In http://www.olhao.web.pt/Personalidades/AdrianoBaptista/cravo.gif
Era capaz de arranjar um cravo à lapela ao vigésimo quinto dia de Abril? E se confessasse a incapacidade para o fazer, apanhava logo com o rótulo anti-democrático (ou “fascista”, ou coisa que o valha)? E se alguém me olhasse de soslaio por não querer trajar cravo à lapela, quem seria o maior preconceituoso?
Admito a minha prenoção: talvez seja a embirração solene com tudo o que tenha odor a esquerda. A presunçosa cativação que as esquerdas fazem das celebrações do dia em que nos vimos livres da vetusta ditadura. Há símbolos que se ampliam para além da sua singularidade, ganham uma conotação que nos faz distanciar deles. Estava habituado a que só a malta das esquerdas enfeitasse o aprumado traje com cravos vermelhos em dia de festejos da revolução de Abril. Os de direita, contumazes no modismo floral. Cá vai a confissão: nunca usei cravo à lapela em dia algum.
Alguém pode jurar a pés juntos que não tem um preconceito – nem que seja um singelo preconceito para amostra? Às vezes, tiramos um tempo para repensar os pontos cardeais. É quando tudo fica em ebulição, à espera de saber por onde sai o pensamento quando se liberta do labirinto. Foi pena o vinte e cinco de Abril deste ano já ter passado. Nesse dia não vi televisão. Mas soube que nas já arcaicas celebrações da efeméride as novidades não se ausentaram: um punhado de deputados de “direita” ousaram dar utilização ao carnudo cravo vermelho, no que se fizeram acompanhar pelo presidente da república.
Só o soube pelas notícias em letra de jornal, no dia que se seguiu à efeméride. Dei comigo a interrogar os botões: “eras capaz de depositar cravo à lapela?” Aborrecia-me desfiar um pessoal preconceito por ter sabido que alguns deputados “de direita” tinham desfeito preconceitos em relação à revolucionária flor. Irritava-me ser assaltado por esta actividade sísmica do pensamento em desafio aos preconceitos por não me rever, nem ao longe, nas personagens que tinham mudado a agulha.
Levei a hipoteca do preconceito mais longe. Que interessa como nos olham, de fora para dentro, os que estão fora de nós? Que interessa que haja gente do lado detestável da barricada que arpoa o cravo aos seus interesses, como só eles pudessem envergá-lo em sinal identitário do lado certo da barricada? Nunca trouxe flor alguma pespegada ao vestuário. Outro preconceito? Naquela ebulição do pensamento desafiante fervia um abalo telúrico que se queria exprimir. A pergunta, tórrida como a lava de um vulcão reprimido, incendiava-se: “e se usasses um cravo no dia da revolução de Abril, temias que te olhassem como um (para ti) lamentável esquerdista?”
Os preconceitos são apenas uma fina capa de verniz quando julgamos serem uma densa, intrincada rede que não conseguimos atravessar. São o produto de uma distracção. Ou um acaso das convicções, quando metemos pelos caminhos da servidão mental de quem arruma tudo em categorias herméticas, como se não houvesse lugares mais interessantes a visitar fora das categorias herméticas.
Convencido que pulverizara um preconceito, esbarrei numa implacável interrogação: e se a destruição de um preconceito faz nascer um preconceito de sinal contrário? E se forjamos a dissolução de um preconceito que o fora por tempo demorado só porque nos convencemos que há um chamamento interior a desmantelar esse preconceito? A dissolução de um preconceito é o magma que traz à superfície outro preconceito.
Destas masmorras não nos livramos. Vogamos entre preconceitos, empurrados de um lado para o outro pelo sopro dos ventos que de nós se apoderam. Os maiores preconceituosos, os que juram a pés juntos que não têm preconceito algum.