14.4.10

Beijos


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Está bem: por estes dias a imaginação não se atrofia para inventar o dia disto ou o dia daquilo, mais ainda o dia daqueloutro aspecto que tinha ficado no olvido. Ontem foi o dia mundial do beijo. Ou ando desatento e nunca tinha dado conta que o beijo também tinha direito a farra mundial, ou os zelotas da informação (os jornalistas) ainda não tinham reparado na efeméride marcada num qualquer almanaque, ou 2010 vai ficar nos anais por ter convocado o mundo inteiro a fazer, pela primeira vez, a sagração do beijo ao décimo terceiro dia do mês de Abril.
Palco para os especialistas. O beijo está bem e recomenda-se. Aliás, os especialistas (sexólogos, urologistas e psicólogos com especialidade no ramo) recomendam que pratiquemos o beijo amiudadas vezes. É só vantagens. Queima calorias, pois são muitos músculos que se mexem quando beijamos alguém. Faz bem à auto-estima, pois quando invadimos outra pessoa com um beijo e ele não é recusado, os galões da auto-estima enfatuam-se a um altura impressionante. E alivia o stress, essa doença invisível que, no parecer de psiquiatras precisados de abarrotar o seu divã com clientes (perdão, com pacientes), não há vivalma que a não tenha. Nem anti-depressivos, nem ansiolíticos, nem drogas do género. Ele há remédio mais natural que um beijo?
Alguns especialistas anunciam que um beijo é melhor que o sexo. Ora, depende de quem dá o beijo e do sítio onde o beijo é depositado (e, já agora, do desempenho dos parceiros no capítulo sexual). Se tomarmos isto à letra, ainda temos um dia destes a santa igreja a protestar contra os beijos em público. É que nunca se pode adivinhar as sensações interiores que percorrem um mortal pecador quando este oscula alguém. Para cortar o mal pela raiz, proíbam-se os beijos em público já que nos garantem que podem distribuir sensações que exorbitam as que temos com o sexo.
Fiquei sem saber quem determinou que ontem passava a ser dia reservado à celebração dos ósculos. Tem a chancela de uma agência da ONU? Foram os jornalistas que inventaram a efeméride? Ou uma coligação internacional de interesses ligados ao turismo, para reforçar o romantismo que parece só ter lugar quando Fevereiro manda dizer que S. Valentim é o protector dos enamorados e do romantismo nem que seja por um singular dia no ano. O convite ao romantismo é um filão para a indústria do turismo. Na certa, pelo menos um manjar à luz de velas, com guardanapos ornamentados por lábios em forma de beijo, a mão pela mão e, pelo andar da carruagem, uma noite de incandescência nos lençóis acetinados de um hotel de charme. Desisto da divagação: ainda desconheço quem inventou no calendário um dia mundial para o beijo.
Mas o beijo pode ser uma coisa terrível. Se for roubado, por exemplo. Devia haver o crime de violação por ósculo furtivo, com direito a cadeia. Os anglo-saxões é que a sabem toda: aposto que a tradicional frieza, eles que não são atreitos ao cumprimento pelo beijo (nem entre mulheres), se explica pelo temor das bactérias que adejam as protuberâncias labiais. Ou o contrário: podemos não ter os beiços conspurcados por microrganismos bacteriologicamente impuros e regressar de um beijo com os beiços carregados de invisível bicharada se acaso o rosto (ou o que quer que seja) que beijemos seja um lugar infecto. O que me traz à perplexidade do dia: não percebo como tornamos compatível o dia mundial do beijo com a assepsia em que somos educados a viver.
Ontem, por causa dessa coisa insólita que é a existência de um dia mundial do beijo, ao menos aprendi que a “filematologia” é a ciência que estuda o beijo. Só fiquei sem saber se trezentos e sessenta e cinco dias de um calendário ainda chegam para festejar os dias mundiais de tudo e mais alguma coisa. 

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