante. E alivia o stress, essa doença invisível que, no parecer de psiquiatras precisados de abarrotar o seu divã com clientes (perdão, com pacientes), não há vivalma que a não tenha. Nem anti-depressivos, nem ansiolíticos, nem drogas do género. Ele há remédio mais natural que um beijo?
Alguns especialistas anunciam que um beijo é melhor que o sexo. Ora, depende de quem dá o beijo e do sítio onde o beijo é depositado (e, já agora, do desempenho dos parceiros no capítulo sexual). Se tomarmos isto à letra, ainda temos um dia destes a santa igreja a protestar contra os beijos em público. É que nunca se pode adivinhar as sensações interiores que percorrem um mortal pecador quando este oscula alguém. Para cortar o mal pela raiz, proíbam-se os beijos em público já que nos garantem que podem distribuir sensações que exorbitam as que temos com o sexo.
Fiquei sem saber quem determinou que ontem passava a ser dia reservado à celebração dos ósculos. Tem a chancela de uma agência da ONU? Foram os jornalistas que inventaram a efeméride? Ou uma coligação internacional de interesses ligados ao turismo, para reforçar o romantismo que parece só ter lugar quando Fevereiro manda dizer que S. Valentim é o protector dos enamorados e do romantismo nem que seja por um singular dia no ano. O convite ao romantismo é um filão para a indústria do turismo. Na certa, pelo menos um manjar à luz de velas, com guardanapos ornamentados por lábios em forma de beijo, a mão pela mão e, pelo andar da carruagem, uma noite de incandescência nos lençóis acetinados de um hotel de charme. Desisto da divagação: ainda desconheço quem inventou no calendário um dia mundial para o beijo.
Mas o beijo pode ser uma coisa terrível. Se for roubado, por exemplo. Devia haver o crime de violação por ósculo furtivo, com direito a cadeia. Os anglo-saxões é que a sabem toda: aposto que a tradicional frieza, eles que não são atreitos ao cumprimento pelo beijo (nem entre mulheres), se explica pelo temor das bactérias que adejam as protuberâncias labiais. Ou o contrário: podemos não ter os beiços conspurcados por microrganismos bacteriologicamente impuros e regressar de um beijo com os beiços carregados de invisível bicharada se acaso o rosto (ou o que quer que seja) que beijemos seja um lugar infecto. O que me traz à perplexidade do dia: não percebo como tornamos compatível o dia mundial do beijo com a assepsia em que somos educados a viver.
Ontem, por causa dessa coisa insólita que é a existência de um dia mundial do beijo, ao menos aprendi que a “filematologia” é a ciência que estuda o beijo. Só fiquei sem saber se trezentos e sessenta e cinco dias de um calendário ainda chegam para festejar os dias mundiais de tudo e mais alguma coisa. 

13.4.10

O que vale uma contradição?


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhDileGEkZ_DLwklNqhLqCSmh8ZgI2A2XyflDKystrLijaAJf0Uw2sQXxRY6qZxTzRLsE3YYE-ZkTKvrmhgwG9EZSaoQoSqT-VjgjKZ2RYO-1QeyxBUrOy_BtEFiOVUhyphenhyphenRC-OdM/s400/Paradoxo.jpg
E se as formas que parecem tão nítidas contivessem em si o seu contrário? E se nem tudo tivesse as propriedades que julgamos? Há categorias bem definidas, com uma nitidez resplandecente – como se a ninguém fosse permitida a ousadia de contestar o significado dessas categorias que arrumam o universo das coisas em gavetas cheias de organização interna. E, todavia, tropeçamos constantemente na negação da bondade dessas categorias. Do raciocínio circular, sobra a interrogação: serão as categorias tão lineares como as supomos?
Educam-nos – e aprendemos pelo tempo fora – que a indisposição é um mau sintoma de algo. Às vezes, a patologia é imaginada. Outras vezes, a patologia parece fabricada. Um atroz artificialismo. Parece que nos cansamos de “estar bem”. É como se “estar bem” deixasse de fazer sentido. O próprio conceito esvaziado por dentro, esventrado até às entranhas para deixar um nada à mostra. A prolongada exposição à bondade dos elementos retira significado ao bem-estar que seria diagnóstico. Mergulhamos na antítese. É como se a atmosfera se tornasse tão purificada que o prazer desaparecia, o ar asséptico um tédio para os prazeres. Para resgatar a bondade dos elementos, partimos em demanda do seu contrário.
É para isto que vale uma contradição. Avivam-se os laços empoeirados que retomam os lugares contrários da acalmia que se instalara. O corpo desce pelo turbilhão ensurdecedor, a mente tomada pela voragem dos ciclópicos pensamentos em sobressalto. Carência de sentir a cabeça a latejar, as dores de cabeça que parecem perfurar a visão com machados ensanguentados. Há um cansaço imorredoiro em tudo. Ou é antinomia da rotina – de qualquer rotina instalada –, ou somos ancoradouros que atraem estados de alma pungentes.
Convencemo-nos que a calmaria é patologia ao cabo de uns tempos. Nenhum navio de velas soltas avança contra as vagas se não houver ventos a favor. Os marinheiros passam por cima das capacidades quando o vento não está de feição e só a força braçal, pondo as velas a jeito, é que derrota as rajadas que alvoroçam o navio. Quando os ventos param de soprar e a nau estaca a marcha, os marinheiros arrimam à indolência. Precisam de ventos. Não querem sempre ventos a desfavor. Mas há alturas em que afinam a bússola à cata do vento enfastiado que arremete contra a embarcação. O desafio maior de todos: derrotar a monotonia, as sensações que são falazes repositórios de bonomia.
Os marinheiros enamoram-se da rebeldia dos ventos que sopram de frente e que encavalitam as ondas do mar contra a frágil proa do navio. Sentem as entranhas do navio a ranger os dentes de dor a cada tonelada de água que se esmaga contra a couraça. Encharcados em cada milímetro de corpo, inamovíveis diante do cansaço que se condensa nas largas horas de combate ao mar enfurecido, os marinheiros franzem a testa sem saberem se aquela é a viagem derradeira. Sem saberem se conseguem derrotar outra tempestade que despenteia a bonomia em que estiveram sentados dias a fio. Excita-os as dores que os consomem, o risco aviltante (porque faz temer pela sobrevivência), às vezes o sobressalto de saberem que estão no limiar de um muito alto precipício.
Não se demovem. Se há fé que os mantém, é a de desafiarem o fio de prumo. Precisam de experimentar o contrário do que buscam. Pois sabem que o “sentir-se bem” perde conteúdo se não regressarem ao seu oposto. Se calhar, as categorias não se arrumam de maneira tão metódica. A confirmar-se que retomamos as desagradáveis sensações quando mergulhamos numa deriva pungente, é porque encontramos nessa deriva os sedimentos do que nos afiança um bem-estar – um qualquer bem-estar.
Uma contradição é uma contradição de si mesma. Dela não irradiam apenas as desagradáveis tonalidades com que as coisas se pintam. É pelos sentimentos contraditórios que damos alimento aos prazeres que o são apenas porque conhecemos o seu sinal contrário. Se nos cansamos de “sentir bem” e caímos na mortificação interior, é porque saí(re)mos da mortificação interior a saborear o “sentir bem” com outra intensidade. “Sentir mal” não é mal, é um bem necessário. 

12.4.10

Ó heresia, há bandeiras espanholas às janelas em Valença do Minho


In http://www.ionline.pt/adjuntos/102/imagenes/000/075/0000075354.jpg
A senhora ministra da tutela decidiu fechar as portas do centro de saúde em Valença do Minho. Os habitantes protestaram: não querem ser forçados a percorrer vinte quilómetros (e outro tanto de regresso a casa) para terem cuidados de saúde. Protestaram com muito ruído. Já houve quem sugerisse que estes protestos tão bem encenados têm o dedo partidário (e comunista). É irrelevante. A partir do momento em que a senhora ministra, estalando-se o verniz onde se esconde aquela capa imperturbável, manda dizer à pátria que aquela gente “não sabe nada de saúde”, é irrelevante que os protestos sejam espontâneos ou teleguiados pelo PC.
Se os valencianos podem atravessar a fronteira e, três quilómetros à frente, encontram um centro de saúde que os trata, por que hão-de meter as pernas até Monção? Nestes tempos de poupança de recursos, quem faz quarenta quilómetros se pode encontrar o mesmo serviço percorrendo meia dúzia de quilómetros? E, talvez, com a agravante dos serviços de saúde do outro lado da fronteira terem melhor qualidade (isto não sei, estou a adivinhar, é só para provocar).
Os apaniguados do poder socialista estão incomodados. Primeiro, não se belisca a autoridade da senhora ministra. É imperdoável contestar a imensa autoridade técnica da senhora e de quem a acolita lá no ministério. O povo boçal devia era despir-se dos seus egoísmos locais e perceber que o interesse da nação manda que se encerre aquele centro de saúde. Segundo, estão incomodados porque do outro lado da fronteira já abriram as portas do centro de saúde para tratar dos achaques que os valencianos não querem tratar vinte quilómetros mais tarde. E, terceiro, os mandantes do poder vociferam contra o despautério da populaça que desfraldou bandeiras espanholas nas janelas das suas casas.
Daqui vai uma modesta ajuda para resolver os três problemas que atormentam tanto a senhora ministra e quem lhe faz as genuflexões todos os dias. Lamento informar, mas o primeiro problema não tem solução. Consta que ainda somos uma democracia, com o lugar próprio à contestação quando o povo, mesmo que néscio, não aprova as doutas medidas da iluminada senhora ministra. O segundo problema é o mais fácil de resolver: ponham lá em funcionamento a internacional socialista. Uns contactos certos e a invocação da solidariedade entre os pares da internacional socialista deviam chegar para travar o oportunismo dos espanhóis que, a coberto de uma “falsa generosidade”, recebem de braços abertos adoentados valencianos.
O terceiro problema tem remédio fácil: arranja-se um “artigozinho” do Código Penal, mesmo que esteja muito escondidinho lá num canto obscuro do código, para castigar estes hereges da portugalidade. Um crime de lesa-pátria não pode ser branqueado. Imaginem o contentamento interior dos espanhóis ao saberem que do outro lado da fronteira, numa localidade amuralhada, muitas janelas ostentam a bandeira espanhola.  Mais a mais, a fortificação simboliza a protecção contra o inimigo que outrora estava no outro lado do rio Minho. A bandeira do outrora inimigo que agora esvoaça em janelas lusitanas. Imaginem aqueles asquerosos espanhóis chauvinistas, centralistas, que ainda acreditam que a hispanidade não é atributo artificial, excitados com o suave atentando cometido pelos habitantes de Valença do Minho.
Não há um juiz que termine com esta heresia à portugalidade? A polícia devia entrar naquelas casas e arrancar, com vigor, as bandeiras espanholas. Isto está tudo de pantanas. Se ao menos o poeta alegre já estivesse na presidência, estes lamentáveis acontecimentos nem tinham passado de esboços. Pois o poeta alegre anda tão empenhado num risível patriotismo de lapela que não permitia aos hereges arvorarem a bandeira espanhola em terras onde a portugalidade deve ser santificada.
Contra a aprumo da maré, um aplauso à saudável provocação dos habitantes de Valença do Minho. Das duas, uma: ou estas bandeiras são o símbolo do luto dos valencianos, o negro do luto pelo amarelo e vermelho das bandeiras postas às janelas; ou para quem vive na fronteira, em tanta comunhão com as gentes do outro lado, a identidade já é tão volúvel que é indiferente hastear uma bandeira verde e vermelha ou uma bandeira amarela e vermelha.